China: uma breve história e pequenas considerações ao debate

Thomaz de Moraes Andrade
Heterodoxos
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10 min readNov 22, 2020
Fonte: Rebecca Zisser/Axios e FOREIGN POLICY ILLUSTRATION/GETTY IMAGES

As neblinas no debate

Nos últimos anos, a discussão sobre a China e seu papel no mundo se reacendeu de forma bastante intensa, principalmente no Ocidente. A eleição do 45º presidente dos Estados Unidos da América, Donald J. Trump, e sua atuação desde 2016 de crescente retórica pautada no confronto contra a influência internacional do gigante oriental vem gerando ondas turbulentas no debate.

Parte disso é de senso comum, haja vista a crescente relevância da China no comércio internacional, contestando o papel histórico assumido pelos EUA no pós-Segunda Guerra Mundial (1939–1945), entretanto, existe uma certa confusão nesse movimento que torna a discussão nebulosa. A contradição aparente entre o autoritarismo do Partido Comunista Chinês (PCC) e sua natureza marxista com a existência de uma economia de mercado. As raízes orientais de sua sociedade e cultura nem sempre são compreendidas (caindo muitas vezes em estereótipos), ou seja, um passado histórico que soa distante de nossa consciência ocidental. Todas essas questões frente às ansiedades ainda latentes do período da Guerra Fria (1947–1991) até os dias atuais criam as mais diversas fantasias acerca da realidade do dragão vermelho.

Mas o que é de fato realidade? Como se articula esse autoritarismo de partido único autoritário com uma sociedade imersa no consumismo? Como um país governado por um partido comunista consegue manter a sua harmonia enquanto faz a manutenção de uma economia de mercado em seu âmago? Farei o esforço, portanto, de trazer considerações ao debate baseados em um estudo em curso para, com sorte, elucidar um pouco essa discussão, com vistas à complexa dimensão do assunto.

A tradição da centralidade Chinesa

Via de regra, a discussão contemporânea sobre a China começa com o sucesso da Revolução Socialista (1949)¹, contudo, quero propor uma breve retrospectiva histórica, antes de me aproximar dos acontecimentos centrais sob a chancela do PCC.

1.A Revolução Socialista de 1949 foi o processo responsável pela transformação da China em uma nação comunista, após longos anos de guerra civil entre as forças comunistas, lideradas por Mao Tsé-Tung e as forças nacionalistas, lideradas por Chiang Kai-shek.

A China é uma civilização milenar, que por muito tempo assumiu uma predominância econômica no mundo. Em 1600, estimativas do PIB de Portugal, Espanha e França combinados giravam em torno de US$43,2 bilhões enquanto que a China sozinha tinha um PIB de aproximadamente US$194,8 bilhões (referência de 2011). Já em 1820, pouco tempo antes do começo da Segunda Revolução Industrial, o PIB de toda Europa Ocidental e Oriental já totalizava US$379,6 bilhões, enquanto que a China sozinha atingia US$336 bilhões². A importância econômica chinesa antes do desenrolar do século XIX não pode ser subestimada, assim como seus impactos na consciência histórica do povo chinês.

2. Os valores dos Produtos Internos Brutos (PIB) apresentados foram obtidos no Maddison Project Database, que utiliza estudos históricos para a estimativa dos respectivos PIB per capita da época, e que foram devidamente calculados por mim com base nas populações do período.

Outra perspectiva interna para tal seria o legado da centralização política, obviamente não nos moldes de um Estado Moderno, que viria tão cedo no final do século XI A.C. com a dinastia Zhou (1046–216 A.C.), ao longo do Rio Huang Ho (Rio Amarelo). Com o passar dos séculos, a ascensão e queda de várias dinastias formaria a visão da China como nação de protagonismo central no mundo; onde todos os caminhos levam até o Império Chinês, jamais o contrário.

As três dinastias, Xia, Shang e Zhou (esquerda) e Rio Huang Ho (direita) — Fonte: newhistory e mundoatualidades2010

Porém, as Guerras do Ópio (Guerra Anglo-Chinesa) em 1839 seriam um grande momento de ruptura desta consciência, de forma traumática. A assinatura dos Tratados Desiguais³ em 1842, além da absoluta humilhação e perda de legitimidade da dinastia Qing (1644–1912), inauguraram um período de crises marcantes e sucessivas na história da China: uma epidemia de ópio, instabilidade política que duraria mais de um século, revoltas, guerras civis, caos institucional e a completa dissolução da noção de sua superioridade moral.

3. Os Tratados Desiguais ou Tratados Iníquos foram uma série de tratados firmados entre a China durante a Dinastia Qing com as potências industrializadas ocidentais entre meados do século XIX e o início do século XX, após sofrer derrotas militares pelas potências estrangeiras ou na presença de uma ameaça de ação militar por essas potências. Caracterizavam-se por privilégios econômicos de comerciantes europeus na China, além da concessão territorial dos “portos de tratado” como Hong Kong, Shanghai, entre outros.

Moralidade cuja a filosofia/religião confucionista desde muito tempo deu a base para a organização da sociedade chinesa, uma cosmologia centrada em torno dela para justificar a autoridade de suas classes mais altas em frente às massas. De maneira simplificada, a própria teoria de governo estava atrelada a ideia da boa conduta em uma concepção de sociedade pensada como uma grande família patriarcal:

Esse prestígio moral, por sua vez, dava uma influência sobre o povo: “O povo é como a grama, o governante como o vento”; conforme o vento soprava, a grama se inclinava. A conduta correta deu poder ao governante. Confúcio disse: “Quando a conduta pessoal de um príncipe é correta, seu governo é eficaz sem a emissão de ordens. Se sua conduta pessoal não for correta, ele pode dar ordens, mas elas não serão seguidas.

Assim, aquele no topo teria que ser suplantado por conselheiros que deveriam ser cultos nestas questões morais, a fim que a sociedade fosse governada de forma justa.

Na esquerda, Confúcio (551–479 A. C) e na direita, Mêncio ( 370 a.C.289 A.C), o mais eminente seguidor do confucionismo— Fonte: wikipédia

Contudo, após a derrota para o ocidente nas Guerras do Ópio e subsequente derrota para o Japão na Primeira Guerra Sino-Japonesa (1894–1895), uma nação subalterna à própria China até então, traria rachaduras à identidade chinesa e colocaria em cheque toda a sua estrutura milenar. A China deixaria assim de ser o mundo para ser uma parte dele, inaugurando um período de questionamento interno e de turbulências políticas e sociais, tomando muitas formas, desde um esforço de reforma do Estado Imperial Chinês aliado às ideias ocidentais, mas que não seriam compradas e implementadas em sua integridade. Democracia, constitucionalismo, direitos e liberdades individuais não seriam vistos como uma forma de participação em massa no processo de decisão política, mas como um dispositivo de comunicação entre ‘aquilo alto e que está embaixo’ e para a concentração de energias dispersas em localidades em uma forma central da construção de um estado na perseguição da ‘riqueza e poder nacional.

Os ideais de modernidade europeia demoraram a serem compreendidas dentro do debate, e sempre de forma tensa e conflitante com a tradição intelectual. Mesmo após a proclamação da República da China (1912–1949) com Sun Yat-Sen (1866–1925) na revolução de 1911 e uma tentativa direta na implantação de um governo nos moldes democrático-liberal, tais eventos culminariam em um período de “tutelagem política de tempo indefinido” sob a liderança de seu partido, o Kuomintang, fundado em 1894.

Movimentos como o do Quatro de Maio⁴ (1919), mesmo assumindo uma postura anti-confuncionista de bases liberais e democráticas, até conquistando pequenas vitórias, teria dificuldade de bater de frente com o peso da tradição.

4. Movimento anti-imperialista, cultural e político de manifestações estudantis contra a fraca resposta do governo chinês ao Tratado de Versalhes, após o fim da Primeira Guerra Mundial (1914–1919).

Guerra, revolução e reascensão

A primeira metade do século XX não apresentaria melhora, um país fragmentado e controlado entre senhores da guerra regionais (após a morte de Sun Yat-Sen), a ocupação japonesa da Manchúria (1931–1932), os portos dos tratados desiguais europeus e a crescente tensão no campo com os revolucionários socialistas chineses escalaria em 1937, com a invasão japonesa do continente, dando início à Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937–1945). Estimativas de mortes neste conflito variam, porém todas são na casa dos milhões de vidas perdidas.

É durante e após este imbróglio de caos e guerra que se inicia a discussão da revolução comunista após a Revolução da China e a rendição japonesa. Mao Tsé-Tung assume a liderança do Partido Comunista Chinês em 1945 e seus escritos sobre marxismo (Livro Vermelho) marcariam o debate no país, imerso na mesma tensão anterior: o passado do pensamento milenar chinês frente a ideias europeias, neste caso o marxismo ou marxismo-leninismo soviético.

Mao Tsé-Tung e o Livro Vermelho, que reunia um compilado de seus pensamentos Fonte: wikipédia e shaddad.tumblr

O que aconteceu daí para frente é de conhecimento comum: a reconstrução e coletivização no pós-Segunda Guerra, o desastroso Grande Salto para Frente (1958–1960), a Revolução Cultural, a morte de Mao e a sucessão de Deng Xiaoping (1904–1997) à liderança do partido.

5. Campanha lançada por Mao Tsé-Tung, visando a industrialização e a equidade em tempo recorde, acelerando a coletivização do campo através da Reforma Agrária e da industrialização urbana, que acabou por culminar na Grande Fome Chinesa (1959 e 1961).

6. Campanha político-ideológica colocada em prática por Mao Tsé-Tung após 1966 com o objetivo de neutralizar a crescente oposição de setores menos radicais do PCC, em decorrência do fracasso do plano econômico Grande Salto Adiante.

Aqui em geral começa a China que conhecemos hoje, e consequentemente, as confusões. O reposicionamento da China após o seu afastamento da URSS, a reaproximação com o primeiro mundo e a eventual abertura para uma abertura econômica na Era Xiaoping (1976–1989).

“Não nos importamos se o gato é branco ou preto. Se caça ratos, é um bom gato” -

-Deng Xiaoping

Esta famosa e polêmica frase de Xiaoping seria o começo do período de “Reforma e Abertura” da China, harmonizado com a doutrina dos “Quatro Princípios Cardeais” para equilibrar a transição:

1. Devemos seguir o caminho socialista

2. Devemos apoiar a ditadura do proletariado

3. Devemos defender a liderança do Partido Comunista

4. Devemos apoiar o marxismo-leninismo e o pensamento de Mao Zedong

Essas bases eventualmente formariam a ideia do “Socialismo com Características Chinesas”, uma conciliação entre as teorias marxistas e toda tradição e aprendizado intelectual chinês até então. Vindo desde Mao, com a argumentação de uma revolução guiada pelo campesinato, impossibilitado dentro do cânone Marxista, porém, com reinterpretações que possibilitariam ideias inimagináveis para o sucesso da revolução.

Entretanto, isso não responde diretamente a ambiguidade da possibilidade de coexistência de um espírito do socialismo e um capitalista ao mesmo tempo. A resposta para tal contradição vem da própria liderança do partido:

Devemos reconhecer que a evolução da principal contradição que a sociedade chinesa enfrenta não muda nossa avaliação do estágio atual do socialismo na China. A dimensão básica do contexto chinês — que nosso país ainda está e por muito tempo permanecerá no estágio primário do socialismo — não mudou.

-Xi Jinping no 19º Congresso do PCC

Aqui há uma explicação clara de consciência histórica da situação da China, que esclarece a teoria dentro do Marxismo, mas, simultaneamente, se liberta através de um pragmatismo das amarras ideológicas, para desenvolver outros aspectos que foram minados nos séculos anteriores:

Seguir o caminho do socialismo com características chinesas significa que iremos (…) assumir o desenvolvimento econômico como tarefa central, aderir aos Quatro Princípios Cardeais e perseverar na reforma e abertura, liberar e desenvolver as forças produtivas, consolidar e melhorar o sistema socialista, desenvolver a economia de mercado socialista, a democracia socialista, uma cultura socialista avançada e uma sociedade socialista harmoniosa e tornar a China um país socialista moderno próspero, forte, democrático, culturalmente avançado e harmonioso.

-Hu Jintao no 17º Congresso do PCC

Aqui, quero enfatizar novamente a conciliação de uma teoria externa à China capaz de garantir ordem, estabilidade e riqueza material sem fugir de sua própria teoria. A expressão disso é clara quando se atenta aos dados econômicos mais simples: o PIB Chinês sozinho se aproxima ao de toda União Europeia, enquanto a UE em 2019 totalizava US$16,604 trilhões, a China por si só chegava em US$11,537 trilhões (base na cotação do dólar de 2010). No período de uma ou duas gerações, o país saiu da condição de humilhação e destituição, pobreza e miséria, guerra e fragmentação para uma posição de questionamento da hegemonia americana atual. O PIB de 2019, para dado de comparação teve um crescimento de 90 vezes o PIB de 1960, enquanto a economia global apresentou um crescimento de 7,5 no mesmo período. Isso claramente veio às custas de um crescimento da desigualdade, em 1990 o Índice de Gini da China era de 32,2 enquanto em 2010 chegou ao maior valor no século de 43,7.

Fonte: Federal Reserve Database
Fonte: World Bank Database

Somado a uma incorporação e aceitação maior daqueles empresários do setor privado em 2002 com Jiang Zemin (1993–2003) e a introdução da doutrina da “Tríplice Representatividade” em que o partido deve representar:

(…) Forças produtivas avançadas, a orientação da cultura avançada da China e os interesses fundamentais da esmagadora maioria do povo chinês.

As “Forças Produtivas Avançadas” na prática autorizou e reconheceu a participação política de atores do setor privado, que até então conviviam em um limbo jurídico, alvos de escárnio visto o caráter estatal da economia até então.

Por fim, careço de uma conclusão sobre tudo que foi exposto acima pela própria natureza de um estudo em curso, com sorte este incompleto mosaico explicitou a complexidade, assim como a tensão na formação da doutrina de Estado Chinês pelo PCC e o impacto de uma experiência histórica singular nesta sociedade e economia, com as ideias que estavam por trás deste processo.

Em tempos de desinformação espero que possa ter dado algumas ferramentas para a melhor compreensão deste cenário complexo e multifacetado.

Referências

1.DE PLEIJT, Alexandra; VAN ZANDEN, Jan Luiten. The Maddison Project. 2020. Acesso em: 15 de novembro, 2020.

2.FAIRBANK, John King; GOLDMAN, Merle. China: A new history. Harvard University Press, 2006.

3.JENCO, Leigh. Chinese Polítical Ideology. In: FREEDEN, Michael; SARGENT, Lyman Tower; STEARS, Marc (Ed.). The Oxford handbook of political ideologies. OUP Oxford, 2013.

4.XIAOPING, Deng. Uphold the Four Cardinal Principles. Diário do Povo. 1979. Disponível em: http://en.people.cn/dengxp/vol2/text/b1290.html. Acesso em: 15 de novembro, 2020.

5. JINPING, Xi. Xi Jinping’s report at 19th CPC National Congress. Xinhua. Beijing: 2017. Disponível em: http://www.xinhuanet.com/english/download/Xi_Jinping's_report_at_19th_CPC_National_Congress.pdf. Acesso em: 15 de novembro, 2020.

6. HU JINTAO’S REPORT AT THE 17TH PARTY CONGRESS. 2007. Disponível em: http://www.china.org.cn/english/congress/229611.htm. Acesso em: 15 de novembro, 2020.

7.BANCO MUNDIAL. China — World Bank Data. 2020. Disponível em: https://data.worldbank.org/country/china. Acesso em: 15 de novembro, 2020.

8. 16th NATIONAL PEOPLE’S CONGRESS. Full Text of Resolution on Amendment to CPC Constitution. 2002. Disponível em: http://www.china.org.cn/english/2002/Nov/48799.htm#. Acesso em: 15 de novembro, 2020.

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