Desigualdades raciais na trajetória dos jovens no mercado de trabalho

Maria Ap Barrem de Souza
Heterodoxos
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10 min readNov 15, 2020
Fonte: Tumisu/Pixabay e Getty Images/iStockphoto/elenabs

À luz do contexto histórico e das disparidades raciais ainda fortemente marcadas no Brasil, é crucial compreender as especificidades envolvidas na inserção de jovens brasileiros no mercado de trabalho. Essa fase merece destaque uma vez que vem acompanhada de uma gama de novas dinâmicas para a vivência desses jovens, sendo vista como um marco do início da vida adulta, um meio para conquista da independência financeira, uma forma de alcançar a realização das aspirações pessoais, entre outros.

O problema que se nota, entretanto, é que o modo como ocorre esse processo, bem como seu significado, é diferenciado de acordo com as características pessoais e com o tipo da dinâmica social na qual se está inserido. É possível destacar que alguns elementos, como raça/cor, escolaridade e variáveis socioeconômicas, causam impacto significativo, tornando as experiências dispares. Partindo daí, atentando-nos ao vínculo imprescindível entre educação e perspectivas de empregabilidade e de mobilidade social, percebe-se que é fundamental examinar a dimensão das desvantagens às quais estão sujeitos os jovens negros em contraste com seus pares brancos de acordo com o nível educacional e quais os resultados que isso pode trazer em suas trajetórias de vida. Faremos algumas reflexões sobre esses pontos, mas, antes, é necessário que se entenda a importância dos quesitos em face.

O grau de escolaridade e sua influência no ritmo de inserção

Aqui compreende-se qual nível de escolarização alcançado, seja em casos de conclusão ou de interrupção dos estudos, como em casos nos quais a educação ainda esteja em curso e, até mesmo, naqueles em que os indivíduos nunca tenham dado início a sua trajetória escolar. Essa variável — grau de escolaridade — é de essencial importância para a Teoria Neoclássica, que vem sendo amplamente empregada nas análises brasileiras desde 1960. Segundo essa vertente, seria através do montante de capital humano agregado¹ que se poderia expandir a produtividade no trabalho, garantindo acesso a níveis de remuneração mais expressivos e a maiores oportunidades de empregabilidade. Assim, o que explicaria as diferenças na inserção laboral e nos salários de grupos raciais seria apenas a expectativa de produtividade associada ao grau de escolaridade. Por essa visão, seria através da expansão da educação que as desigualdades sociais poderiam ser resolvidas, desconsiderando assim a ação da discriminação racial nas dinâmicas trabalhistas e nas estruturas sociais que estão presentes na formação e no dia-a-dia dos indivíduos.

1. A teoria do Capital Humano teve como precursores dois influentes economistas: Theodore W. Schultz, considerado o pai do capital humano, e Gary Becker, responsável por ampliar a abordagem para áreas consideradas restritas a sociologia. Schultz voltou sua linha de pesquisa para a economia agrícola, enquanto Becker focou na análise em eventos de como preconceito racial, formação familiar, prática religiosa e criminalidade a partir de trabalhos que tinham por base a aplicação de modelos de caráter neoclássico. Essas questões ganharam uma abordagem fundamentada na adoção de pressupostos clássicos da Teoria Econômica Neoclássica, como é o caso da racionalidade e a busca pela maximização de utilidade.

Outras correntes de pensamento, ainda que discordem da concepção neoclássica, também tomam o nível educacional como variável relacionada ao tipo da inserção observada nos indivíduos, mas não a única. O ponto a se discutir é que, junto aos diferenciais de escolaridade, são somadas as desigualdades de raça e as dificuldades que se apresentam com a influência do racismo nas dinâmicas sociais. Sendo o Brasil um país com histórico de três séculos de escravidão e cuja base social foi gerida sob esse contexto, verifica-se o surgimento de uma sociedade com disparidades raciais fortemente marcadas. Com base nesse histórico, Milena de Oliveira Santos (2018) traz em sua tese um breve panorama das relações raciais do país. Milena aponta que a educação primária pública foi instituída inicialmente em 1827 pelo decreto da Primeira Lei Geral de Ensino, que dava aval para a criação de colégios públicos nas vilas mais populosas e garantia às meninas o acesso a alguma forma de educação, contudo, foi somente em 1878 que se teve uma primeira medida inclusiva, que retirava proibições anteriores e autorizava, de forma expressa em lei, o acesso dos negros libertos maiores de quatorze anos à cursos noturnos. Já a inserção escolar da população negra apenas passou a ser vista como algo vantajoso somente após 1934, em decorrência da queda do fluxo imigratório de europeus e do consequente aumento da participação dos negros na indústria em desenvolvimento.

“No caso brasileiro, a população negra e as outras minorias políticas foram sistematicamente excluídas dos serviços básicos que deveriam ser garantidos a toda à população brasileira. (…) Até meados do século XX, não se reconhecia como dever do Estado o oferecimento de educação pública e gratuita para todos.”

— Milena de Oliveira Santos (2018)

Uma vez que níveis mais altos de escolaridade estão associados diretamente a melhores perspectivas de salário e às carreiras de maior prestígio, ao menor risco de desemprego e à garantia de bem-estar, a partir da restrição das possibilidades de acesso à educação são constrangidas também as expectativas de empregabilidade, de ganhos financeiros e de uma possível ascensão social da população negra.

Racismo institucional

De acordo com Silvio de Almeida, a concepção individualista do racismo, aquela que circunscreve a ação discriminatória evidente ao indivíduo e que é considerada socialmente como um problema de caráter ou passível de correção por uma readequação comportamental, não dá conta de abarcar a profundidade ou de entender as raízes sociais desse problema. Mesmo que os casos de racismo individual venham progressivamente sendo repudiados de maneira pública, é preciso destacar a importância da concepção de racismo institucional, pela qual o racismo é “tratado como resultado do funcionamento das instituições que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios a partir da raça.”

Silvio Luiz de Almeida é um advogado, filósofo e professor universitário. É autor dos livros “Racismo Estrutural (Polén, 2019) “Sartre: Direito e Política” (Boitempo, 2016) e “O Direito no Jovem Lukács: A Filosofia do Direito em História e Consciência” (Alfa-Ômega,2006). Também preside o Instituto Luiz Gama — Fonte: revistaafrimativa e amazon.com

Definidas como sistemas de regras e padrões de pensamento comportamento socializados e com alguma recorrência no tempo, as instituições sofrem renovações sempre com intuito de adequar eventuais rearranjos e conflitos sociais, ajustando ou criando mecanismos e regras que reproduzam a organização social já vigente. É desta forma que, por meio do racismo institucional, nota-se o “fracasso coletivo de uma organização para promover um serviço apropriado e profissional para as pessoas por causa da sua cor, cultura ou origem étnica.” (SAMPAIO), garantindo a continuidade da forma estrutural do racismo e perpetuando a ordem social que privilegia determinados grupos raciais.

Nesse sentido, o racismo institucional afeta o modo de acesso a recursos e mantendo o enfoque na educação, é possível associar o processo histórico de limitação, atraso na inserção e precarização da escolaridade conferida à população negra como fruto da reprodução do racismo institucional.

As disparidades na busca pelo emprego

Para verificar tais condições afetadas pela institucionalização do racismo, foram tomados como base os dados coletados entre 2012 e 2015 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), através do questionário School-to-Work Transition Survey (SWTS) que levantou informações de pessoas com idades de 15 a 29 anos. Mantendo o enfoque na raça/cor e escolaridade do indivíduo, definiram-se pontos passíveis de análise compreendidos como significativos para expressar um pouco da dimensão e da profundidade das diferenças que afetam os grupos raciais em relação uns aos outros, buscando expor os maiores obstáculos encontrados durante o processo de busca por emprego.

Primeiramente, a qualidade da inserção no mercado de trabalho é um tópico fundamental da discussão por discorrer sobre o caráter das atividades exercidas em função da raça/cor e escolaridade. Aqui, cabe observar elementos indicativos dessa inserção, como: quais categorias de ocupação os jovens brancos e negros desempenham mais comumente, bem como se tiveram vivência como estagiários ou aprendizes; qual a modalidade de ensino que tiveram acesso — entre a regular, Educação de Jovens e Adultos (EJA) ou ensino técnico/profissionalizante — ; qual o grau de satisfação deles com seu cargo, se a remuneração está de acordo com a escolaridade do indivíduo; até que ponto acreditam que sua formação é pertinente com o desempenho de sua função; as razões que levam a abandonar sua profissão ou a mudar sua situação de trabalho. Esses pontos foram destacados por serem considerados adequados para que se possa efetuar uma análise satisfatória do cenário no qual se desenvolvem as condições de trabalho e as perspectivas de empregabilidade no Brasil.

É, ademais, interessante examinar o índice de rotatividade no trabalho, ou seja, se o nível de educação associado ao indivíduo proporciona a ele uma maior estabilidade e previsibilidade. Em casos de intensa rotatividade, frequentemente notam-se restrições ao acesso a crédito e a outros serviços que possibilitariam a obtenção de bens materiais e imateriais e que, desta forma, assegurariam um nível de bem-estar social mais elevado. Para isso, o questionário contava com perguntas sobre a duração média das atividades empenhadas, quais variedades de ocupação têm maior índice de rotatividade por raça/cor e escolaridade, as condições sociais que afetam a permanência no emprego e as razões predominantes que acarretam o fim desses vínculos de trabalho.

Quanto ao nível de escolaridade dos pais e capital social herdado, uma vez que a teoria que prevê a existência de correlação entre o nível de escolaridade e o capital social herdado dos pais com as oportunidades de inserção, qualidade e rotatividade laboral dos filhos, ao possuírem alto nível de escolaridade, maiores seriam as chances de os pais estarem vinculados a atividades de maior retorno financeiro e, desta forma, prover aos filhos uma renda total elevada. Para mensurar a influência que esse aspecto detém, pelo questionário foi perguntado até que ano/série os pais estudaram e suas ocupações, além de pedir para que os jovens desalentados informem o quanto acreditam que a formação recebida no passado o ajuda a encontrar trabalho.

Ainda nesse tópico, Strawiński (2011) defende em sua obra a existência de uma dependência entre expectativas de educação e a renda familiar, segundo a qual, pais com menor grau de formação podem não conseguir instruir seus filhos de maneira eficaz, limitando a criação de expectativas educacionais e suas aspirações profissionais. O autor argumenta que indivíduos provenientes de famílias com menor nível de renda têm maiores chances de adentrar no mercado de trabalho precocemente pela necessidade de complementar a renda familiar, impossibilitando que se chegue a altos níveis educacionais.

Outro âmbito no qual se expressam as disparidades é o da necessidade de ter que conciliar trabalho e estudo, considerando a situação referentes àqueles que se dedicam simultaneamente às duas atividades. Esta é uma dimensão relevante por sua capacidade de expor os fatores envolvidos que os motivaram a optar por essa situação e o período em que as realizavam, podendo denotar um provável contexto de vulnerabilidade social. Além disso, também é importante ressaltar que tal rotina ocasiona, frequentemente, muito desgaste para o indivíduo, em razão da grande carga horária e energia demandada, o que resulta em uma execução ineficiente ou debilitada dessas atividades.

Cor, classe social e nível educacional

Por fim, a respeito do impacto do nível educacional na redução de distâncias sociais, ainda é preciso avaliar se o avanço nos ciclos de educação é capaz de viabilizar a diminuição das diferenças sociais e de classe entre os jovens no país. Tendo em vista as dificuldades impostas pelo racismo estrutural, poder-se-ia descobrir a qual condição social pertencem a família durante a infância desse jovem e a comparar com o período após a escolarização. Deste modo, seria possível inferir sobre a intensidade mobilidade social proporcionada pela escolaridade de acordo a raça/cor do indivíduo e com o grau de educação que alcançado, ou seja, medir qual a mobilidade Inter geracional proporcionada pela educação.

Fonte: elaboração própria

Com os dados obtidos e reunidos, a proposta do gráfico 1 era apontar a relação de proporções dos respondentes acerca de como raça/cor e classe social estão distribuídos com base no grau de escolaridade. Nota-se que a percentual de jovens pretos e pardos com, no máximo, ensino médio, é mais significativo do que no caso dos seus pares brancos para todos os níveis sociais. No caso desses últimos, fica claro o maior contingente com nível superior conforme cresce a posição no estrato social.

Fonte: elaboração própria

Já o gráfico 2 busca apresentar a proporção de indivíduos entrevistados segundo o ritmo de entrada no mercado de trabalho, expresso na idade em que se efetiva a inserção através da conquista do primeiro emprego, e de acordo com a raça dos respondentes. Nota-se que, independentemente do quão cedo ocorre a inserção, os brancos têm níveis maiores de escolaridade, ficando mais nítido nas proporções referentes ao ensino superior. Os pretos são aqueles com pior nível de escolaridade, tendo a maioria dos respondentes alcançado somente o ensino fundamental ou ensino médio apenas. Pardos ficam em uma posição intermediária.

Resultados

Portanto, embora submetidos à uma análise preliminar, os dados recolhidos no questionário mostram uma tendência significativa dos percentuais obtidos em corroborar com as reflexões feitas anteriormente. Isso reforça a consideração de que quanto mais anos de educação melhores são as perspectivas de empregabilidade, o que se espera é que a limitação do acesso a possibilidade de qualificação prejudique a qualidade de inserção na força de trabalho. E, embora tenha sido possível identificar uma significativa redução das disparidades de acesso à educação entre brancos e negros nas últimas décadas, ainda há longo caminho a percorrer para alcançar a igualdade de oportunidades, visto que medidas públicas para solucionar a desigualdade de acesso à educação, como as cotas raciais, não raro têm sua aplicabilidade contestada politicamente.

Fica evidente, então, a influência da discriminação racial para a continuidade da estrutura de poder racista, engendrada desde o período escravocrata. Não é justificável ignorar o impacto do racismo institucional, em suas diversas expressões, como propões os estudos neoclássicos acerca da desigualdade, pois ele se mostra presente desde as primeiras instâncias da vida em sociedade, como na restrição à educação e nos impactos daí decorrentes sobre a forma da inserção laboral. Sendo assim, mesmo em grupos de mesmo grau de escolaridade, raça e cor continuaram sendo elementos determinantes para a compreensão das diferentes vivências e das desigualdades encontradas no país.

Referências

ALMEIDA, Sílvio. Racismo Estrutural. Pólen Produções Editoriais. São Paulo, 2019. (cap. 1)

CHADAREVIAN, P. C.. Elementos para uma crítica da teoria neoclássica da discriminação. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política 25, 104–132, 2009.

HASENBALG, Carlos Alfredo; DO VALLE SILVA, Nelson; LIMA, Marcia. Cor e estratificação social. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1999.

SANTOS, Milena de Oliveira. Cotas raciais nas universidades federais brasileiras: desigualdade no acesso e estratificação horizontal em 2010 e 2016. 2018. Dissertação (mestrado) — Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP.

STRAWIŃSKI, Paweł et al. Educational Aspirations. Working Paper (№2011–10). University of Warsaw: Faculty of Economic Sciences, 2011.

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