Economia Pol. e Governamentalidade: arranjos para um concerto utilitário

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Heterodoxos
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20 min readMar 22, 2021
Fontes: Abraham Bosse, courtesy of The British Museum e SOPHIE BASSOULS/BRIDGEMAN IMAGES

Texto elaborado com base na Monografia apresentada ao Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), “Neoliberalismo e governamentalidade em Foucault: Transformações na economia política, do liberalismo ao neoliberalismo”.

Disponível em: https://cutt.ly/fj7a1It.

O utilitarismo está inscrito no desenvolvimento interno à racionalidade de um modo de governo que funciona com base na limitação de si mesmo, e essa limitação vista como elemento fundamental, central, explicador, desse estilo de governo a que se convenciona chamar liberalismo. É nesse sentido que o liberalismo pode ser entendido como algo que produz juridicamente liberdades, como forma de controlar a si mesmo e os seus governados, é assim que esse modo de governo se reproduz. Ao mesmo tempo, encara como natural a existência de algo como o mercado, que é, supostamente, um fato produtor de liberdades.

O movimento histórico que sublinha esse movimento é a transformação nas técnicas de poder do direito do soberano de dizer não aos seus súditos, e o momento em que a própria relação soberano-súdito começa a definhar. A velha concepção ético-jurídica do governo e do exercício da soberania começa a sofrer mutações em direção a algo novo. Principalmente, a problemática do ‘não’ na ação governamental perde força, para algo como o problema de como dizer ‘sim’, ou de como o governo deve governar com base na positividade do poder; o saber como dizer sim, como permitir o desejo, o amor a si mesmo, o egoísmo, de maneira que se possa, como que por uma mão invisível, produzir os efeitos benefícios que se deve produzir. Na verdade, a modernidade redescobre o desejo, mesmo antes do anúncio do inconsciente, e portanto, que é necessário governá-lo ou libertá-lo; libertá-lo por uma via que usa o mercado utilitário para afirmá-lo é, no entanto, outra forma de governo. Uma que, ao invés de se situar na repressão do desejo, funciona, continuamente, governando em referência a ele. Governar em relação ao desejo significa governar levando em conta um sistema discursivo de produção de desejos, produção cujo outro lado é a exclusão de formas de vida e de desejos outros. É por isso que o liberalismo pode ser considerado também como essa invenção da forma do poder que induz uma reflexão acerca das possíveis criações de novos meios, ou espaços de liberdade, que incidem diretamente em novas formas de controle.

O Liberalismo como uma Forma de Razão de Estado

Fontes: netmundi e infoescola

Primeiro ponto (Foucault, 2011), diferentemente do pensamento jurídico do século XVI nas disputas contra a Raison d’État, a Economia Política não se desenvolveu fora da Raison d’État, nem era contra ela no começo. Em vez disso, estabeleceu-se na faixa de objetivos definidos pela arte do governo, juntamente com a Raison d’État, que é, naturalmente, o enriquecimento do Estado, simultaneamente com o crescimento da população e os meios de subsistência. Supunha-se que os Estados europeus alcançariam um rico equilíbrio se seguissem o proposto por essa Raison d’État da época; portanto, a economia política aparece primeiro dentro da racionalidade da arte de governar dos séculos XVI e XVII, ao invés do posicionamento externo como o do pensamento jurídico.

Segundo, talvez uma consequência do primeiro, o objetivo da Economia Política inicialmente não era questionar a Raison d’État em sua autonomia política e seu projeto político; de fato, foi contrariando completamente o pensamento jurídico que os fisiocratas concluíram que o despotismo ‘total’ é necessário (Foucault, 2011). A análise dos fisiocratas estava na direção de dizer que o poder político deveria ser sem limitação externa e outros limites além daqueles que surgiam por si mesmo — e esse era o despotismo deles. A ideia fisiocrata de governar diz respeito a um governo econômico, mas a um governo econômico que não é limitado por nada, exceto por uma economia que é definida e totalmente controlada por ele. Nesse primeiro nível, a economia política não se preocupa em se posicionar à parte da Raison d’État. É claro que o projeto de Adam Smith era bastante diverso disso, não deveria haver despotismo do Estado, mas, e no entanto, seu projeto de economia política implica uma Raison d’État muito diversa e específica, na qual as ações do Estado dependiam do normativo e da existência de leis naturais na economia. Foucault (2011) cita os fisiocratas para discutir os primórdios da Economia Política, que é uma tentativa de criar um modelo para entender, e ao mesmo tempo criar, as primeiras mudanças na razão do governo, tentando alocar um lugar para o governo em um mundo econômico regido por leis econômicas.

Os fisiocratas inovaram e usaram sua influência para fazer nascer uma nova forma de governo que usa o laissez-faire, mas que ao mesmo tempo inaugura um conjunto de mecanismos de segurança que visa administrar as séries, que só podem ser controladas por uma estimativa de probabilidades, uma série aberta que exige exatamente a necessidade de mecanismos de segurança. Sendo assim, é necessário que o soberano seja absoluto para atuar no meio e nas séries para instalar esses mecanismos de segurança, sem, no entanto, comprometer a liberdade do mercado de se ajustar.

O que Abeille e os fisiocratas e teóricos da economia do século XVIII procuraram obter foi um dispositivo que, conectando-se à própria realidade dessas oscilações, vai atuar de tal modo que, por uma série de conexões com outros elementos da realidade, esse fenômeno, sem de certo modo nada perder da sua realidade, sem ser impedido, se encontre pouco a pouco compensado, freado, finalmente limitado e, no último grau, anulado

- Foucault, 2008.

Simultaneamente, para os fisiocratas, embora o soberano seja absoluto, a forma de relação soberano-súdito é diferente quando comparada ao modelo mercantilista ou cameralista de tratar a população. Se para esses últimos a população era um instrumento que garantia ao Estado certa riqueza, ela devia, por outro lado, ser enquadrada por um sistema regulamentar, disciplinada, considerada na relação súdito-soberano e, portanto, passível de ser convocada ao voluntarismo autoritário sobre o que fazer, quando fazer, e como. Os fisiocratas e os economistas do século XVIII vão encarar a população como um conjunto de processos, que têm um apelo natural, sem deixar de ser acessível ao governo, e que deve ser administrada (Foucault, 2008, p. 92). Em contraponto à ideologia de Condillac, que embasou técnicas e práticas disciplinares, tem-se com a filosofia utilitarista e dos fisiocratas essa novidade do governo nas populações (Foucault, 2008).

A população, ao contrário do súdito, é um campo aberto de normalização. A disciplina da velha forma de poder isola, diz o que fazer, quando fazer através da normação — a lei é norma, é regra prescrita. Parte-se da norma e, através do adestramento disciplinar, chega-se ao normal. No campo aberto dos estudos das populações, e nas técnicas de poder que surgem com elas, ao contrário, tem-se o normal e o anormal e a partir das curvas de normalidade que, funcionando umas em relação às outras, ocorre a normalização-norma, de maneira que as curvas mais desfavoráveis sejam trazidas às mais favoráveis (Foucault, 2008). O operador normal — distribuições normal-norma — tem como consequência que a norma se deduz do normal, ou é através dos estudos das normalidades que a norma se fixa e desempenha seu papel operatório. Logo, não se trata mais de uma normação, mas de uma normalização. Esse campo foi aberto e cristalizado em um período histórico mais ou menos longo, e se fincou, de fato, no utilitarismo.

Apesar do soberano absoluto, a maneira de guiar a população não é através da obediência, ou de uma vontade superior, mas através de fazer com que os elementos da realidade funcionem uns em relação aos outros, que se conecte aos processos físicos, naturais, ou aos elementos da realidade. Isso tenderia a uma anulação dos fenômenos não pela proibição, mas pela anulação dos fenômenos pelos próprios fenômenos. Trata-se de fazer surgir um certo nível, ou uma certa dimensão em que a ação dos que governam é necessária e suficiente, pois em contato direto com os ‘mecanismos da realidade’. Nesse sentido, a sociedade é decomposta em uma certa física em que o nível de pertinência é a população, e o indivíduo, subproduto dessa relação. O panóptico já nasce como o mais antigo dos sonhos: que nenhum dos súditos escape, ou seja desconhecido, que haja perfeita transparência nesse nível.

Terceiro ponto, a Economia Política reflete precisamente sobre as práticas governamentais, seus efeitos, consequências; ao invés de colocar na origem o direito, não pergunta o que autoriza o governo a governar, mas as consequências práticas de ações específicas do governo. Por exemplo, os fisiocratas não questionaram o direito do soberano de proteger os produtores de trigo da concorrência externa. Em vez disso, perguntaram: o que acontecerá se, em um determinado momento, protegermos nossos produtores de trigo devido à concorrência internacional? Não importa, para os fisiocratas, nem para outros grandes economistas políticos, o direito de tal ação, mas se o resultado é positivo, dando uma razão de ação para essa prática governamental, ou tornando-a contraditória (Foucault, 2011). Para Smith, por exemplo, proteger por altas tarifas ou por absoluta proibição de importações produtos que poderiam ser produzidos internamente tem como resultado a criação de monopólios que não necessariamente dão ao capital geral melhor destino segundo os interesses da sociedade — para além de questões relativas a preço, influência no comércio internacional, problemas políticos decorrentes, desigualdades etc. Enfim, o que importa são as consequências das ações, analisadas em termos de vantagens e prejuízos e em termos práticos com elementos econômicos tais como preço, taxas, juros etc.

Quarto, para a economia política, a prática governamental possui processos, fenômenos e mecanismos que ocorrem de maneira inteligível. Alguns deles, depois de reconhecidos, devem, é claro, ser impedidos ou reforçados pela ação do governo. Além disso, a Economia Política não descobre leis naturais antes da ação governamental, ela simplesmente pressupõe que a prática governamental gera consequências mais ou menos mecânicas, sistemáticas e possíveis de se arranjar — nesse sentido, (um outro) natural. Os objetos da prática governamental são específicos em sua “natureza”. É a maneira de descobrir a natureza e suas ‘leis’, um processo contínuo no qual todas as coisas se colocam em seu equilíbrio natural e funcionam sob a lógica geral da mecânica clássica. Então, em vez da natureza como algo a não ser tocado, a natureza renasce com uma característica imersiva de estrutura hipodérmica (Foucault, 2011), afogando tudo o que é, inclusive a atividade governamental, em suas regras indispensáveis. A economia política aparece, portanto, como o equivalente natural da análise da atividade governamental. A lei enquanto ação disciplinar muda para a lei enquanto ordenadora de realidades e de séries de realidades. A naturalidade da população é então acessível aos agentes e técnicas de transformação, contanto que esses agentes e essas técnicas sejam esclarecidos, refletidos, analíticos, calculados, calculadores. É necessário agir sobre uma série de fatores, de elementos que estão aparentemente longe da própria população, longe da sua fecundidade, da sua vontade de reprodução — da sua sexualidade.

Com isso, Foucault vê os economistas como hereges; hereges não mais, como no caso dos políticos, em relação ao grande pensamento cosmoteológico da soberania, mas heréticos em relação ao pensamento organizado em torno da razão de Estado, em relação ao Estado, ao Estado de polícia, às suas regras implacáveis. Os economistas inventaram uma nova arte de governar, sempre em torno da razão de Estado, mas a razão de Estado modificada por algo novo, esse novo domínio que era a própria economia. Esquematicamente, então, temos a governamentalidade dos políticos que nos dá a polícia, e a governamentalidade dos economistas, que introduz algumas linhas fundamentais do governo moderno e contemporâneo.

Princípios da nova razão de Estado

Nos fisiocratas, é possível identificar quatro elementos ou princípios fundamentais que inauguram essa nova forma de governo. O primeiro princípio pode ser identificado como princípio dos preços competitivos, isto é, se se quiser que os cereais sejam abundantes, e com isso se quiser evitar a escassez de cereais, é necessário que os cereais sejam bem pagos, ou melhor, que eles sejam competitivos, cujo preço é o preço natural, ou de mercado, de qualquer maneira, que o preço faça, pelo menos, compensar a produção — eis a primeira identidade básica do campo econômico, que haja lucro, mas não qualquer lucro, um ‘lucro natural’. Esse princípio se opõe ao princípio mercantilista anterior de depressão dos preços dos cereais. Com isso, os economistas não só opõem uma tese em relação a outra, anterior, mas introduzem questões pertinentes como a política agrícola, o lucro agrícola, as possibilidades do investimento agrícola que configuram as possibilidades do mieux-vivre. Para que assim seja, há de haver um recentramento da análise na produção, nas condições de produção, que são também as condições do melhor-viver. Centramento, também, no problema do retorno, nos esquemas de circulação da renda, ou de como a renda retorna para o seu produtor primeiro, para a terra, ao campesinato. Terra, produção, retorno aparecem como objeto essencial da governamentalidade (Foucault, 2008).

Segundo princípio, que pode ser formulado a partir da análise dos fisiocratas, é que, a partir do preço justo, ou da boa remuneração do produto a partir do preço natural, cria-se o equilíbrio. Se o preço for bom, não só vai haver produção no âmbito do país, como também vai haver escoamento dos produtos de outros países em direção ao mercado de boa remuneração. O que esse princípio questiona? Além do objeto urbano como fonte da riqueza, questiona a regulação, instrumento principal da polícia, a regulação no modo de uma disciplina generalizada. Os economistas vão pensar a regulação enquanto não flexíveis, isto é, a ação reguladora do Estado deve ser limitada, porque há um curso natural que não se pode modificar e que, precisamente, tentando modificá-lo, só se faz agravá-lo. Não só as coisas não são flexíveis, como são recalcitrantes, voltam-se contra aqueles cuja força é de regulamentação ou de modificação do seu curso natural. Sendo assim, a ação reguladora é inútil, já que há uma certa regulamentação natural. Princípio, portanto, da regulamentação natural a partir do preço natural (Foucault, 2008).

François Quesnay (1694–1774) — Fonte: Wikipédia (domínio público)

Terceiro princípio característico dos economistas: a população não constitui um bem — a riqueza do Estado — como no sistema mercantilista. A riqueza do Estado não é exatamente a boa qualidade dos seus elementos populacionais. O número da população ou a concentração da população não é, em si mesmo, um valor para os economistas. As principais preocupações com a população são que as pessoas tenham subsistência (não precisam ter salários baixos) e que tenham interesse em trabalhar. No mais, o que importa é que os preços sejam sustentados, e, principalmente, não sejam impedidos de atingir o patamar do preço ótimo. Há um número ótimo de pessoas que sustenta o preço ótimo. Então, esse número não é absoluto nem deve ser definido absolutamente pelo soberano. Na verdade, o número de pessoas vai se ajustar por si próprio. Em uma epidemia, por exemplo, as pessoas vão morrer ou, caso haja escassez e fome, há de haver uma variação do número de pessoas de volta ao ponto de ajuste, isto é, o ponto suportado pela economia. Quesnay, em particular, insiste nesse ponto, o número de pessoas é determinado pela situação econômica. Tem-se então que a população não é um dado extensamente modificável pelo governo, nem deve ser seu objeto direto, mas deve ser deixado flutuar (Foucault, 2008).

Último princípio: há de se deixar agir a liberdade entre os países. Talvez nenhum dos princípios anteriores seja possível sem que haja esse princípio de liberdade, em paralelo com a criação de mecanismos de segurança. Se no mercantilismo o objetivo era o fortalecimento do Estado a partir de um saldo positivo na balança comercial, o mais ouro, agora vai se tratar não de repatriar ouro, mas de estabelecer integrações e interações entre os países no circuito produtivo, por meio de mecanismos de regulação que vão atuar no interior de cada país. Esses mecanismos são dados a partir do jogo da concorrência, vai-se deixar valer a concorrência — não mais entre os Estados como na forma anterior -, mas entre os particulares, e é precisamente através desse jogo concorrencial entre os particulares que a concorrência toma a nova forma dos Estados plurais. É esse jogo do lucro máximo dos particulares que permite agora a felicidade do Estado e, por conseguinte, da população. O bem de todos é assegurado pelo comportamento dos particulares, isto é, dos indivíduos, elementos da regulação natural econômica, contanto que o governo saiba deixar agir esses elementos de regulação, contanto que o Estado governe o menos possível. Tem-se então um outro governo, ou um outro papel do Estado; não mais o princípio do bem de cada um, mas o regulador de interesses, não mais agindo como princípio transcendental e sintético da felicidade de cada um, a ser transformada em felicidade de todos. O novo responsável por coordenar os interesses individuais, por fazer valer a felicidade de todos e de cada um é o mercado, o mercado como regulador é capaz de coordenar os indivíduos para encontrar a felicidade de uma maneira independente da autoridade do Estado, e, supostamente, não enviesada, isto é, em regime de liberdade (Foucault, 2008).

Então, algumas modificações essenciais trazidas pelos fisiocratas — os primeiros economistas: o que antes era um bom governo, na tradição medieval e renascença, era aquele que era bem querido por Deus. Localização então de um bom governo nesse marco cosmoteológico natural. Há a ruptura com essa velha cosmoteologia antes dos economistas pelos políticos, isto é, o Estado não deve seguir nenhuma natureza a não ser a sua própria. Com os economistas reaparece, se recoloca uma nova naturalidade, a desses mecanismos que fazem um auto-ajuste; quando os preços sobem, se se deixar que subam, eles vão se deter sozinhos, o que faz com que a população seja atraída por altos salários, até um ponto em que os salários se estabilizam e a população não aumente mais, afinal salário também é preço. Portanto, não mais a naturalidade do cosmo, mas uma naturalidade oposta à artificialidade política da polícia. É uma natureza específica das relações dos homens entre si, no que acontece quando coabitam, quando trabalham, quando produzem. É a naturalidade da sociedade que reaparece com os economistas.

Portanto, para a Economia Política, a atividade governamental só terá êxito se suas ações respeitarem as leis da natureza; caso contrário, haverá consequências necessárias e inevitáveis ​​para que os objetivos governamentais sejam alcançados. Em termos desses objetivos, haverá apenas sucesso ou fracasso, em vez de legitimidade ou ilegitimidade (o sucesso substitui a legitimidade). Em relação a isso, já se vê em Louis-Paul Abeille, economista francês do século XVIII, que, ao se tratar sobre o problema da escassez dos cereais discute-se o problema da escassez não como um mal, mas como algo natural, como um fenômeno que é o que é, pois analisado não em termos de mercado — já que o problema não é do mercado, mas em termos de uma certa ‘história do cereal’ (Foucault, 2008), isto é, o tipo de grão, a tecnologia empregada, o nível de educação, o clima, ou seja, os elementos factuais que circunscrevem essa realidade específica a que se chama cereal.

A Economia Política pressupõe que o governo pode estar errado em suas ações, e normalmente está errado, porque não está ciente de toda a complexidade do sistema econômico. Então, o governo erra, porque é ignorante de sua própria realidade. “Natureza” funciona como um parâmetro de verdade no qual a ação do governo deve ser orientada, e a Economia Política é a revelação dessa verdade oculta e dominada pelos especialistas, que podem mostrar ao governo quais são os mecanismos naturais e quais seus efeitos. É uma autolimitação pelo princípio da verdade que, de algumas maneiras, limita a presença ilimitada do Estado policial. Por princípio da verdade, o autor não pretende indicar que a política ou a arte do governo se torna racional (Foucault, 2011), embora essa racionalize, ele apenas tenta indicar o momento em que um conjunto de discursos e um conjunto de práticas reflexivas se aproximam juntos em uma conexão inteligível e no ponto em que esses discursos que constituem essas práticas podem legislar sobre as ações em termos de veridicção.

A importância disso tudo é o reingresso, no campo das técnicas de poder, de uma “natureza” que não é aquilo que, aquilo acima de que, aquilo contra o que o soberano deve impor leis justas. Não há natureza e depois, em outro nível, o soberano e a relação de obediência que deve ser prestada. Há a população, de natureza tal que, no no interior dela, com a contribuição dessa natureza, a propósito dessa natureza o soberano deve governar e desenvolver seus instrumentos de governo. Temos com a população

“um conjunto de elementos que, de um lado, se inserem no regime geral dos seres vivos e, de outro, apresentam uma superfície de contato para transformações autoritárias, mas refletidas e calculadas.”

- Foucault, 2008

A partir de meados do século XVIII, torna-se possível estabelecer coerência entre diferentes práticas em andamento — e é isso que Foucault está realmente interessado ao considerar o liberalismo; práticas diferentes, que no entanto funcionam e se cumulam arqueologicamente, com diferentes princípios de racionalização que podem se sobrepor, foram reunidas em um pensamento agregado na Economia Política. Práticas diferentes, como cobranças alfandegárias de impostos, regulamentação do mercado e produção, foram ligadas pela coerência de mecanismos que permitem julgar entre bom e ruim, não em termos de aceitação moral de suas ações, embora elas ainda tenham uma certa ética, mas em termos de verdadeiro e falso como sinônimo de sucesso ou insucesso a partir de uma natureza dada e possivelmente modificável. O problema da escassez e carestia de alimentos, por exemplo, é resolvido pelo laissez-passer, visto que a fome continua a existir, porém de maneira localizada, afinal é bem possível que o preço dos alimentos leve alguns a morrer de fome. Isso, no entanto, faz da escassez alimentar geral uma quimera, na medida em que o fenômeno generalizado da escassez se torne algo impossível e não afete, de fato, as sociedades com o caráter maciço de flagelo que a caracterizava nos sistemas precedentes, baseados inteiramente em controles econômicos disciplinares.

“A escassez-flagelo desaparece, mas a escassez que faz os indivíduos morrerem não só não desaparece, como não deve desaparecer.”

- Foucault, 2008

Percebe-se aqui, com a guinada da economia política, a mutação de um sistema disciplinar mercantilista para um sistema disciplinar de segurança, baseado em uma certa noção de liberdade e de como, a partir disso, abre-se espaço para a instauração dentro do pensamento político do surgimento de algo como o nascimento de uma sociedade competitiva. Essa guinada compreende um corte relevante que separa o campo de atuação econômico-político do governo em dois níveis, primeiro no nível da população e segundo ao nível da série, da multiplicidade de indivíduos — que só é relevante na medida em que contribui para a formação e impactos para a administração do primeiro, este sim pertinente.

Portanto, o nascimento dessa nova maneira de governar coloca a questão: o Estado governa de acordo com as leis da natureza ou está entre o limite máximo e o mínimo aceito pela natureza das coisas — as necessidades intrínsecas à arte de governar? Para Foucault, é importante mostrar como esses discursos (que funcionam como regimes da verdade) e práticas evoluem juntos para o dispositivo (dispositif) do poder-segurança que define com sucesso a realidade e cria legitimidade na arbitragem do falso e do verdadeiro. Nas palavras de Foucault:

“A política e a economia não são coisas que existem, nem erros, nem ilusões, nem ideologias. São coisas que não existem e, no entanto, se inscrevem na realidade e caem em um regime de verdade que divide o verdadeiro e o falso.”

- Foucault, 2011, tradução livre

O liberalismo aparece para o autor como algo que funciona como a autolimitação da ação do governo a partir de uma série de comportamentos-chave. Comportamentos chave pois, sem eles, nenhuma regulação natural é possível. É somente porque os indivíduos agem no espectro utilitário que se forma algo como a possibilidade da regulamentação concorrencial e, ao mesmo tempo, porque existe concorrência orquestrada e encenada pelos Estados, existe a possibilidade do sujeito utilitário. O governo liberal, então, ao invés de ditar o que é a felicidade, como no caso do Estado policial, ocupa-se em tornar possível a produção de felicidades pela multiplicação dos interesses regulados por uma concorrência generalizada. É o liberalismo a primeira área bem definida na qual a atividade governamental é levada a dizer e deixar as coisas ’em paz’, o laissez-faire aparece primeiro como um princípio essencial que todos os governos devem seguir. Esse novo tipo de arte de governo e o cálculo do limite de atividade do Estado e das partes que devem ser deixadas sozinhas é o liberalismo, é a limitação ótima-máxima, de acordo com seus próprios princípios, de formas e domínios de atividade governamental, esses limites formulados em termos de veridicção e de mecanismos de segurança para que possa funcionar.

Comentário de Método, ou para Além do Simulacro e do Círculo Mítico

Fonte: School of Life

Apesar de aparentemente desconectados da estratégia política geral, as considerações foucaultianas são genuinamente modernas: preocupam-se em entender o estado atual das coisas, moderno pois capaz de nos fazer pensar e agir sobre a nossa própria atualidade. Não nos basta criticar um pensamento econômico político para ultrapassá-lo, como se à espera da síntese reveladora e unidirecional do processo histórico. Segundo Deleuze, a partir de suas considerações sobre Nietzsche, a crítica não é uma reação de ressentimento, mas a expressão ativa de um modo ativo de existência, criação: ataque e não vingança, a agressividade natural de um modo de ser, a maldade divina sem a qual não se pode imaginar a perfeição. Entender o mundo não garante transformá-lo, como sugeriu Marx, mas não pelo mesmo motivo… é que o entender ele mesmo está no campo do movimento que em si já é algo em potência. O mundo não é uma figura que caminha em direção a uma redenção qualquer e milenar, mas uma “multidão de erros e fantasmas” escondidos e perdidos sob o véu do acontecimento.

A humanidade não progride lentamente em direção a um aprendizado espiritual e homogêneo que cria, através das regras, cada vez mais a possibilidade de paz ou fim das violências; mas ela instala suas violências em um sistema de regras, de modelo em modelo, de dominação em dominação.

O sentido histórico empenhado na análise de uma história “efetiva” inverte a relação de distância, como estabelecida pela história convencional em fidelidade à metafísica. Ao invés das ideias mais abstratas, dos cumes mais elevados onde se encontrariam espectros em salvaguarda, a vida, a natureza e o Estado, devemos olhar para o chão e perceber como ao redor dele as coisas brotam. O olhar ao que está próximo, as conexões mais imediatas, únicas e agudas, olhar do alto em mergulho elementos que em si não são senão diferença, olhar para, como que a partir de um diagnóstico, estabelecer a diferença.

Não se busca fazer em nenhum momento a história da origem; a história é o corpo do devir, é preciso ser metafísico para encontrar-lhe na alma a ideia da origem. Se interpretar é se apoderar por violência de um sistema de regras que não tem significação em si essencial e dobrá-lo em si mesmo, impor-lhe uma nova direção, é possível fazer aparecer os acontecimentos no teatro dos procedimentos, reintroduzir no devir tudo o que parece verdade imortal dos homens, reduzir as constâncias em riso, ridículo. Acontecimento como máscara trocada, uma relação de forças que se inverte, um poder questionado, uma dominação que se enfraquece, e outra que encena sua entrada.

A genealogia destrói e cria a história. Depende da história para construir um conteúdo, “é a história como um carnaval organizado”. A genealogia deve parodiar a história para mostrá-la apenas como é, uma paródia. É necessário usar a História com uma atitude anti-platônica, o sentido histórico deve desvincular-se da mitologia supra-histórica. Não à toa vemos ao longo do Nascimento da Biopolítica passagens críticas ao método dialético e ao totalitarismo da História: é que não se trata de fortalecer elementos históricos, guiá-los a partir de sua natureza, incentivá-los para acelerar o movimento da Ideia ou do Partido em direção à sua realização contraditória inevitável. Trata-se, sim, de destruir identidades e disfarces históricos, de expor a História à nudez, de fazer da história “uma contra memória e de desdobrar consequentemente toda uma outra forma do tempo” e de lugar.

Se a genealogia é arqueológica e busca colocar a questão do corpo, do solo que nos viu crescer, da língua que nos ditou as regras primeiras, das leis e das práticas, é para classificar os sistemas heterogêneos que nos obrigam a repetir. A arqueologia genealógica não visa reencontrar as raízes de nossa identidade, mas dissipá-las. É através das descontinuidades que a máscara do eu é removida.

Referências

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

Segurança, território, populaç̧ão: curso dado no Collège de France (1977–1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Microfísica do poder. Rio De Janeiro: Graal, 2000.

The birth of biopolitics lectures at the college de France, 1978–1979. Palgrave Macmillan, 2011.

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