Entrevista: Fernanda Cardoso

Heterodoxos Institucional
Heterodoxos
Published in
10 min readJan 25, 2021

Fernanda Graziella Cardoso é Professora da UFABC, graduada em Economia pela FEA-USP (2005), mestre em Economia da Indústria e da Tecnologia pelo IE-UFRJ (2008), doutora em Economia do Desenvolvimento pela FEA-USP (2012) e é atualmente coordenadora do Bacharelado em Ciências Econômicas da UFABC. Fernanda também é Pesquisadora do Núcleo de Estudos Estratégico em Democracia, Desenvolvimento e Sustentabilidade — NEEDDS/UFABC. Lançou em 2018 o livro Nove Clássicos do Desenvolvimento Econômico pela Paco Editorial.

Twitter: ProfFercardoso

Instagram: prof_fernanda_cardoso

Youtube: Professora Fernanda Cardoso

O Conselho Editorial agradece a imensa colaboração da Professora Fernanda Cardoso pela disponibilidade e boa vontade em nos conceder uma ótima entrevista.

Perguntas elaboradas por Felipe Carvalho Brisola

Nesta entrevista concedida por Fernanda Cardoso, conversamos em grande parte sobre o seu livro Nove Clássicos do Desenvolvimento Econômico, em que a professora aborda autores clássicos que contribuíram para o desenvolvimento econômico, sendo eles: Paul Narcyz Rosenstein-Rodan, Hans Wolfgang Singer, Ragnar Nurkse, William Arthur Lewis, Albert Otto Hirschman, Gunnar Myrdal, Michal Kalecki, Raúl Prebisch e Celso Furtado.

Seu livro apresenta uma leitura extremamente agradável e didática, que nos ensina o essencial acerca da evolução do pensamento econômico. Podemos observar como o debate evoluiu com o passar do tempo, analisando as diferentes visões de mundo e as propostas de cada de um dos autores.

Diante disso, procuramos abordar de certo modo, um pouco de cada clássico do desenvolvimento, relacionando as teorias expostas no livro com questões econômicas concretas dos dias atuais.

Professora, em seu livro Nove Clássicos do Desenvolvimento Econômico é explicado que Rosenstein Rodan apresenta a ideia de um grande impulso industrializador que poderia ser baseado no que ele chama de Modelo Russo (processo de industrialização que não recorre ao capital internacional, focando em autossuficiência) e a segunda via (industrialização por meio “da inserção dessas regiões mais atrasadas na economia mundial, preservando as vantagens da divisão internacional do trabalho e com grande suporte do capital externo”), esse grande impulso seria essencial para o desenvolvimento no longo prazo e para a retirada do país da condição de subdesenvolvimento de forma autônoma.

Outro autor que aponta nesse sentido é Nurkse, que argumenta que é necessário “aplicar capital de forma planejada em diferentes indústrias, o que permitiria uma ampliação geral do mercado e um melhor aproveitamento, em prol do desenvolvimento, da renda e capital a serem gerados e acumulados” para quebrar o círculo vicioso da pobreza. Quando olhamos para a industrialização brasileira iniciada durante o período Vargas, vemos que esse grande impulso foi teoricamente feito, sendo assim, o Brasil deveria ter quebrado o ciclo da pobreza e remado para se tornar um país dito desenvolvido, contudo, quando olhamos para o atual cenário vemos que tal promessa não se cumpriu, haja vista a manutenção de altos índices de pobreza em diversas regiões do país.

Tendo isso em vista, até que ponto essa industrialização brasileira gerou um crescimento sustentável? E porque não se quebrou o ciclo de pobreza em determinadas localidades? Podemos classificar nosso processo como “insustentável”, um verdadeiro “voo de galinha”?

Os desenvolvimentistas da tradição anglo saxã, tais como Rosenstein-Rodan e Ragnar Nurkse estavam especialmente preocupados com a formação de capital, necessária para viabilizar a industrialização, e a modificação qualitativa, a partir dela, da maneira como essas nações participavam do comércio internacional. Embora estivessem esses autores cientes de que a resolução do problema da acumulação de capital era uma condição necessária, mas não suficiente para garantir o desenvolvimento.

A industrialização era defendida por seu maior potencial de geração de economias externas, destacadamente as pecuniárias; assim, quanto mais diversificados fossem os investimentos, maior o potencial de geração e aproveitamento das economias externas, fazendo com que os setores produtivos viabilizassem uns aos outros, por conta do mercado consumidor que potencializavam — seja via fornecimento de bens e serviços numa determinada cadeia produtiva, seja pela dinamização do mercado interno (por conta de maior emprego de mão de obra em atividades de maior produtividade e níveis de salários, por exemplo).

O caso de industrialização brasileira parte de uma formação socioeconômica extremamente desigual e de uma dualidade estrutural muito marcada, o que ocasionará alguns problemas e gargalos dinâmicos à continuação do processo impulsionado pela industrialização na década de 1930. A questão distributiva e social, desse modo, demonstrará ser uma variável dinâmica relevante para garantir a sustentabilidade do processo de desenvolvimento, aqui entendido como um processo diferente de simples crescimento. Para o enfrentamento na raiz dos problemas de desigualdade extrema (fossem eles regionais, fossem eles entre classes), faziam-se necessárias mudanças estruturais (tais como reforma agrária e tributária, por exemplo), além das mais estritamente econômicas (relacionadas à matriz produtiva). Outro fator relevante diz respeito à origem externa do capital e das empresas que protagonizarão o processo de industrialização, especialmente a partir da década de 1950; e também a dependência tecnológica. Então, nesse sentido, o voo da industrialização brasileira — embora tenha levado a inegáveis avanços o que se refere à modificação da matriz produtiva — não se sustentou; faltou “combustível” no meio da viagem.

Lewis em sua análise descreve um fenômeno chamado de “dualidade estrutural” onde é possível aliar dentro de um mesmo país um setor de alta produtividade (geralmente associado a exportação) e uma estrutura de baixa produtividade (ligado ao mercado interno), tal fenômeno pode ser descrito também como “ilhas desenvolvidas” em meio ao mar de atraso de certas economias. Lewis também propõe como solução a redução da renda da terra para aumento dos salários e dos lucros, e em certo momento de seu livro é descrito uma frase de Lewis sobre o papel do estado: “governo não deve gastar nem pouco nem muito; nem controlar muito nem pouco; nem tomar iniciativas demais, nem de menos; não deve desencorajar os estrangeiros, nem cair-lhes nas mãos; não deve permitir a exploração de classes, nem promover a luta de classes, e assim por diante”, dando a entender que a ação estatal deve ser pragmática, atrelada à realidade do país.

Tendo essa análise em mente podemos levantar duas questões fundamentais: de que modo o Estado brasileiro poderia promover o desenvolvimento dessas “ilhas desenvolvidas” de modo que elas se expandam, se interconectem e incrementem a acumulação de capital? E é possível realizar um paralelo entre a reforma agrária e a ideia de redução da renda da terra?

Segundo Arthur Lewis, promover o desenvolvimento de regiões atrasadas tem como principal desafio incrementar a acumulação de capital; e, para tal, era necessário incrementar o peso relativo do setor capitalista, fosse ele composto por empresários capitalistas e/ou pelo Estado capitalista. Assim, no que se refere à primeira pergunta, necessariamente o Estado aparece como elemento importante desse processo justamente porque pode não ser do interesse do setor privado carregar a transformação industrial. A expansão das ilhas de desenvolvimento, por sua vez, passa por um incremento da complexidade da matriz produtiva ali instalada — ou seja, com maior capacidade de geração de excedente e de provocação de efeitos de encadeamento, permitindo inclusive maior conexão entre essas ilhas desenvolvidas. Atividades de baixo valor agregado (como as primárias), tem menor potencial de geração de excedente e de efeitos de encadeamento; por isso os desenvolvimentistas defendiam tanto a industrialização.

Considero que sim, é possível fazer um paralelo entre reforma agrária e a redução da renda da terra; embora Lewis não seja explícito, é uma mudança que poderia levar ao objetivo por ele almejado. Kalecki, por exemplo, com preocupações relacionadas ao potencial inflacionário provocado pela inelasticidade da oferta de alimentos, será explícito sobre essa sugestão.

O autor sueco Gunnar Myrdal aponta uma série de críticas à perspectiva equilibrista, ressaltando que “é precisamente no âmbito dessa grande parte da realidade social que a análise econômica deixa de fora pela abstração dos fatores não econômicos que a premissa (se referindo a perspectiva equilibrista) cai por terra”. Atualmente podemos observar um número considerável de programas políticos que defendem um estado de bem-estar social, mas poucos de fato tocam na questão da industrialização.

É realista desvencilhar as políticas de bem-estar de um projeto de industrialização? É possível existir um estado de bem-estar social sem industrialização?

A resposta depende do grau de desenvolvimento produtivo e socioeconômico do país o que, segundo Myrdal, está diretamente relacionado às desigualdades, em diversos níveis.

Se partirmos do contexto de um país não desenvolvido, com insuficiente capacidade de geração de excedente, e se partirmos da ideia de que para financiar políticas de bem estar precisamos de uma gama considerável de recursos, uma economia com maior capacidade de geração de excedente teria maiores possibilidades de sustentar políticas que estruturem um Estado de bem-estar social. Quanto à segunda pergunta é possível existir um Estado de bem-estar sem industrialização, porque o que vai de fato fundamentar essa estrutura é o contrato social subjacente, e as prioridades que dele desdobram; por outro lado, quanto maior a capacidade de geração de excedente, maiores são as possibilidades de financiar políticas públicas necessárias.

Michal Kalecki analisa que uma das peculiaridades das economias subdesenvolvidas é que mesmo em um cenário de crescimento econômico em que todo o capital seja utilizado, a mão de obra não seria totalmente absorvida. Ao mudarmos o nosso foco para a situação brasileira, vemos que o alto desemprego não é devido somente à recessão, mas também retira o seu quinhão de nossa condição de subdesenvolvimento, tal como o apontado por Kalecki.

Tendo em vista a conjuntura econômica e nossa estrutura de país, no curto prazo, quais seriam as medidas necessárias para driblar esses problemas? E em sua opinião as reformas estruturantes colocadas em prática desde 2017 e as que ainda estão por vir (sejam pelas mãos desse atual governo ou dos próximos) conseguiriam atenuar essa problemática?

Problemas estruturais (relacionados à capacidade produtiva instalada) dificilmente se resolvem no curto prazo, investimentos em capacidade produtiva e/ou de infraestrutura demandam tempo. Mas, se não forem feitos, a insuficiência de capacidade produtiva (o principal problema dos países subdesenvolvidos, segundo Kalecki) nunca será enfrentada em sua raiz; assim, para ativar o crescimento da renda e da produção no curto prazo (e, inclusive, estimular novos investimentos) bons caminhos, da perspectiva kaleckiana seriam promover uma redistribuição de renda e riqueza (por meio de uma reforma tributária, por exemplo), o que permitiria um aquecimento do mercado interno; e um incremento dos gastos do governo. Pensando no longo prazo, seria importante um plano nacional de desenvolvimento que coordenasse e viabilizasse setores produtivos com bom potencial de geração de valor e emprego.

Nesse sentido, as reformas que estamos vivenciando nos últimos anos parecem ir na direção contrária, na medida em que potencialmente contribuem para uma maior concentração de renda e riqueza (por exemplo, reforma trabalhista e da previdência) ou ainda, o estabelecimento de regras fiscais que impossibilitam maior atuação estatal (tal como a PEC do teto).

Hirschman critica a teoria de Rodan explicitando que “se um país estivesse pronto para aplicar a doutrina do crescimento equilibrado, então, em primeiro lugar ele não seria subdesenvolvido” dando a entender que as ideias de Rodan seriam aplicáveis apenas a países desenvolvidos. A partir disso ele também cutuca as ideias de “receitas universais” para o desenvolvimento, portanto, entendemos que cada país/região deve se desenvolver com base em suas próprias particularidades.

Em sua visão, quais seriam as especificidades latentes da América Latina em comparação com a realidade da Europa, no que tange os diferentes caminhos para o desenvolvimento?

A crítica de Hirschman à Teoria do Big Push parte, especialmente, do seguinte ponto: se os países tivessem uma capacidade de planejamento tão precisa quanto a preconizada pela teoria do crescimento equilibrado eles não seriam subdesenvolvidos. E, ademais, se os países fossem esperar satisfazer todas as condições para iniciar o processo de industrialização, jamais sairiam do lugar.

Para Hirschman, o aprendizado de tomada de decisão e de planejamento faz parte do processo; então não pode ser tomado como algo garantido de partida. E os próprios problemas e pressões que emergem ao longo do processo de desenvolvimento, se constituem em combustível para mais aprendizado (de tomada de decisão e planejamento) e desenvolvimento. Por isso entende o desenvolvimento como uma cadeia de desequilíbrios.

A sua crítica demonstrada na ideia de ‘fracassomania’ coloca em foco justamente a necessidade de os países desenvolverem estratégias próprias, condizentes com suas condições iniciais, possibilidades e problemas próprios, evitando receitas de suposta aplicabilidade universal. Se podemos extrair uma receita de Hirschman, diz respeito a privilegiar investimentos em setores com maior potencial de geração de encadeamentos para frente e para trás na matriz produtiva; por isso a defesa da industrialização e a sua alcunha de desenvolvimentista, embora Hirschman se considerasse um dissidente.

Quanto às especificidades da América Latina, que remontam especialmente ao seu processo histórico de formação socioeconômica, implicam a necessidade de enfrentamento de problemas estruturais e institucionais; por isso o planejamento do desenvolvimento se faz ainda mais necessário. As condições para um desenvolvimento sustentado não estão dadas, e não serão naturalmente solucionadas mesmo que se observe um processo de transformação produtiva na direção de atividades com maior complexidade associada a elas, como desejavam os desenvolvimentistas.

Os principais gargalos, para além da ainda insuficiente complexidade da capacidade produtiva, remontam às abissais desigualdades historicamente construídas e recrudescidas pela ausência de mudanças mais profundas relacionadas à maneira como se distribuem a renda e a riqueza na região. A América Latina, ademais, é bastante heterogênea; não há uma receita única de mudança estrutural e institucional que valha para todos os contextos.

Por fim, gostaríamos de saber como você enxerga o futuro do Brasil e da América Latina nesse pós-pandemia, onde se mostrou notória a falta que faz um projeto nacional de desenvolvimento específico para os países da região.

A pandemia — e todas as suas consequências — evidenciou todas as fragilidades da nossa organização socioeconômica, calcada sobremaneira no individualismo e na busca do sucesso particular, colocando em evidência a importância do papel do Estado para uma boa coordenação da dinâmica econômica e para o estabelecimento de prioridades —, para que e pra quem deve servir a economia?

O Brasil, e a América Latina no geral, enfrentou com dificuldades o contexto imposto pela pandemia especialmente por conta de suas fragilidades econômicas e sociais, refletidas na sua dependência produtiva e financeira, nas suas extremas desigualdades e no enfraquecimento da atuação estatal para enfrentar situações de emergência como a que estamos vivendo.

Assim, minha esperança é de que esse momento sirva de lição para revermos nossas prioridades e fortalecermos o pacto social previsto por nossa constituição, colocando a garantia de dignidade e dos direitos humanos mais básicos como prioridade absoluta, colocando a dinâmica econômica a serviço deles. Esse deveria ser o princípio básico de um projeto de desenvolvimento. Porém, para isso, precisamos provocar e popularizar o debate para que as mudanças possam de fato emergir; elas não acontecerão naturalmente.

--

--