Capitalismo de shareholders, stakeholders e a Magazine Luiza

Analisar os impactos do programa de Trainee da Magazine Luiza mostra como o ensaio de Milton Friedman envelheceu mal.

Gabriel Vinicius
Heterodoxos
5 min readOct 21, 2020

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Milton Friedman e Luiza Trajano — Fonte: Wikipédia e Giuliano Gomes/Agência de Notícias Gazeta do Povo

Friedman e as responsabilidades sociais

As análises extremadas e forçadas de Milton Friedman não surpreendem ninguém, logo no início de seu ensaio — que ditaria os rumos da visão do neoliberalismo mundial, principalmente após a década de 1980 — , “The Social Responsibility of Business is to Increase its Profits” publicado no The New York Times em 13 de setembro de 1970, encontramos o economista bradando com todas as forças do mundo, a plenos pulmões contra o “socialismo puro e autêntico” dos empresários que se preocupavam — ou que pelo menos diziam se preocupar — com as responsabilidades sociais de suas empresas. Diminuir desigualdades? Se preocupar com o meio ambiente? Combater a discriminação? Bobagem né.

Para Friedman, a sociedade é formada por um conjunto de indivíduos, que se contratados como executivos de qualquer empresa maximizadora, deveriam responder aos desejos de seus acionistas, desejos que se transmutariam no lucro — na maioria das vezes — , ou seja, os pedidos pela “responsabilidade social” das empresas não passariam de hipocrisia, dado o cenário perfeito de concorrência que o economista pinta, caso as empresas tenham liberdade total para perseguir seus interesses.

“…na qualidade de executivo, o administrador é o agente dos indivíduos que detêm a corporação ou estabelecem a instituição caritativa, e a sua responsabilidade primária é para com eles.”

E em outro parágrafo:

“Dolosamente ou não, o uso da máscara da responsabilidade social, e o insensato discurso em seu nome por homens de negócios prestigiados e influentes, claramente ameaça os fundamentos da sociedade livre. Fico frequentemente impressionado com o caráter esquizofrênico de muitos homens de negócio. Por um lado, eles são capazes de ser extremamente acurados e perspicazes em assuntos internos aos seus próprios negócios. Por outro, eles são incrivelmente míopes e confusos em assuntos que, mesmo exteriores aos seus negócios, afetam a possível sobrevivência da livre empresa em geral.”

Friedman achava que os fundamentos da sociedade livre estavam sendo atacados, com essas atitudes de tentar prover algum bem para a sociedade. Esse “capitalismo de shareholders”, onde as responsabilidades sociais não importam, contanto que os executivos estejam empenhados na busca exclusiva do lucro para os seus acionistas, deveria ser o norte único das empresas.

“…a doutrina de “responsabilidade social” envolve a aceitação da visão socialista de que os mecanismos políticos, e não os mecanismos de mercado, são as formas apropriadas de determinação da melhor alocação de recursos escassos a usos alternativos.”

Já deu para perceber a fixação dele em criticar o socialismo né?

Bom, não preciso perder tempo discutindo o tamanho do equívoco desse tipo de pensamento sobre o papel das empresas no capitalismo moderno. Além de se mostrar uma visão radicalmente egoísta — típica desse neoliberalismo — , ela está totalmente descolada do papel positivo e benéfico que certas empresas podem proporcionar minimamente à sociedade, e como exemplo disso, nada melhor do que expor e combater essa visão negativa acerca das responsabilidades sociais com o anúncio do programa de Trainee exclusivo para pretos e pardos da Magazine Luiza.

As responsabilidades sociais da Magalu

Antes de mais nada, e respondendo às críticas da branquitude contra a iniciativa louvável da empresa, que andam balbuciando por aí os absurdos do “racismo reverso”, o advogado e professor da FGV, Thiago Amparo, já resumiu toda a questão em um único tweet certeiro.

Estamos conversados? Então podemos seguir.

A varejista Magazine Luiza anunciou no dia 18 de setembro de 2020, o primeiro programa de trainees do Brasil somente para pessoas que se autodeclarem pretas e pardas, com a missão de “alcançar a verdadeira equidade através da riqueza que existe na diversidade” e ajudar a “construir novas histórias a partir da valorização de profissionais negros dentro do mercado de trabalho”.

Segunda a empresa, por mais que 56% de seus funcionários sejam pretos e pardos, apenas 16% ocupam cargos de liderança e além do mais, dos 250 trainees que passaram pela empresa nos 15 anos de existência do programa, apenas 10 eram pretos e pardos.

A iniciativa causou um impacto positivo na imagem da empresa perante a sociedade, por demonstrar certa preocupação com questões sociais, o que convenhamos, não é necessariamente uma novidade, haja vista que um estudo publicado no mês de maio pela ESPM Rio, mostrou que a Magazine Luiza foi a empresa mais bem avaliada naquele período, justamente por suas ações contra a pandemia da covid-19. No final das contas, atitudes como essas são positivas e beneficiam de quebra os acionistas, sim, os ACIONISTAS, tão caros a Friedman e que fazem parte do corpo social, sofrendo assim suas consequências.

É importante frisar que não é só a Magalu que vem fazendo esse movimento mais voltado à diversidade, a farmacêutica alemã Bayern também anunciou um processo de Trainee similar. Com tudo isso, podemos interpretar que devido às exigências dos consumidores (leia-se sociedade), as empresas parecem estar percebendo, por bem ou por mal, que uma visão mais voltada às boas práticas pode tanto melhorar as suas imagens, quanto influenciar o aumento de seus lucros, ao reunir cada vez mais clientes ao seu redor.

O capitalismo, depois de tanto destruir o meio ambiente e ignorar o arcabouço social, sempre expandindo e empurrando para frente suas contradições internas, parece sofrer pressões para se moldar a uma nova realidade, que tende a se aprofundar nos próximos anos, e olha que nem precisamos ir tão longe assim, é só olharmos por exemplo para o acordo UE-Mercosul, que não vai ser aprovado enquanto o presidente Jair Bolsonaro e seus asseclas não pararem de destruir as florestas do país.

Fonte: borbaedeluca e Arquivo/Agência Brasil

Esse capitalismo de stakeholders, onde as responsabilidades sociais são levadas em consideração pelas empresas, e que vem se desenhando com o passar dos anos, parece ser oportunista e/ou ficar apenas no marketing na maioria das vezes?

Claro que sim, um efeito negativo faria os executivos da Magazine pensarem duas vezes antes de repetir a manobra no futuro, devemos nos lembrar que o lucro sempre esteve e estará em primeiro lugar, mas acho que todos concordamos, seja você de esquerda ou de direita (e decente, claro) que nesse capitalismo empresarial e financista em que vivemos, pessoas como a empresária Luiza Trajano, que estejam dispostas a conversar e diminuir, — mesmo que infimamente— , alguma parcela das mazelas de nossa sociedade, são milhares de vezes mais preferíveis do que aberrações como Luciano Hang e o infame clubinho dos empresários que se posicionaram contra as medidas de distanciamento social no começo da pandemia, todos a epítome do que existe de mais atrasado em nossa elite…do atraso.

Que pena Friedman, não é que empresas e responsabilidades sociais podem se dar bem e andar juntas?

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Gabriel Vinicius
Heterodoxos

Graduando em Ciências Econômicas na Unicamp e aficionado em Ficção Científica