A crítica do valor econômico: por uma economia menor

Álvaro Micheletti
Heterodoxos
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16 min readApr 25, 2021
Fontes: boitempo e lilianroizman

“O orgulho, a arrogância, a glória
Enchem a imaginação de domínio
São demônios, os que destroem o poder bravio da humanidade”

— Monólogo ao Pé do Ouvido (Nação Zumbi)

Este texto é o resultado da minha tentativa de sintetizar com clareza a preocupação com o problema do valor econômico, que me perturbou durante boa parte da graduação. Me esforcei em fazê-lo movido pela ideia de que, criando um caminho libertário por entre a formulação do valor na teoria marxista, é possível aproveitar o que há de potente, libertador e útil nela, simultaneamente exorcizando seus elementos mais autoritários e anacrônicos.

Mais do que propor soluções ou projetos específicos, ela me parece importante para limpar a cabeça de confusões e conseguir olhar a realidade humana da economia. Ao menos foi assim que ela me serviu, e se me esforço em lidar com algumas formulações um tanto abstratas e que podem parecer secas, é para fazê-las servir a esse propósito

Começarei o texto expondo a formulação marxista acerca do fetiche da mercadoria, para depois dizer como ela desemboca em diferentes interpretações possíveis. Naturalmente, uma delas é minha preferida, e terminarei o texto dizendo o que escolher uma em detrimento da outra rende de frescor intelectual e de possibilidades de ação no mundo. Mais do que isso, espero terminar transmitindo meu sentimento de que essa apropriação da teoria marxista é a expressão de um espírito, entre outros, que habita a própria obra de Marx: o da insistência reiterada em não permitir que critérios “objetivos”, “neutros” ou “científicos” definam o sentido da vida humana.

O fetichismo da mercadoria e suas interpretações

No final do primeiro capítulo d’O Capital, Marx introduz a problemática do fetiche da mercadoria. Ele discute a operação mágica¹ que ocorre quando o trabalho humano passa a se dedicar aos moldes da forma-mercadoria, que envolveria uma inversão entre os papéis de sujeitos e objetos. O ponto crucial reside na produção de bens para venda. Quando isto ocorre, o que está acontecendo é que o trabalho que está concretamente sendo empregado para, por exemplo, trançar uma cesta, não é mais reconhecido em termos da cesta concreta que ele produz, nem pelo trabalhador, nem por quem o emprega para trançar a cesta. Para o empregador, o que vale é a quantia que ele obterá vendendo a cesta, e para o trabalhador, o salário que ele receberá pelas várias cestas trançadas.

1.Fetiche deriva da palavra portuguesa “feitiço”, usada pelos colonizadores portugueses para descrever as práticas de bruxaria com que entraram em contato no continente africano.

O trabalho humano, portanto, não adquire a sua dimensão social nas relações imediatas das pessoas (as que elas travam dentro da fábrica, por exemplo); o valor do trabalho se realiza por meio das relações que as mercadorias que ele produz travam umas com as outras nas comparações de preços feitas no mercado. A questão é que, uma vez que estão prontas e sendo comercializadas, as mercadorias já não carregam nada do processo produtivo que as gerou, parecendo mesmo serem dotadas de algum valor intrínseco, sendo as relações comparativas que elas, com essas características próprias, travam no mercado, as responsáveis por originar o seu valor.

Embora haja certa ironia na denominação deste fenômeno como fetiche, ele não deixa de ser verdadeiro: na perspectiva dos atores individuais, é por meio das mercadorias compradas que as necessidades são satisfeitas², e é por meio dos salários que é possível acessar estas mercadorias. Muito concretamente, portanto, pouco importa que você conheça alguém que trabalha na Volkswagen se quiser um carro novo. Ele não poderá fazer nada mais do que te dizer onde fica a loja mais próxima, e muito provavelmente não tem o conhecimento necessário para produzir um carro do zero.

2.Eu gosto muito da explicação de Graeber sobre este fenômeno: “Se uma mercadoria — um futon, um vídeo cassete, uma caixa de talco — resolve uma necessidade humana, é porque seres humanos intencionalmente produziram-na para tanto; eles pegaram matérias primas e, por meio de sua força e inteligência, deram-lhes uma forma que serve a essas necessidades. O objeto, portanto, incorpora intenções humanas. É por isso que os consumidores querem comprá-lo. Mas devido à natureza peculiar e anônima do sistema de mercado, todo esse processo fica invisível para o consumidor. Do seu ponto de vista, parece que o valor do objeto — incorporado na capacidade dele de satisfazer suas necessidades — é um aspecto do próprio produto”

Assim, ao produzir mercadorias capazes de serem trocadas em abstrato no mercado, as pessoas estão comprando para si o direito de acessar este mesmo mercado e usufruir do que é vendido nele. À medida que mais e mais bens/serviços, pessoas e esferas da vida vão sendo organizados por esta lógica, mais e mais se alastra a necessidade de produzir e comprar mercadorias.

Um aspecto central deste processo no marxismo é o fenômeno da transformação do próprio trabalho em mercadoria, comprada pelo preço denominado “salário”. Em verdade, esse é o grande pulo do gato do capitalismo, e um dos pontos centrais da abordagem crítica marxista. Uma das condições necessárias para a existência e expansão do capitalismo é a “força de trabalho livre³”para trabalhar em troca de salários. No entanto, a sua existência produz um aspecto radical: “trabalho”, na realidade, passa a ser um dos diferentes insumos do processo de produção de mercadorias, sendo remunerado em termos de mercadorias. Aqui temos um ponto crucial para entender a exploração capitalista, e me interessa dividi-la em dois níveis.

3.Quer dizer, livre de amarras sociais como a servidão feudal, as guildas comerciais, os compromissos familiares e comunitários, etc; livre de tudo aquilo que é um obstáculo para que as pessoas trabalhem por longas jornadas dentro de fábricas controladas por terceiros.

Fontes: thenewrepublic e aterceiramargem

Por um lado, existe a questão da mais-valia. Ela diz respeito ao descompasso entre a quantia de dinheiro que é paga como remuneração pelo trabalho (que equivale à quantia de dinheiro tida socialmente tida necessária para reproduzir a vida, qual seja, comprar alimentos, pagar aluguel, etc) e o valor que é obtido com a venda dos produtos feitos pelos trabalhadores. A diferença entre estes valores possibilitaria a acumulação capitalista, visível na expansão de máquinas e fábricas por todo o mundo.

No entanto, na obra do antropólogo David Graeber ressalta-se um aspecto desta exploração que me parece muito mais interessante. Na medida em que o trabalho é valorizado em termos do que ele produz de mercadorias, ocorre uma inversão de sentido inédita na história: a ação criativa humana é pensada não pelas pessoas que produz, e sim pelas coisas.

Para Graeber, a exploração mais radical que acontece no capitalismo é a afirmação de que a única forma de trabalho que produz valor é a que produz mercadorias. Mais do que uma remuneração indevida da contribuição do trabalho na produção de mercadorias, o problema do capitalismo reside justamente no fato de ele enxergar essa forma de produção como a única que existe. Nas palavras dele:

“Esse insight pode parecer ter desaparecido em meio à ênfase posterior de Marx na economia política e na produção de mercadorias, mas na verdade ele pensava que o modo de produção capitalista que ele tanto se esforçou em descrever era perverso justamente por demandar tal tipo de análise para ser compreendido; ou seja, era perverso porque via seres humanos essencialmente como meios para produzir riqueza, e não o contrário. Como Marx notou em seus cadernos etnográficos, nunca ocorreu a ninguém em nenhum lugar do mundo antigo se perguntar quais seriam as condições que criariam mais riqueza, mesmo essa parecendo ser a única pergunta que podemos fazer hoje. Assumia-se que a riqueza era um fator, frequentemente ambivalente, do real propósito da vida humana: a criação de seres humanos que poderiam ser bons membros de suas comunidades. (…) [isto] também sugere um ponto ainda mais radical: o que é descrito na literatura marxista como “trabalho reprodutivo”, tarefas domésticas, cuidado das crianças, a formação, educação, atenção e cuidado com quem realiza o trabalho, não deveriam ser vistos como algum fenômeno secundário, mera reprodução da força de trabalho capaz de produzir mercadorias vendáveis, mas sim como a forma mais elementar da real produção de valor, como o centro essencial da vida criativa humana”

Graeber, 2013, p. 223–4, tradução minha

Agora creio poder falar em exploração com maior clareza, expondo claramente em que sentido o trabalho seria explorado. Como havia dito, existem dois níveis de abstração em que isso ocorre. O primeiro que citei é quantitativo, ligado à suposta remuneração do trabalho em um nível inferior ao valor que ele gera para os donos dos meios de produção. Ele é quantitativo pois envolve a aceitação, mesmo que provisória, da mercantilização do trabalho e sua troca por dinheiro, buscando apenas um ajuste nos termos de troca.

O segundo seria qualitativo, e a sua compreensão me parece mais sutil. Ele reside neste processo de captura do sentido da ação, neste processo elusivo por meio do qual as ações humanas se cristalizam em objetos e passam a exercer poder sobre os próprios humanos, como no processo do fetiche sobre o qual elaborei anteriormente. A questão é que, como coloca Graeber em diversos pontos de sua obra, este processo é muito mais geral do que o capitalismo. Ele diz respeito a um fenômeno ligado ao valor, que está presente em muitas sociedades. Formas de ação tidas como boas, dignas e valiosas se cristalizam em certos meios concretos, e são tidas como valiosas justamente por produzirem estes meios concretos, que são valiosos por trazerem ao mundo ações valiosas. O processo é todo circular. O exemplo mais compreensível é o que nos é mais próximo: a produção de mercadorias é remunerada com dinheiro, que é valioso justamente por permitir que quem o tem acesse a produção de mercadorias da sociedade como um todo, que as produz por receber dinheiro para tal.

Fonte: Shutterstock

Entender um processo tão geral como “exploração”, no entanto, nos leva à questão de o que raios seria uma sociedade sem exploração.

Eu acredito que esta pergunta nos leva a separar certas linhas dentro da teorização marxista, inspirado por Graeber (2006, p. 69) dizendo que “o pensamento de Marx puxa rumo a uma série de direções diferentes, mas algumas são decididamente mais interessantes que outras”.

Movimento e cristalização

Proponho que haja o marxismo do movimento e o da cristalização, o da crítica pura e a sua manifestação histórica específica. Um que é puro dinamismo, o motor incessante por trás da crítica, restaurando a dimensão humana do valor sempre que este parece se plasmar nos objetos, insistindo permanentemente na sua dimensão processual e relacional. O que importa não são os objetos produzidos, mas sim o seu sentido social, as relações humanas que a sua produção propicia e cujo uso elas demandam. Esta forma de pensar é muito bem ilustrada pela ideia de “luta”. É frequente ouvir formulações que dizem coisas como “é na luta que se vive”, dando a ideia de uma luta permanente que dá sentido à vida. Esta formulação me parece derrotista se a luta é compreendida como um meio (a luta pela revolução socialista, por exemplo), já que nestes casos o sentido deveria ser o fim desejado, e quanto mais breve a luta, melhor. No entanto, entendendo a luta como um processo aberto sem resolução possível, que aponta para o infinito, o sentido do marxismo de movimento a que eu me refiro se torna muito mais claro: a afirmação da dimensão humana das coisas que se fazem tem que ser sempre e repetidamente reafirmada em cada relação, a cada momento. Tal é a natureza de uma coisa cuja essência é afirmar sua eterna permeabilidade para as circunstâncias, e tal é o tipo de ativismo permanente e sem possibilidade de vitória definitiva que luta. Qualquer vitória definitiva seria uma vitória daquilo que venceu, não das pessoas.

A realização desta crítica na realidade depende, naturalmente, de mediações concretas, de esforços no sentido de expandir a potência de ação das pessoas nos momentos históricos em que vivem. Tal é a gênese do que chamo de marxismo cristalizado. No contexto da expansão industrial capitalista europeia do século XIX, afirmar que todo o valor advém do trabalho certamente era uma proposição radical, pelo menos no centro do sistema-mundo, com o potencial de realinhar os caminhos da civilização ocidental com um sentido humanista, buscando fazer este trabalho render os frutos apropriados para quem o realizava.

No entanto, esta análise é indissociável de seu berço concreto europeu, em um período de fé no progresso material sem limites e no poder da inovação científica ligada à indústria. Quando constatamos que esta ilusão de crescimento é indissociável de processos coloniais, que incorporavam a baixíssimos custos (monetários) os recursos humanos e naturais das colônias no sistema capitalista, produzindo quantidades exorbitantes de valor econômico na forma de mercadorias industrializadas ou produzidas nas colônias, fica mais claro que não é possível pensar essa abundância de mercadorias como fruto meramente do “gênio científico” iluminista.

5.Hornborg: “Para aqueles de nós que esperam reforçar a crítica radical do capitalismo industrial — e das teorias econômicas que ignoram as dimensões biofísicas da economia — tão poderosamente inaugurada por Marx, é contraproducente tentar compensar as suas limitações analíticas com exegeses seletivas. Pelo contrário, nós deveríamos estar preparados para descartar os aspectos de sua análise que eram inconsistentes com seu esforço de compreender a lógica do capitalismo, e que podem claramente ser atribuídos às limitações do discurso hegemônico de seu contexto histórico: essencialmente, sua crença prometeica no progresso tecnológico e seu compromisso com a teoria do valor trabalho.”

Se o impulso crítico de Marx de desnaturalizar o progresso econômico e compreender a sua dimensão humana nos é profundamente necessário nos dias atuais, a sua percepção de que uma expansão da industrialização e crescimento econômico poderiam garantir à toda a humanidade o bem-estar burguês europeu é uma compreensão profundamente datada e eurocêntrica que não nos serve mais. Trata-se, na realidade, de uma percepção antagônica ao espírito crítico do primeiro marxismo que busco esposar aqui.

Há de se compreender o seguinte: a afirmação do trabalho como substância última do valor deve ser entendida como uma questão existencial e moral. Quando esta formulação passa a ser entendida como uma análise sobre a origem do valor monetário dos bens e um bom critério para dividi-lo na sociedade, um argumento moral é transformado por meio de certas mediações específicas em um argumento político e econômico.

A questão é que, concretamente, é impossível determinar a centralidade do trabalho assalariado na produção de valor capitalista. Buscar essa linha de raciocínio nos levaria a debates largamente improdutivos sobre a produtividade “real” do capital financeiro, dos serviços ou dos processos ecológicos. Nesse sentido, seguindo a linha de raciocínio de Alf Hornborg (2003, 2016), outro antropólogo dedicado à investigação do valor econômico, é muito mais produtivo pensar que o problema central do valor econômico é justamente o fato de ele não computar nenhuma dimensão material. Ganhos econômicos extraordinários podem vir de empreendimentos em países onde há regimes autoritários que garantem a possibilidade de longos regimes de trabalho com baixos salários, mas também da extração de minérios desconsiderando quaisquer impactos ambientais incorridos no processo de introduzir rochas subterrâneas previamente sem valor no sistema de mercado. Nesse sentido, mais concreto, não há nenhuma base para dizer que a mais-valia que permite a acumulação capitalista se origina especificamente da energia gasta pelos trabalhadores que não é propriamente remunerada. O capitalismo é um sistema por definição predatório, que se expande a partir da captura de elementos externos a ele, obtidos “de graça”, que passam a comandar a extração de mais trabalho humano e recursos naturais.

A colocação dos problemas desta forma nos instiga a pensar, trazendo o marxismo de pensamento crítico e vivo que descrevi para servir de inspiração e guia em um contexto em que os caminhos gerados por ele e sua tradição não mais correspondem às demandas civilizacionais contemporâneas.

Marxismo como ponte para uma economia menor

Como coloca David Graeber nos trechos que citei acima, eu acredito que o que o marxismo tem de útil para nos apontar é a inspiração para buscar uma economia menor. Aqui me refiro ao sentido de menor utilizado por Deleuze e Guattari, fazendo referência a uma economia que opera por meio do particular e das relações. Ou seja, uma economia que se proponha à tarefa primeira de organizar um mundo material que produza vidas com sentido ao invés de aumentar continuamente o valor econômico e supor que este esforço de alguma forma vai resolver os problemas humanos.

O que me parece genuinamente interessante e produtivo no pensamento marxista é a intuição de perceber que há uma imbricação entre a produção material e a produção de pessoas. Sepultada a ilusão da possibilidade de generalizar o progresso econômico, urge que nós desvinculemos essa ideia de geração de valor do processo de produção de mercadorias, reconhecendo e expandindo as formas de reprodução social que passam ao largo dela.

6. É claro que, teoricamente, podemos apostar tudo na inovação e no progresso econômico. Por meio dos incentivos de mercado e/ou do planejamento estatal, podemos pensar que os recursos serão alocados otimamente, e podemos confiar que de alguma forma os problemas ambientais de complexidade exponencial que encararemos serão resolvidos de uma forma ou de outra. Pelo meu gosto pessoal, no entanto, não temos mais a possibilidade, no século em que vivemos, de lidar com a multiplicação exponencial de riscos que estão envolvidos nessa aposta recorrente no progresso. É concebível que o investimento em processos crípticos de manipulação atmosférica, desenvolvimento de energias renováveis ainda desconhecidos ou colonização extraterrestre permita que o crescimento econômico continue no mesmo nível que vem ocorrendo desde a Revolução Industrial, buscando atender os níveis de consumo crescentes de todo o globo em franca urbanização sem acabar por solapar as bases ambientais em que está assentado. Mas a sensatez nos diz que é mais provável que isso não ocorra, e nós venhamos a ter de enfrentar o dilema de como nos organizarmos e vivermos vidas dignas e belas sem confiar no progresso industrial para tudo.

O interessante é que esse olhar, em muitos sentidos, é o oposto do revolucionário. Longe de inventar a roda, criar ou organizar qualquer coisa do zero, trata-se de perceber a infinidade de aspectos que já estão articulados no sustento da vida. Os tão falados comuns estão por toda parte ao nosso redor: a sabedoria dos agricultores e das donas de casa, os recursos naturais em constante renovação, toda a teia de ajuda mútua, diálogo e compartilhamento de conhecimento que sustenta todas as nossas organizações por baixo de suas oficialidades. A reprodução dessas dimensões da vida costuma se dar tacitamente, silenciosamente, sem ser contabilizada por indicadores estatais ou manifestações nos preços, seja no aprendizado diário dentro das famílias, empresas e comunidades, seja na infinita reprodução de processos bioquímicos essenciais à estabilidade ambiental do planeta.

Não se trata aqui de ignorar que o mercado e o Estado oferecem vias de ação frequentemente úteis para obter recursos importantes, mas sim de reforçar um ponto de vista a partir do qual olhar, e um conjunto de dimensões a serem enfatizadas. Como seria um pensamento econômico que assume valorizar exatamente o que não pode tocar sem destruir?

Fontes: vaidebolsa e Getty

Ao olhar e valorizar essas dimensões, emergem as formas pelas quais elas podem ser apoiadas. Para finalizar, darei dois exemplos concretos que dão um vislumbre disto. Para começar, a questão da extensão rural. Ela pode ser capturada por uma lógica industrial de mera transmissão dos avanços científicos e cartilhas técnicas, mas também tem uma dimensão completamente distinta, essencial para qualquer agricultura familiar e de base ecológica. Há uma extensão rural, ameaçada de extinção, que tem como base saber que a agricultura é uma arte, dependente de conhecimentos tácitos e práticos sobre o manejo e o território em que se vive, e assume trabalhar neste lugar, entendendo que é impossível produzir sem a produção de um certo tipo de pessoa. O agricultor deixa de ser um agente genérico e autômato que pode e deve apenas seguir as instruções dos rótulos da Monsanto para se tornar o sujeito mesmo do processo, a pessoa que deve ser apoiada e educada para conseguir navegar as complexidades de seu trabalho.

Um outro exemplo muito interessante, que fala mais diretamente sobre a atuação do Estado, foi a política do Ministério da Cultura no decorrer dos governos do PT. No primeiro governo Lula, Gilberto Gil assumiu a pasta com liberdade de ação, e instituiu o programa Cultura Viva. Negando a ideia de uma cultura criada a partir do Estado, a ideia era mapear e apoiar iniciativas locais já existentes, fornecendo-lhes apoio financeiro e recursos simples como computadores para se consolidarem e se conectarem em redes mais amplas. Dessa forma, inúmeros coletivos culturais pelo Brasil desabrocharam, produzindo cultura local em seus próprios termos. Com o passar dos anos, essa lógica perdeu espaço dentro do partido para uma outra, estatista e centralizadora, que cessou o repasse de fundos para os pontos de cultura e passou a apoiar grandes coletivos centralizados ligados à produção de cultura e notícias “de esquerda”.

7.Embora na realidade este processo seja mais nuançado e prenhe de disputas, creio que esta simplificação, por mais caricaturada que seja, não violenta os fatos e expressa bem o movimento geral que ocorreu. Uma interessante reconstrução histórica do assunto foi feita por Rodrigo Savazoni (2014), focando na história do coletivo cultural Fora do Eixo.

Creio que estes exemplos expõem os dilemas que surgem quando busca-se valorizar esta dimensão elusiva das relações humanas, tão sujeitas à captura por mecanismos que queiram rotulá-las, dissecá-las e então maximiza-las de jeitos distorcidos e monstruosos.

Vertentes como a economia ecológica e a economia feminista são manifestações contemporâneas de pensamentos que vão na raiz deste problema, reconhecendo essas dimensões da vida que são evidentemente produtivas, mas que não são contabilizadas na economia capitalista. No entanto, a questão é encontrar os caminhos de valorizá-las sem submetê-las à lógica da produção de mercadorias, dizendo que elas são “sub-remuneradas” ou “têm importante contribuição na reprodução da força de trabalho”. É verdade, mas é muito mais do que isso, pois elas sugerem a possibilidade de viver de outras formas, sem que todas as dimensões da vida estejam subordinadas à produção de mercadorias.

A inspiração marxista para a economia que nos serve atualmente é indissociável desta busca constante por restaurar o foco no valor soberano da reprodução da vida e da produção de pessoas capazes de reproduzi-la, orientando as ações em uma busca de permitir que o trabalho humano realmente seja valorizado como o centro dos processos econômicos. Nesse sentido, é essencial deixar no passado compreensões tacanhas e fetichistas do valor-trabalho.

Referências

GRAEBER, David, Toward an Anthropological Theory of Value: The false coin of our own dreams, Nova York: Palgrave Macmillan, 2001.

GRAEBER, David. Turning Modes of Production Inside Out: Or, Why Capitalism is a Transformation of Slavery. Critique of Anthropology, v. 26, n. 1, p. 61–85, 2006.

GRAEBER, David, It is value that brings universes into being, HAU: Journal of Ethnographic Theory, v. 3, n. 2, p. 219–243, 2013.

HORNBORG, Alf. Post-Capitalist Ecologies: Energy, “Value” and Fetishism in the Anthropocene. Capitalism Nature Socialism, v. 27, n. 4, p. 61–76, 2016.

HORNBORG, Alf. The Unequal Exchange of Time and Space: toward a non-normative ecological theory of exploitation normative ecological theory of exploitation. Journal Of Ecological Anthropology, Tampa, v. 7, n. 1, p. 4–10, jan. 2003. Disponível em: https://scholarcommons.usf.edu/jea/vol7/iss1/1/. Acesso em: 13 abr. 2021.

MARX, Karl. A mercadoria. In: MARX, Karl. O Capital — volume 1. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. p. 113–158.

SANSI, Roger. Feitiço e fetiche no Atlântico moderno. Revista de Antropologia Usp, São Paulo, v. 51, n. 1, p. 123–153, nov. 2008.

SAVAZONI, Rodrigo. Os Novos Bárbaros: a aventura política do Fora do Eixo. São Paulo: Aeroplano, 2014.

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