Hagazussa — A Maldição Pagã

Hemerson Miranda
Hemerson Miranda
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6 min readJan 17, 2019

CONTÉM SPOILER

Categoria: Drama, Horror / Direção: Lukas Feigelfeld / imdb: 6.0 / País: Alemanha / Duração: 1h42m / Ano: 2017 / Next Wave Best Feature

Classificado como folk horror, a obra alemã pode não agradar a muitos, mas faz um bom trabalho em demonstrar lendas pagãs sobre seres mitológicos e bruxas, com uma atmosfera sombria, perturbadora e agonizante, nos deixando confusos sobre as diferenças entre fé, crença e loucura.

O título é baseado em um termo antigo usado para se referir a bruxas e demônios femininos nos países de língua alemã na Idade Média. O filme é o projeto de graduação da escola de cinema de Feigelfeld e foi parcialmente feito com financiamento coletivo. Destaca-se por sua atmosfera avant-gothic e seus diálogos minimalistas, tudo ocorrendo nos alpes austríacos do século XV, sob a trilha sonora sombria da banda grega MMD.

Eu poderia definir o longa como uma sinfonia áudio-visual marcante, que entra para a categoria de filmes cult.

A história nos conta sobre a jovem orfã Albrun e seus esforços em manter a sanidade na zona rural onde mora, rodeada de mitos pagãos, espíritos da natureza e pessoas supersticiosas.

O filme se desenvolve em partes, então vai haver spoiler e cenas reveladoras. Algumas pessoas podem , inclusive ver muitas semelhanças com The Witch (2015).

Na primeira parte vemos a pequena Albrun com sua velha mãe, tentando sobreviver aos horrores de um castigante inverno. Percebemos também que os moradores da zona rural veem a mãe de Albrun como uma bruxa e que provavelmente a filha também herdará esse estigma. Com um ritmo silencioso e assustador, somos apresentados à atmosfera que perdurará por todo o filme e como se deu a experiência traumatizante da protagonista.

A mãe de Albrun então é acometida por uma doença, que também mais parece alguma espécie de possessão, levando então a velha à morte, iniciando a jornada de nossa garotinha pelo futuro sombrio.

Em uma floresta completamente encharcada, que dá até aquela sensação terrosa na língua, a velha é encontrada pela filha morta e isso encerra o primeiro arco.

Albrun já é adulta e tem uma bebê. Mora só e cuida dos afazeres domésticos, vendendo leite para os outros habitantes que, em sua maioria, ainda acreditam que ela seja uma bruxa ou ao menos amaldiçoada por causa da mãe. Não sabemos quem é o pai da criança e quando ela é indagada sobre isso apenas fala que não existe pai/marido.

Nesse arco a igreja onde o padre a convida a se apresentar para uma conversa é assustadora. Parece que ela é toda rebocada com crânios humanos.

O padre lhe dá um crânio, que ela leva para casa, como uma forma de expurgar os seus pecados e os pecados da mãe. É bom assistir esse filme sem esperar muitas explicações. O silêncio permeia as cenas, criando a atmosfera soturna, atiçando nossa própria imaginação.

A cena dela ordenhando a cabra e masturbando nesse arco é digno de nota, com uma mescla de erotismo e bizarrice, remetendo a experiências sensoriais a quem está assistindo, o que pode causar certo desconforto em alguns ou reflexão em outros.

Recheado de cenas contemplativas e imagens de causar suspiros, o ritmo é lento justamente para criar a ambientação. Justamente por isso lembra muito The Witch, sem se valer de sustos, mas sim na preparação do que está ao redor e nos causar aquela sensação de que, mesmo que tudo esteja calmo, algo está errado.

Ainda nessa parte temos o que parece ser um estupro, mas que não é mostrado, apenas insinuado. Já nesses momentos eu não sabia o que era real e o que era alucinação, se é que havia alucinação.

Existem algumas cenas repugnantes, então aconselho a não assistir de barriga cheia. Em alguns momentos você até vira o rosto involuntariamente.

A floresta parecia sempre falar com a mãe de Albrun, ou o contrário. E tudo indica que uma mesma comunicação agora tenta ser feita entre as duas.

Logo de início ela vai para dentro da floresta, em um local encharcado de lama e simplesmente submerge com sua menininha que ainda é uma bebê.

Após largar a criança, ela mergulha e tem a visão de sua mãe. Em seguida algo pulsa como que dentro de entranhas e começa a sangrar.

Albrun parece ter desistido de tudo. Durante a noite ela não se importa que uma cobra serpenteie por seu corpo. Mas a cobra realmente existe?

Entre as chamas tremulantes da fogueira e de uma vela, ela fica diante do crânio que o padre lhe deu. Em seguida percebe que há um amontoado de lençóis perto de seus instrumentos de ordenha. Quando ela descobre o amontoado, vemos o cadáver de sua filhinha, aparentemente retirada do lamaçal.

O único som é o crepitar da fogueira.

Uma cena quase que aleatória mostra algo que como que um caldeirão com seu conteúdo fervendo. Sendo que a cor é meio avermelhada, dá até medo saber o que seja. Mas a cena é rápida e nada mais é explicado.

Na próxima cena Albrun tenta comer o que parece ser a carcaça de um animal pequeno. Nesse momento a gente tenta evitar a imaginação. Ela, depois de algumas tentativas trêmulas, acaba vomitando.

Não se sabe se é alucinação ou mesmo o fantasma de sua mãe, mas ela é acometida por uma perseguição e sobe a colina. Na verdade, nada parece persegui-la e então uma membrana esbranquiçada cobre seus dois olhos.

E então, fogo.

O filme termina como começa: sem dar explicações de nada, deixando tudo por conta da imaginação de quem está assistindo.

No início, quando a mãe de Albrun desmaia na neve, antes ela estava pronunciando palavras ou ininteligíveis ou em outro idioma, talvez falando para si mesma ou recitando alguma maldição, um pacto.

Não sabemos o que se deu com os homens que bateram na porta da casa das duas as chamando de bruxas. Nem sabemos qual o propósito do padre em lhe entregar o crânio. Se o bebê foi um sacrifício, isso também fica a nosso critério julgar.

Hagazussa foge do horror tradicional, unindo os elementos que tem para criar uma atmosfera que nos suga para nos provocar suspense. Nós não esperamos que algo surja do nada das brechas, ou que uma mão agarre o corpo da protagonista. A insanidade e a agonia de cada cena já nos dá a apreensão e nos deixa intrigados e confusos, extraindo o antigo medo do desconhecido.

Não é um filme para todos, principalmente para aqueles que buscam sempre uma explicação para tudo, nem para os que não gostam de finais sem conclusão.

Mas para quem curte o clima sombrio dos países de mitos escandinavos, um dia cinzento, frio e chuvoso e o som arrastado de um bom doom metal, será um prato cheio.

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Hemerson Miranda
Hemerson Miranda

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