O que é incerteza?

Tomada de decisão sob incerteza/risco, distinções e a Teoria do Prospecto

Lucas Badaro
Heterodoxos
11 min readSep 11, 2020

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Fontes: michaelpage e pixabay

Na literatura econômica existem diversas visões sobre a “incerteza”, variando de acordo com o adjetivo que o qualifica ou acompanhado de outras palavras que indicam a especificidade da incerteza que a ser tratada, mas podemos considerar de maneira geral que o conceito de incerteza econômica implica em algo como a falta de certeza.

Incerteza ortodoxa

No pensamento ortodoxo, a incerteza é fruto da Teoria da Utilidade Esperada (TUE), postulada por Daniel Bernoulli no século XVIII. A TUE pressupõe que os agentes econômicos são avessos ao risco e tomam decisões absolutamente racionais, procurando sempre maximizar sua utilidade, ou seja, a decisão tomada pelo individuo diante da incerteza seria friamente calculada, visando encontrar um cenário de maximização da utilidade esperada. Nessa interpretação, a incerteza é matematicamente calculável, mesmo sendo uma forma simplória de análise da problemática da tomada de decisão sob um ambiente incerto, o modelo teve importância crucial nos estudos do comportamento humano.

Já em 1954, o matemático Leonard Jimmie Savage, combina a teoria subjetiva da probabilidade com a TUE, constituindo a Teoria da Utilidade Esperada Subjetiva (TUES), que dispensa a necessidade de que as probabilidades sejam necessariamente objetivas. A tomada de decisão passa não só pela função utilidade pessoal como também pela distribuição de probabilidade pessoal, assim o indivíduo consegue calcular uma distribuição estatística subjetiva cuja soma seja 100%, contudo, ainda mantendo os axiomas clássicos intactos.

Leonard Jimmie Savage (esquerda) e Daniel Bernoulli (direita) — Fonte: hetwebsite e Wikipédia (domínio público)

Construção do conceito de incerteza heterodoxa

A visão de incerteza ortodoxa trata a natureza do homem como uma máquina de cálculos, entretanto, há alternativas a essa forma pragmática e por isso vamos olhar um pouco as interpretações de Knight (1921), Keynes (1936), Shackle (1990) e Davidson (1982) para alcançar uma noção de incerteza que considere o ser humano de forma mais realista.

Da esquerda para a direita: Knight, Keynes, Shackle e Davidson — Fonte: hetwebsite e National Portrait Gallery

Incerteza Knightiana

O nome vem da contribuição de Knight (1921) em seu trabalho Risco, Incerteza e Lucro, que busca teorizar a origem do lucro. O autor propõe a distinção entre risco e incerteza, sendo o primeiro uma probabilidade numericamente mensurável e quantificável, enquanto o segundo trataria do inverso.

Knight também fórmula três categorias de probabilidade para tratar da sua teoria de determinação dos lucros: “probabilidade a priori”, “probabilidade estatística” e “estimativa” (incerteza pura). A probabilidade a priori considera noções de simetria (roleta, dados, moedas etc.), a probabilidade estatística parte de uma generalização da frequência empírica de casos observados no passado (a probabilidade de uma nova empresa fechar em um ano de operação), e a estimativa uma probabilidade subjetiva, ou seja, dada pela crença de uma individuo em certo evento (probabilidade de se iniciar novo projeto). É notório que as situações que tratam de incerteza pura são muitas vezes singulares ou únicas, sendo difícil afirmar que o julgamento probabilístico esteja realmente correto.

Com base nisso, o autor conclui que os lucros não são fixos, mas sim residuais, dadas as situações de incerteza pura, já que após o pagamento de todo valor fixo (salários, aluguéis etc.) no processo de produção, o valor que sobra (lucro) seria o prêmio de risco do empresário pela incerteza enfrentada.

Contribuições de Keynes

Keynes formula em 1921 sua própria teoria na obra Um Tratado sobre Probabilidade, nela probabilidade é relacionada com um grau de crença racional, de acordo com a exemplificação dada por ele em sua obra:

“É a nossa expectativa de ir chover, quando saímos para um passeio, de ser sempre mais provável chover do que não, ou menos provável do que não, ou tão provável quanto não? Estou preparado para argumentar que, em algumas ocasiões, não se verifica nenhuma destas alternativas, e que será uma questão arbitrária decidir a favor ou contra levar o guarda-chuva. Se o barômetro está num nível elevado, mas as nuvens são negras, não é sempre racional que um indicador deva prevalecer sobre o outro nas nossas mentes, ou mesmo que devemos considerá-los ao mesmo nível, embora seja racional permitir que seja o capricho a decidir o que iremos fazer e a não perder mais tempo no debate. ”

- Keynes em Um Tratado sobre Probabilidade (1921)

Essa mesma noção de probabilidades se encontra presente na formulação da ideia de incerteza presente no capítulo 12 da Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda (1936). Buscando os determinantes da renda esperada de um ativo (investimentos), Keynes expressa a noção de incerteza econômica, analisando como os agentes baseiam suas expectativas e formam sua confiança.

A formulação das expectavas fundamenta-se em previsões de como alguns fatores internos atuais (nível presente de consumo, volume existente de capital, receitas, custos etc.) se comportariam no futuro com maior ou menor grau de confiança, considerando-se também em como eventuais mudanças externas futuras (preferência dos consumidores, condições da demanda efetiva, inovação etc.) poderiam causar impacto dependendo do maior ou menor grau de confiança. Pode-se notar que a formação de expectativas não considera fatores muito incertos como guerras, pandemias e revoluções, dessa maneira, os agentes olham para a situação atual, fazem projeções da situação futura e a ajustam à medida que alguns fatores se alteram ou há o recebimento de novas informações.

A incerteza aparece como a contrapartida ao grau de confiança de uma projeção futura, uma vez que os agentes compreendem que não possuem informação completa do que está por acontecer, por exemplo, nosso agente só investiria caso tivesse confiança suficiente em suas expectativas, porém, a projeção de eventos futuros distantes é extremamente vaga e incerta, impossibilitando o agente de adquirir uma distribuição numérica de probabilidade por causa da própria natureza do futuro, visto que nosso conhecimento é limitado e o longo prazo é composto de possibilidades ilimitadas.

O impacto da incerteza nos determinantes do investimento é dado na medida que os agentes econômicos possuem preferência pela liquidez dos ativos e o retorno do investimento (taxa de juros) seria o prêmio por não entesourar. Consequentemente, quanto maior a incerteza (tempo) maior o prêmio de liquidez.

Contribuições de Shackle

Shackle (1990) segue a tradição de Knight-Keynes com contribuições instigantes para a noção de incerteza econômica e a dinâmica capitalista. Para o autor, incerteza só existe em cenários de decisão, já que em um ambiente de certeza não há verdadeira decisão, sendo assim, ele segue a mesma linha de que incerteza é a ausência de conhecimento e pressupõe a passagem irreversível do tempo em um ambiente econômico que é essencialmente dinâmico. A implicação desta interpretação é que existem decisões cruciais que podem destruir a possibilidade de repetição de experimentos.

Para Shackle, qualquer conceito de probabilidade para substituir o conhecimento limitado não pode ser aplicado à escolha humana, portanto, qualquer base probabilística para estimar um investimento seria falho, já que as decisões cruciais introduzem mudanças que alteram para sempre o ambiente econômico. O caráter autodestrutivo destas decisões é fruto do empresário criativo com capacidade de promover um ato de inovação. Essa abordagem de Shackle se ancora na teoria de destruição criativa de Schumpeter.

A tomada de decisão não nasce de um processo de cálculos probabilísticos precisos, mesmo se houvessem dados para isso, mas sim da intuição dos indivíduos. Shackle elabora, de forma metafórica, dois “mundos econômicos” onde os indivíduos tomam decisões: “mundo da inspiração” e “mundo da ordem”. No primeiro as diferentes decisões ocasionam sequencias diferentes e o papel do indivíduo por mais que influencie e afete a sequência, não a determina e no segundo é onde há espaço para inovação e para decisões cruciais que impossibilitam qualquer prognostico preciso do futuro. Pode-se entender que o “mundo da inspiração” condiciona e governa o “mundo da ordem”.

De maneira prática, espera-se que os agentes econômicos formem expectativa similar acerca do “mundo da ordem” em situações onde não existam externalidades de rede associadas ao “mundo da ordem” escolhido. Mesmo que todos os agentes convergissem para o mesmo “mundo”, ainda haveria espaço para expectativas heterogêneas relacionadas ao grau de plausibilidade do possível cenário econômico futuro. Nessa linha, a imaginação dos indivíduos (“mundo da inspiração”) poderia construir expectativas diferentes dentro de um mesmo “mundo da ordem”. Shackle ultrapassa a simples proposição de Keynes relacionada a expectativa, apresentando uma forma mais “subjetiva” de interpretar a tomada de decisão com ênfase nas decisões cruciais, na imaginação e na criatividade.

Contribuições de Davidson

Davidson aceita o poder criativo das decisões crucias teorizadas por Shackle, contudo, diverge metodologicamente na abordagem subjetiva e individualista da noção de “mundos”. Ele inova ao utilizar os conceitos de “ergodicidade” e “não-ergodicidade”, sendo que o primeiro trata da realidade como sendo imutável, onde o futuro é tratado como uma réplica estatística do passado, sendo possível assim que o conhecimento futuro possa ser uma projeção estatística — forma metodologia utilizada pelos economistas clássicos. No segundo, a realidade é criativa, isto é, existem decisões cruciais, o tempo é irreversível e o ambiente é incerto, dando a possibilidade para que os agentes econômicos possam construir inovações que impactem o futuro.

Segundo Davidson, é possível seguir a linha ergódica para simplificação em assuntos do dia a dia, entretanto, quando se trata de decisões de investimento é evidente a necessidade de pensar de forma não-ergódica, esperando mudanças imprevisíveis no longo prazo.

Em síntese, todas as análises pressupõem que incerteza pertence à ausência (ou limitação) de conhecimento, contrastando com a ideia quantificável e mensurável de risco, tornando talvez a formulação de prognósticos sobre o futuro em uma tarefa vã e inútil.

Distinções de incerteza

Diante das mais variadas formas de se pensar incerteza, surge a necessidade de construir distinções para compreender melhor o objeto estudado.

Da esquerda para a direita: Dosi, Egidi e Dequech — Fonte: Vittorio Malaguti, Sonia Maggi e blog cidadania e cultura

Contribuições de Dosi e Egidi

A proposta de Dosi e Egidi (1991) é diferenciar incerteza entre o aspecto processual e o substantivo, a primeira caracterizada segundo as limitações nas capacidades computacionais e cognitivas dos agentes para encontrar de forma indiscutível seus objetivos — dadas as informações disponíveis — , e a segunda pautada pela falta de informação necessária para tomada de decisão com determinados resultados. A ideia dos autores parte das contribuições de Simon (1976) entre racionalidade processual e substantiva.

Contribuições de Dequech

A primeira proposta de Dequech (1997) é definir incerteza fraca (ou Incerteza de Savage) e incerteza forte. Na incerteza fraca, o agente consegue tomar a decisão a partir de uma distribuição de probabilidade única, aditiva e totalmente confiável (a mesma elaborada por Savage), e a incerteza forte é caracterizada pela ausência dessas distribuições. Olhando para distinção de Dosi e Egidi, pode-se dizer que incerteza fraca é essencialmente substantiva, enquanto incerteza forte pode ser substantiva e/ou processual.

A Segunda proposta de Dequech (2000) é a distinção entre incerteza fundamental e ambiguidade, a primeira como sendo a falta de conhecimento resultante das possibilidades da criatividade humana que causam mudanças estruturais não-predeterminadas no ambiente econômico e o segundo tratado como a falta de conhecimento da probabilidade, ocasionada pela falta de informação relevante que poderia ser conhecida.

Fonte: Dequech (2011)

Incerteza mainstream

Por fim, nos últimos anos foram surgindo formas alternativas à TUE, uma vez que até os economistas neoclássicos foram percebendo que os indivíduos nem sempre maximizam suas ações, ao invés disso, eles se comportam de forma inconsciente como se fossem maximizar a utilidade esperada. Mesmo assim experiências simples demonstram que os agentes não conseguem maximizar utilidades esperadas de maneira deliberada ou inconsciente e o mais peculiar disto é que mesmo os economistas neoclássicos reconhecendo que a realidade empírica acerca do comportamento humano discorda da TUE, insistem em acusar as pessoas ao invés de revisarem a teoria¹.

1.Mais detalhes presentes em Dequech (1998).

Uma das alternativas fortes à TUE vem do campo da economia comportamental, que por muitos anos não teve o espaço merecido no debate acadêmico, mas após Daniel Kahneman ganhar o Prêmio Nobel de Economia em 2002 — mesmo sem qualquer formação em economia — , Kahneman proporcionou uma forte mudança no pensamento econômico, inserindo aspectos psicológicos de forma definitiva na disciplina moderna com a Teoria do Prospecto (TP).

Teoria do Prospecto (TP)

A TP é um modelo descritivo e nasce do trabalho de Kahneman e Tversky (1974) como uma proposta de interpretação alternativa ao TUE, buscando descrever o processo decisório e desconsiderando os axiomas de racionalidade prescritos.

Kahneman (esquerda) e Tversky (direita) — Fonte: toolshero e The Economist

A formulação da TP é constituída por três características cognitivas

I. Na TUE o resultado esperado é o ponto fundamental, enquanto que na TP a avaliação parte de um ponto de referência neutro, onde os melhores resultados (ganho) estariam acima do ponto, e os resultados piores (perda) estariam abaixo.

II. O Princípio de sensibilidade decrescente afirma que quando se afastamos do ponto de referência, menos sensíveis ficamos a cada mudança.

III. O Princípio de aversão à perda assegura que as pessoas sofrem mais ao perder algo do que ao ganhar algo equivalente, ou seja, a valoração do ganho e da perda é assimétrico.

Valoração de resultados na teoria do prospecto — Fonte: Starmer (2000)

A racionalidade da tomada de decisão é alterada por um processo de julgamento intuitivo, tendo como consequência que os agentes econômicos ficam reféns de ilusões cognitivas², heurísticas³ e vieses cognitivos⁴ que podem ocasionar erros sistemáticos na tomada de decisão.

2.Ilusões cognitivas é um tipo de ilusão que distorce o conhecimento e as suposições do experimentador em relação a um elemento ou objeto físico e seu ambiente.

3.Heurística é uma estratégia que ignora parte das informações, com o objetivo de tomar decisões com mais rapidez para perguntas difíceis, isso ocasiona respostas, geralmente, imperfeitas.

4.Vieses cognitivos são as tendências que podem levar a desvios sistemáticos de lógica e a decisões irracionais.

Referências

OREIRO, José Luís. Incerteza, comportamento convencional e surpresa potencial. Econômica, v. 2, n. 4, p. 111–138, 2000.

Starmer, Chris. 2000. “Developments in Non-expected Utility Theory: The Hunt for a Descriptive Theory of Choice under Risk.” Journal of Economic Literature, 38 (2): 332–382.

Dequech, D. “Fundamental Uncertainty and Ambiguity.” Eastern Economic Journal 26, 1 (2000): 41–60.

KAHNEMAN, D; TVERSKY, A. Judgment under uncertainty: heuristics and biases. Nova York: Cambridge University Press, 1974.

KAHNEMAN, D; TVERSKY, A. Prospect theory: an analysis of decision under risk. Econometrica, Nova Iorque, v. 47, pp. 263–91, 1979.

Marcato, M.B. and Martinez, F.P.P., 2013. A tomada de decisão do agente econômico: uma breve discussão sobre incerteza e a Teoria do Prospecto. Revista Economia Ensaios, 28(1).

KAHNEMAN, D; TVERSKY, A.The framing of decisions and the psychology of choice. New Series, S.L.,v. 211, n. 4481, pp. 453–458, jan. 1981.

DEQUECH, D. Uncertainty in a strong sense: meaning and sources. Economic Issues, Nova Iorque, v. 2, part 2, sept. 1997.

DEQUECH, D. Rationality and institutions under uncertainty. 1998.Tese (PhD.em Economia) — University of Cambridge,Wolfson College, may 1998.

SIMON, Herbert A. From substantive to procedural rationality. In: 25 years of economic theory. Springer, Boston, MA, 1976. p. 65–86.

Dosi, G., and M. Egidi. (1991). “Substantive and Procedural Uncertainty: An Exploration of Economic Behaviour in Changing Environments,” Journal of Evolutionary Economics 1 (2): 145–68.

Andrade, R.P.D., 2011. A construção do conceito de incerteza: uma comparação das contribuições de Knight, Keynes, Shackle e Davidson. Nova Economia, 21(2), pp.171–195.

Paul Davidson, A technical definition of uncertainty and the long-run non-neutrality of money, Cambridge Journal of Economics, Volume 12, Issue 3, September 1988, Pages 329–337,

Knight, F.H., 1921. Risk, uncertainty and profit (Vol. 31). Houghton Mifflin.

Keynes, J.M., 1936. The general theory of interest, employment and money.

SAVAGE, L.J. The foundations of statistics. Nova Iorque: Dover Publications, 1954.

Silva, Elson Perez. “INCERTEZA, EXPECTATIVAS E CONFIANÇA.”

Shackle, G.L.S. and Ford, J.L., 1990. Time, expectations, and uncertainty in economics: selected essays of GLS Shackle. Edward Elgar Publishing.

Keynes, John (2004). A Treatise on Probability. Nova Iorque: Dover Publications. p. 30. ISBN 978–0–486–49580–4

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Lucas Badaro
Heterodoxos

Hábil jogador de sinuca e apaixonado por economia