O que As Veias Abertas da América Latina pode nos dizer sobre o desenvolvimento econômico?

Felipe Carvalho Brisola
Heterodoxos
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12 min readJul 13, 2020
Imagens: L&PM Editores

As Veias Abertas da América Latina foi publicado originalmente em 1971 por Eduardo Galeano e é considerado até hoje um livro fundamental para entendermos a história, as particularidades e os dramas latino americanos. Os anos 70 na América Latina foram conturbados, o Brasil vivia sob ditadura militar após o golpe de 1964, em 1971 Banzer assume o poder na Bolívia por meio de outro golpe de estado, em 1976 a Argentina vê o general Videla assumir o posto de presidente ao derrubar Isabelita Perón, em 1973 o projeto de Salvador Allende é derrubado por Augusto Pinochet e no mesmo ano no Uruguai, terra natal de Galeano, ocorre mais um dos inúmeros golpes na América Latina, todos seguidos de ditaduras militares que perseguiram e torturaram opositores e civis. Em meio a este caos o livro As Veias Abertas da América Latina coloca em questão um debate fundamental: A importância de se compreender a América latina, suas peculiaridades, seus problemas e principalmente sua história. Para fazer tal debate, Galeano retorna a nossa colonização e a partir dela passa a observar o desenvolvimento do capitalismo desde as colônias de exploração até as tentativas de desenvolvimento e das diversas rupturas democráticas.

Contudo qual a importância deste clássico para compreendermos o capitalismo nos dias de hoje? Qual é a importância de se compreender o período colonial sendo que hoje a economia ocorre de forma “moderna”? De que modo essa compreensão pode nos guiar para entendermos o desenvolvimento na América Latina?

Para respondermos tais questões é necessário entender primeiramente as diversas interpretações a respeito do desenvolvimento econômico. Segundo o professor José Luis Fiori, houve dois momentos na história em que o tema do desenvolvimento esteve em foco. O primeiro foi entre 1940 e 1950 no contexto do pós-Segunda Guerra Mundial (período que coincide com o governo de Domingo Perón na Argentina e com o governo democrático de Getúlio Vargas). O segundo foi nos anos de 1980 e 1990, período em que diversos países da América latina passaram pela chamada Crise da dívida externa. Nesses dois momentos, distintas correntes de pensamento se propuseram a estudar a problemática do desenvolvimento.

Weberiana

Weber (esquerda) e Rostow (direita) — Imagens: University of Amsterdam, Artis Library e benranson.uk

A primeira delas é a Weberiana cujo principal expoente foi o economista americano Walt Whitman Rostow que defende que existem etapas de desenvolvimento que os países deveriam realizar para alcançar um ideal, uma espécie de regramento que os países deveriam seguir para alcançar um futuro próspero. Tal ideia ainda está presente no debate político atual por meio de figuras tanto de esquerda, que acreditam em “passos” para alcançarmos um futuro mais próspero, quanto de direita que acreditam que basta a aplicação do modelo liberal e a abertura econômica para que caminhemos rumo a um futuro próspero, ou seja, ambos na busca por “etapas” de desenvolvimento. Nessa perspectiva a economia dos países latino americanos são economias atrasadas em comparação às modernas europeias e norte americana.

Estruturalista

Prebisch(esquerda) e Furtado (direita) — Imagens: Agência estado e Xadrez Verbal

A segunda corrente que estuda o desenvolvimento é a estruturalista cujo maiores representantes são os economistas Raúl Prebisch e Celso Furtado, uruguaio e brasileiro, respectivamente. Esses dois economistas foram os fundadores da CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e Caribe) e desenvolveram diversos instrumentos para analisar a América Latina. Essa corrente possui uma visão diferente da Weberiana pois não acredita que existem apenas “simples passos” para o desenvolvimento. Para esses autores existe uma relação de troca desigual entre um centro econômico e uma periferia. O centro possui tecnologia para desenvolver bens com maior valor agregado enquanto que a periferia se caracteriza por venda de matérias primas com baixo valor agregado. Com isso o desenvolvimento não poderia ser visto apenas como “passos”, mas se torna necessário entender as relações entre os países, seus termos de troca, suas características e etc. Essa nova visão da CEPAL e os diversos estudos e ferramentas desenvolvidas para estudar a América Latina contribuíram muito para o debate desenvolvimentista da segunda metade do século passado.

Marxista

Marx (esquerda), Cueva (direita) e no centro, de cima para baixo, Marini, Theotônio e Bambirra — Imagens: Karl Kautsky, thereaderwiki, Editora Expressão Popular, Reprodução El Desconcierto e Rubens Lopes

Uma terceira corrente que analisa o desenvolvimento latino americano é a Marxista que tem como principais nomes Rui Mauro Marini, Vania Bambirra, Theotônio Dos Santos e Agustín Cueva. Essa corrente também analisa o aspecto do desenvolvimento a partir de relações entre os países, no entanto se utiliza de um ferramental próprio baseado nos textos de Karl Marx e nos estudos a respeito do Capital. Para essa escola, a relação econômica entre países ocorre por meio da exploração da mais valia absoluta dos trabalhadores da periferia do sistema que gera um aumento da mais valia relativa nos centros capitalistas.

Em o Capital,livro I capitulo X, Marx define: “O mais-valor obtido pelo prolongamento da jornada de trabalho chamo de mais-valor absoluto; o mais-valor que, ao contrário, deriva da redução do tempo de trabalho necessário e da correspondente alteração na proporção entre as duas partes da jornada de trabalho chamo de mais-valor relativo

Cabe destacar também a influência da Escola Superior de Guerra na década de 1950, uma corrente nacionalista, defensora da industrialização do período Vargas dos anos 30 e nos dias de hoje da chamada escola Novo Desenvolvimentista, que tem o economista brasileiro Luiz Carlos-Bresser Pereira como um de seus principais divulgadores.

Para podermos entender a importância da obra de Galeano para a América Latina, vamos analisá-la sob duas dessas correntes: a Estruturalista e a Marxista. A escolha de ambas escolas se deve ao fato delas possuírem uma análise mais profunda das relações econômicas entre os países e não apenas a manutenção de uma “receita de bolo” para um “futuro próspero”, até porque o grande trunfo do livro de Galeano é demonstrar como ocorrem essas relações, desde a chegada dos Europeus na América e seus reflexos para a atualidade latino-americana. Para aprofundamento utilizaremos dois atores fundamentais, o sociólogo equatoriano e marxista Agustín Cueva e o economista estruturalista argentino Raúl Prebisch.

Logo no primeiro capítulo de seu livro, Eduardo Galeano aborda a chegada dos europeus na América Latina.

O Novo Mundo e o desenvolvimento do capitalismo do eixo centro-periferia

Mapa do mundo de 1502 — Imagem: Wikipédia/Domínio público

Os reis católicos da Espanha decidiram financiar a aventura do acesso direto às fontes, para livrar-se da onerosa cadeia de intermediários e revendedores que monopolizavam o comércio das especiarias e das plantas tropicais, das musselinas e das armas brancas que provinham de misteriosas regiões do Oriente

As Veias Abertas da América Latina, Pg 17

O trecho acima é considerado por Galeano como sendo o marco inicial de uma série de mudanças na estrutura da economia mundial, pois as antigas rotas comerciais ligavam o oriente (China e Índia) e o que hoje entendemos como Oriente Médio com a Europa. Quando os Europeus encontram a América, surge uma nova rota comercial e de fontes de recursos para Europa que possibilitará o desenvolvimento deste continente alterando totalmente a geopolítica da região à época. A partir disso o mundo como era conhecido muda radicalmente, até mesmo no aspecto geográfico, pois antes do descobrimento da América, a compreensão do mundo era representada pelos mapas em formato de “T — O” já que se acreditava que existiam apenas as três terras que foram criadas após o dilúvio bíblico, pelos três filhos de Noé. Nessa lógica, do ponto de vista europeu, a América seria uma “filha da Europa”.

Mapa em T-O Imagem: momentumsaga

Com a revelação da América surge um problema, este continente já era habitado por índios locais e civilizações imensas (Astecas, Incas e Maias) que viviam há anos na terra que viria futuramente a ser conhecida como América. Visando o apagamento histórico dos povos, os europeus criaram a ideia de Novo Mundo, com a intenção de subjugá-lo.

Cueva e a leitura marxista

No clássico O Desenvolvimento do Capitalismo na América Latina, Agustin Cueva aponta que o período da colonização constitui a nossa debilidade inicial pois representou a incorporação da América latina dentro de um contexto de capitalismo imperialista. Ele descreve que o capitalismo para se desenvolver na Europa precisou de um processo chamado Acumulação Primitiva do Capital que se caracterizou como uma série de mudanças no antigo sistema, como por exemplo os “ Enclosure Acts” que expropriou a terra de camponeses para o uso da burguesia local e ao mesmo tempo transformou esses antigos camponeses em proletários (que não possuem nada a vender exceto sua própria força de trabalho). Outro exemplo dessa mudança ocorrida foi o colonialismo que retirou a matéria prima das colônias para o centro do capitalismo. Tudo isso para que na Europa surgisse as condições para o desenvolvimento das forças produtivas e da apropriação do excedente econômico, que seria fundamental para o início da Revolução Industrial.

Em paralelo a esse processo, na América Latina ocorre o inverso pois o excedente econômico que era feito neste continente não se transformava em capital, fluindo assim para o exterior. Cueva descreve esse modelo como desacumulação primitiva. Outra característica dessa desacumulação é a falta do desenvolvimento das forças produtivas devido à implantação da escravidão e servidão.

Em outras palavras, em um primeiro momento o capitalismo se desenvolve na Europa enquanto que na América prevalecem as relações pré-capitalistas.

Galeano descreve esse processo da seguinte forma:

“O saque, interno e externo, foi o meio mais importante de acumulação primitiva de capitais que, desde a Idade Média, tornou possível a aparição de uma nova etapa histórica na evolução econômica mundial”

As Veias Abertas da América Latina, Pg 33

Cueva também nos alerta que um Estado Nacional — tal como imaginado na Europa — não existe na América Latina, pois sua formação depende de uma estrutura econômica e social, que não se desenvolve por aqui. Após compreendermos esse aspecto histórico é possível analisar outro aspecto da economia latino americana, que ao invés de eliminar o latifúndio imposto pelas potências imperialistas, este foi aperfeiçoado e transformado em eixo de evolução.

Galeano nos diz sobre a questão:

“O latifúndio e seu parente pobre, o minifúndio, constituem, em quase todos os países latino-americanos, o gargalo da garrafa que estrangula o crescimento agropecuário e o desenvolvimento de toda a economia. O regime da propriedade imprime sua marca no regime da produção”

As Veias Abertas da América Latina, Pg 123

Sob essa questão Agustin Cueva aponta uma série de consequências que essa característica implica no desenvolvimento latino americano. Primeiramente, em uma economia industrial do centro do capitalismo, o lucro do capitalista é sensível à conjuntura, ou seja, dependendo dos acontecimentos mundiais, os preços e consequentemente os lucros do capitalista podem cair e com isso o excedente obtido em um momento de boa conjuntura é reinvestido pelo capitalista, tendo em vista a possibilidade de perda em períodos posteriores de crise. No caso de uma economia agrária como a latino-americana, os ganhos excepcionais são somente gastos pois a renda de uma economia agrária não varia de forma significativa em tempos de crise, ou seja, não varia de acordo com a conjuntura.

Prebisch e a leitura estruturalista

Raúl Prebisch foi um dos autores mais importantes nos estudos das relações centro-periferia, ou seja na ideia (simplificada) de que existe um centro produtor de manufatura e uma periferia que exporta matérias primas. Ele desenvolve essa ideia a partir de uma análise da deterioração dos termos de troca entre países de elevado progresso técnico, alta produtividade (centro) e países que dependem da exportação de produtos agrícolas. Ou seja mantendo o volume exportado de bens agrícolas, o seu poder de compra de produtos industrializados tende a diminuir com o tempo.

Esse fenômeno se deve a diversos fatores, a começar pelo fato de que o efeito elasticidade renda da demanda que é inelástica (a sensibilidade da demanda dada a variação da renda) é menor em produtos primários do que em produtos industrializados, ou seja, conforme a renda aumenta nos países industrializados isso não reflete em um aumento no consumo de bens primários nos países periféricos¹. Um segundo fator importante é a concorrência entre os países exportadores de bens primários que são homogêneos². Um terceiro fator importante são os salários mais baixos, em comparação com o centro, pagos na periferia que impedem a absorção do ganho de produtividade nestas economias. Por fim um quarto fator é a tecnologia que está sob posse dos países centrais que criam vantagens comparativas para o centro do capitalismo (conceito ricardiano que veremos posteriormente). Nas palavras de Prebisch “à medida que a renda global aumenta, devido ao aumento da produtividade, a demanda muda principalmente para novas formas de bens e serviços, e não para aquelas que já estavam sendo produzidas. Essa diversificação ocorre em bens manufaturados e não em alimentos e outros bens primários, onde a troca e a diversificação são muito limitadas”.

  1. Se um inglês aumenta a sua renda, não significa que ele irá comprar mais café de SP, significando assim uma demanda inelástica por café.
  2. Não existem diferenças significativas entre o café de São Paulo com o café Colombiano que concorriam na época.

Em suma Prebisch mostra que a característica dos países latino americanos de se manterem como produtores agrícolas pode levar os mesmos a desequilíbrios em suas balanças de pagamentos, fenômeno que os perseguiu durante anos.

A debilidade tecnológica, um caso latino-americano na Amazônia

Voltando a Galeano, o escritor uruguaio ainda foi importante ao analisar outra característica que uma economia periférica possui, a sua dependência decorrente da falta de tecnologia (o quarto fator analisado por Prebisch). No capítulo O ciclo da borracha, Caruso inaugura um teatro monumental no meio da floresta, Galeano descreve a história dos trabalhadores que atuavam na floresta amazônica em um regime muito próximo a escravidão em que o pagamento era feito com carne seca, farinha de mandioca e rapadura. Eles atuavam no ciclo da borracha que provinha — em sua maior parte — do Acre recém tomado da Bolívia devido ao Tratado de Petrópolis.

Árvore-da-borracha, mais conhecida como Seringueira — Imagem: Supermax Brasil

Os magnatas da borracha que se aproveitavam da situação dos trabalhadores, e usaram a renda derivada da borracha para construção de obras de arquitetura extravagante (como por exemplo o Teatro do Amazonas). No entanto toda esse gasto era sustentado por um único produto, que não possuía um alto valor agregado e que se utilizava de uma mão de obra semi-escrava. Bastou apenas o contrabando de algumas sementes da chamada árvore-da-borracha para que com o tempo a Inglaterra começasse a produzir o produto primário, derrubando o seu preço internacional pela metade.

“A prosperidade amazônica virou fumaça. A floresta tornou a se fechar sobre si mesma. Os caçadores de fortuna emigraram para outras comarcas; o luxuoso acampamento se desintegrou.”

As Veias Abertas da América Latina, Pg 83

Tal exemplo mostra como depender de um único produto, com baixo valor agregado em um regime de trabalho precário só prejudica a economia de um país como um todo.

Os anos passam e os problemas persistem

Imagens: Jalhen e Eloise Acuna

São quase 50 anos desde a publicação de As Veias Abertas da América Latina e este livro ainda diz muito sobre nossa realidade pois os principais problemas enfrentados nos dias de hoje possuem raízes em nosso passado colonial e no desenrolar de nossa história. Galeano nos mostra que a economia não pode ser entendida como “moderna” em contraponto a uma “economia atrasada”, pois são as relações existentes nessas diferentes economias que funcionam em conjunto e que geram certos resultados, em outros palavras, a Europa e os EUA não poderiam ser considerados “modernos”, eles apenas exploraram e exploram de diferentes maneiras outras economias.

As Veias Abertas da América Latina continua atual e presente para compreendermos nossa realidade, um clássico digno de “um povo sem pernas, mas que ainda caminha”.

Referências

Fiori,José Luis. Estado e desenvolvimento na américa Latina

MARINI, Rui Mauro. Dialética da dependência

Quental, Pedro Araújo . A latinidade do conceito da américa latina

CUEVA, Agustín. O desenvolvimento do capitalismo na américa latina — Capítulo:As estruturas pré-capitalistas, ante-sala do subdesenvolvimento

CUEVA, Agustín. O desenvolvimento do capitalismo na américa latina -Capítulo: A problemática configuração do estado nacional

CUEVA, Agustín. O desenvolvimento do capitalismo na américa latina -Capítulo: A Estrutura desigual do subdesenvolvimento

COUTO, Joaquim Miguel. O pensamento desenvolvimentista de Prebisch

Notas sobre el intercambio desde e punto de vista periférico Prebisch (1986) disponível em : https://repositorio.cepal.org/handle/11362/11914

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Felipe Carvalho Brisola
Heterodoxos

Leitor de quadrinhos do Batman e no tempo livre estudante de economia