Entrevista: Juliane Furno

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12 min readMar 2, 2021

Juliane Furno é Doutora em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp, colunista do Brasil de Fato e Economista-Chefe do IREE (Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa). Furno também atua como militante do Levante Popular da Juventude e da Consulta Popular.

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O Conselho Editorial agradece a imensa colaboração de Juliane Furno pela disponibilidade e boa vontade em nos conceder uma ótima entrevista.

Perguntas elaboradas por Gabriel Vinicius, Felipe Carvalho Brisola, Ju Pantin, Rodolfo Zago e Lucas Badaro

No último Boletim de Política Econômica lançado em Fev/21 pelo IREE (Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa), você trata do debate sobre o projeto de autonomia do Banco Central (PLP 19/19), que tem como objetivo principal a cisão entre o ciclo do mandato presidencial e o ciclo do mandato da Autoridade Monetária, além da inserção do duplo mandato, ou seja, o BC passa não só a perseguir a estabilidade de preços mas também o pleno emprego e a suavização do ciclo econômico (contanto que o objetivo principal seja satisfeito).

Em sua percepção, quais são as consequências deletérias no longo prazo (sob o falso pretexto da tecnicidade), de se despolitizar uma instituição vital para a manutenção do crescimento econômico?

A consequência é que não existe o debate entre algo ser ou não politizado. Essa é uma questão ontológica de princípio, não existe nada puramente neutro e nada que seja a margem a política quando lidamos com agentes reais e decisões fundamentais de política econômica. Ainda mais se levarmos em conta que vivemos em uma sociedade capitalista, cindida em classes sociais. Dessa forma, o conflito capital X trabalho expressa-se também na condução da política monetária, em especial na variável juros. Dessa forma, não existe nada que represente o “bem-comum” porque o interesse das classes sociais fundamentais no capitalismo é, por natureza, díspar. Por exemplo, políticas de redução das desigualdades sociais e de pleno emprego podem parecer como pautas universais, mas escondem “aspectos político do pleno emprego” nos quais o aumento do emprego e, por consequência, do rendimento monetário dos trabalhadores reduz as margens de lucro dos empregadores.

Além disso, como não existe espaço vazio na política, o Banco Central estar dissociado do ciclo da autoridade presidencial não vai mantê-lo neutro, senão que mais facilmente capturável pelos interesses corporativos privados, especialmente do setor financeiro nacional. Isso atenta, em última instância, não só com relação as decisões macroeconômicas, mas a própria democracia, na medida em que os mandatários da presidência da república não mais interferirão no caminho do prosseguimento da meta de inflação. Ou seja, a decisão fundamental de política monetária passa a responsabilidade dos “técnicos”, nos quais não votamos e não estarão mais submetidos ao ciclo da política, que em última instância é a expressão máxima da democracia.

E estando a taxa de juros de curto prazo (SELIC) em seu patamar histórico mais baixo, haja vista as expectativas de inflação futuras abaixo do teto da meta (mesmo após o abandono do “forward guidance”) e o papel significativo que os Bancos Centrais têm adquirido nos últimos anos pelo mundo (principalmente após a crise de 2008), há de fato a possibilidade de se alcançar uma maior eficiência por meio da tentativa de tornar o BC cada vez mais independente?

Acho que esse é um ponto importante. Há, atualmente, uma disputa no interior do banco central entre aqueles que identificam que as perspectivas inflacionárias atuais serão dissipadas no curto prazo, uma vez que estão relacionadas a desvalorização cambial, e aqueles que advogam uma necessidade imediata de elevação da taxa de juros básica para conter o avanço da desvalorização da moeda. Uma decisão desse tipo tem influência decisiva no ciclo econômico como um todo, na medida em que taxas mais elevadas de juros encarecem o custo do endividamento e desestimulam o investimento produtivo. Nesse caso o BC vive um dilema que é um dilema próprio da política, no qual a eficiência da política de juros diz respeito ao futuro da economia brasileira, e não a uma decisão estritamente técnica.

No debate de inauguração do Centro de Estudos do IREE (Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa), comentou-se bastante sobre os instrumentos para a recuperação econômica e realização de estímulos macroeconômicos, discussão que está bastante em foco recentemente também pelo debate entre Summers e Krugman lá nos EUA, acerca do pacote de estímulos proposto pelo recém-eleito presidente Joe Biden. Que instrumentos ou propostas de intervenção (no sentido de desenho de política econômica ou políticas públicas) você percebe possíveis de serem utilizados e aplicados na atual conjuntura econômica brasileira? O que você proporia para uma retomada de crescimento visando uma economia mais inclusiva?

uma percepção de que o pacote de estímulos de Biden é excessivo, o que pode gerar um processo inflacionário na economia americana ensejando a necessidade de elevação da taxa básica de juros pelo FED, o que levaria a necessidade de mais elevação da SELIC brasileira em função dos diferenciais internacionais de juros e da necessidade de manter a atração de capitais externos para conter a apreciação do câmbio e mesmo lidar com questões relativas ao fechamento do balanço de pagamento. Não me parece que esse seja o caso. O aumento da base monetária americana foi impressionante desde a crise de 2008, e a única inflação que ocorre é a inflação de ativos. Isso ocorre pela premissa de que a moeda não é neutra, e o elemento do entesouramento — presente desde a análise de Marx com relação ao papel do dinheiro — deve ser levado em conta.

Em face dos limites da política monetária em períodos de crise — já amplamente estudado por Keynes — coloca a política fiscal como a única via para reanimar as economias nacionais, principalmente em face da persistência de uma crise que é, fundamentalmente, de demanda agregada. Assim, a retomada da economia passa pela ampliação dos estímulos fiscais, tanto pela sua capacidade de reanimar a economia, quanto pelas condições propícias que temos nesse momento ao endividamento, expressas no custo baixo da dívida pelo atual patamar da taxa de juros, quanto pela característica de estarmos endividados em reais e sem problemas para seguir nos endividando com o setor privado. Por fim, o aumento do endividamento, em termos nominais, na medida em que é feito para concretizar políticas com elevado multiplicador fiscal, é o único caminho para a redução do montante da dívida em relação ao PIB, na medida em que a elevação real dos gastos amplia, mais que proporcionalmente, o denominador, ensejando melhores condições para a redução do montante proporcional da dívida sobre o PIB.

Em debate recente sobre as divergências existentes entre a teoria marxista e cepalina da dependência, ao ser questionada por Paulo Gala sobre quais seriam as diferenças nevrálgicas entre ambas, você diz (min 40:35) que ¨ a teoria marxista da dependência não é uma teoria só de análise econômica. Ela tem um diagnóstico da situação econômica porque ela tem uma consequência política prática que é a ideia de que é impossível romper com a dependência dentro dos marcos do capitalismo. Então ela é uma teoria de caráter socialista¨…Posteriormente você ainda cita alguns pontos da teoria dos quais discorda (min 41:15) como, por exemplo, de que todo desenvolvimento é o desenvolvimento do subdesenvolvimento, ou seja, a reprodução da dependência, deixando claro que sua crítica é muito mais direcionada às consequências da teoria do que do seu próprio diagnóstico, isto é, de que nem todo o desenvolvimento é reprodução do subdesenvolvimento mas condição sine qua non para se pensar o Brasil como uma nação autônoma do ponto de vista econômico, o que a priori ocorreria na fase capitalista, e posteriormente política, com o socialismo rompendo a dependência para com o centro capitalista. À luz da TMD, por que, na sua opinião, só uma ruptura com o sistema capitalista permitiria às nações periféricas um alcance do desenvolvimento político-econômico? Políticas que visem ampliar o Estado de bem-estar social nesses países, dentro do próprio sistema capitalista, não teriam o poder de fazer com que os mesmos atingissem bons níveis de desenvolvimento uma vez enfrentadas as mazelas sociais dentro de cada contexto?

Foi um erro da CEPAL e de vários autores, a idéia de que seria possível refazer o caminho do desenvolvimento aberto pelas experiências de capitalismo originário e retardatário, por várias razões. Em primeiro lugar o desenvolvimento do capitalismo brasileiro data do final do século XIX, período no qual já não reinava o capitalismo de livre competição, que marcou as primeiras experiências de desenvolvimento desse modo de produção. Portanto, o capitalismo já havia se transmutado em capitalismo monopolista, com acentuado traço da sua força política de existência: o imperialismo. Ou seja, o que já ensejaria dificuldades na trilha do mesmo caminho. Em segundo lugar, o Brasil foi uma nação colonial, que contribuiu com a acumulação primitiva de capitais ao centro, tendo seu desenvolvimento interno bloqueado pelo o que Caio Prado Junior identifica como o “sentido da colonização”, que manteve-se obstacularizado o desenvolvimento do mercado interno, pela concentração da terra e por uma lógica de economia voltada para fora, ou — nas suas palavras — “nucleada no exterior”. Há, ainda motivos políticos, que dizem respeito ao tipo de burguesia que se desenvolveu nos países de origem colonial. Diferentemente das burguesias europeias, que equalizaram a relação Povo-Estado-Nação, a burguesia brasileira desenvolveu-se em associação com o capital internacional, não logrando condições de solução a nossa questão nacional. Como a burguesia é uma sócia minoritária do capital externo, na acepção de Florestan Fernandes, os seus ganhos de produtividade e lucratividade são blindados no comércio internacional, o que as faz sobrevivente de um processo de aumento da exploração interna, o que Ruy Mauro Marini chamou de “superexploração da força de trabalho”. Assim, a linha permitida pelo bloco no poder de efetivação de reformas — mesmo aqueles essencialmente ligadas ao desenvolvimento do próprio capitalismo, tal como a reforma agrária — é muito dirimida. Portanto, quaisquer propostas mais reformistas, que abririam caminho para a redução das desigualdades e, por consequência, de elevação dos salários médios e do bem-estar social, são obstacularizadas através de sucessivas modalidades de golpes restauradores.

Portanto, ainda que a luta por essas reformas, pela industrialização e por níveis mais elevados de desenvolvimento econômico sejam imprescindíveis, porque um povo que não come e tem medo do desemprego não logra as mesmas condições de ações política, elas esbarram em limites estruturais. A solução para o pleno desenvolvimento em países de capitalismo dependente não passa por mais capitalismo, ou a sua melhoria. A prova cabal é que o Brasil alçou um elevado nível de desenvolvimento industrial interno sem que tenha havido solução para problemas básicos do capitalismo, tais como a fome e a extrema miséria.

Em última instância romper com o capitalismo dependente só pode ser logrado rompendo com o próprio capitalismo e a forma de subordinação política e econômica das economia desenvolvidas com relação as economias centrais.

Como você avalia os resultados das políticas econômicas neoliberais na América Latina (especificamente no Chile, Argentina e Brasil) e quais as diferenças estruturais entre o neoliberalismo dos anos 1970 (no caso chileno), 1990 (no caso Brasileiro e Argentino) e o neoliberalismo da segunda metade da década passada (Bolsonaro, Pinera e Macri)?

Os resultados são deletérios não só para aqueles que advogam a necessidade de economias menos desiguais e com maior atuação do Estado, mas para o próprio crescimento econômico desses países. O Neoliberalismo foi incapaz de entregar as suas promessas de competitividade, crescimento e modernização. No Chile, como experiência pioneira e em face da existência de uma ditadura, o trator do neoliberalismo passou de forma mais célere. O Chile aplicou o receituário de redução de políticas sociais universais — como a gratuidade e universalidade de saúde e educação — mas também da privatização do regime de seguridade social. Atualmente os chilenos, especialmente as mulheres, se aposentam com um salário deveras inferior do que os alçados no mercado de trabalho, pela forma individualizada do sistema de capitalização.

No Brasil, nos anos 1990 o neoliberalismo cumpriu uma primeira rodada de reformas, com o avanço nas privatizações, na desregulamentação da conta de capitais e na adoção do tripé macroeconômico. As reformas de segunda geração não lograram tempo nem condições políticas de realização.

O neoliberalismo atual brasileiro (dos demais não tenho aprofundamento para tecer comentários) se propõem a radicalização das reformas precedentes e o avanço sobre as demais, como é o caso das reformas no âmbito da regulação das relações laborais, da previdência, a reforma fiscal, administrativa entre outros.

No caso do neoliberalismo atual, que está em ascensão no mundo desde a crise de 2008, há uma mudança de perspectiva na comparação com a sua acepção clássica. O neoliberalismo tradicional, liberal na economia e relativamente liberal no que tange a condução política e a disseminação de valores liberais, foi sendo progressivamente substituído por um neoliberalismo de tipo autoritário.

Com o retorno da esquerda na Bolívia (após o golpe de Estado) e com o trabalho de Alberto Ángel Fernández na Argentina, você acredita que poderíamos passar por uma nova onda de renovação da esquerda na América Latina? E quais seriam os seus desafios?

Acredito que não. Diferentemente da Argentina, na qual a esquerda sofreu uma derrota política com a eleição de Macri mas seguiu tendo referência no seio da classe trabalhadora, no Brasil nos sofremos uma derrota de tipo estratégica, que mais que seu aspecto político enseja uma derrota de tipo ideológico e de avanço na criminalização dos setores organizados. Acredito que aqui o processo leve mais tempo. Nos demais países não tenho uma avaliação mais embasada.

E qual a sua visão em relação aos recentes acontecimentos na Petrobras e como a possível intervenção nos preços poderia impactar nossa economia?

O questionamento da legitimidade da intervenção de Bolsonaro na Presidência da Petrobrás e o alvoroço em torno da queda do preço das ações da empresa é bastante sintomático da captura que sofreu a Petrobrás por uma lógica de mercado. A Petrobrás passou por reformas microjurídicas importante nos anos 1990, nas quais a abertura do capital para a transação de ações na Bolsa de Nova York. Nos governos Lula e Dilma houve uma tentativa de estatização moderada, pelo menos do ponto de vista da utilização da Petrobrás como um instrumento de desenvolvimento da indústria nacional, expresso na política de conteúdo local e no aumento substancial do investimento da empresa. Além disso, nesse período houve uma recompra tanto das ações ordinárias que dão direito a voto (que passam a 65%) quanto das ações preferenciais, que rendem os dividendos da empresa, que chegaram a quase 50% logrando uma redução dos investidores privados, principalmente dos estrangeiros.

A Petrobrás atual está vendo o pêndulo pender mais uma vez para a sua face de mercado. A nova política de preços, expressa na Paridade dos Preços de Importação (PPI) está inserida nessa perspectiva, de apequenamento da empresa (com menor participação no mercado doméstico, privatização de empresas subsidiárias e ampliação da capacidade ociosa de refino) e abertura de mercado para as empresas concorrentes, tanto as empresas privadas estrangeiras que atuam na cadeia produtiva quanto as importadoras. Atualmente já passou de 300 as empresas que tem autorização da ANP para importar petróleo, e a imensa maioria foi credenciada de 2016 para cá.

A nova política de preços desconsidera a participação da Petrobrás como uma empresa integrada, na qual a quase totalidade dos seus custos de produção são dados em reais e em valores abaixo do praticado no mercado internacional. Apenas países que são importadores de petróleo praticam domesticamente o preço internacional. Além da vulnerabilidade a precificação externa — que além de elementos como oferta e procura estão baseados no ciclo financeiro, com transação de contratos de venda futura muito superior ao de venda física — há ainda a dinâmica cambial, na medida em que o preço de importação tem que ser acrescido não somente dos custos de internalização do combustível e da margem de lucro da Petrobrás, mas também convertidos em reais, o que em períodos de desvalorização cambial faz os preços se apreciarem ainda mais.

No período atual, de avanço na inflação de bens, ligada a dinâmica cambial, o preço do combustível impacta ainda mais os produtos que chegam aos supermercados, na medida em que o combustível é um custo que é repassado ao preço final.

Por fim, e não menos importante, neste ano tão difícil que temos pela frente como sociedade, quais são as suas esperanças para o futuro econômico do Brasil e do mundo?

A esperança é que existe o imponderável da história, que não segue uma linearidade mas, ao contrário, pode caminhar a galope. Ainda que exista ciência política e a capacidade de projetar tendências, o imponderável é impossível de ser pre-concebido. Me parece que essa é a única esperança e espero que as condições objetivas e subjetivas para uma mudança de rota sejam mais céleres possíveis, antes que verifiquemos a destruição absoluta do nosso Estado nacional.

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