Afinal, por que a América Latina é tão desigual?

Felipe Carvalho Brisola
Heterodoxos
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9 min readDec 31, 2020
Fonte: William Unsplash e fonte desconhecida

A desigualdade no Brasil e no mundo

A desigualdade social é um grave problema que assombra diversas economias no mundo, de países desenvolvidos até países subdesenvolvidos, a diferença entre ricos e pobres gera tensões e evidencia a fragilidade de valores liberais como a meritocracia — pois elimina de uma grande parte da população a possibilidade de ascender socialmente — , cria injustiça social e segundo alguns estudos mostram, a desigualdade social também atrapalha o desenvolvimento econômico. Esse tema vem sendo discutido por diversos estudiosos e pesquisadores ao redor do mundo, já foi até criado, por exemplo, o Índice de Gini, que visa medir o grau de concentração de renda em determinados grupos. Um outro exemplo dessa preocupação pelo tema se manifesta no sucesso do livro de Thomas Piketty lançado em 2014, “O capital no século 21”, em que o economista discute a questão da desigualdade com base nos dados de imposto de renda em diversos países, analisando o tamanho de seus problemas sociais, suas causas e consequências, inclusive segundo Piketty, a desigualdade possui um efeito político perverso pois pode resultar em políticas xenofóbicas e nacionalistas.

A Oxfam por exemplo, aponta em um de seus relatórios alguns pontos interessantes acerca da especificidades da desigualdade brasileira, e abaixo temos dois deles:

⦁ O 1% mais rico no Brasil ganha 72 vezes mais que os 50% mais pobres.

⦁ Os rendimentos mensais do 1% mais rico são 36,3 vezes a renda dos 50% mais pobres.

O relatório ainda conclui que essa desigualdade se manifesta em diversos aspectos, como o racial (os brancos tem mais acesso à riqueza que os negros), na diferença entre a remuneração de homens e mulheres (com os primeiros concentrando os maiores salários) e também na discrepância da carga tributária, já que os mais ricos pagam proporcionalmente menos impostos que os mais pobres.

Que a desigualdade social é um problema isso tende a ser um consenso, porém o objetivo desse texto é buscar uma resposta para as possíveis peculiaridades e especificidades da desigualdade social na América Latina, que por sua vez não apresentam paralelos com o continente europeu. Particularidades que explicam porque a desigualdade social é maior na periferia do capitalismo (América Latina) do que em seu centro (EUA e Europa). Para tanto, esse texto terá dois passos: primeiro mostrar se de fato a desigualdade é ou não maior na periferia do que no centro, e segundo, analisar as causas dessa desigualdade para entender esse fenômeno.

Disparidades centro-periferia

Podemos concluir que a desigualdade social é maior na América Latina do que no chamado centro do capitalismo de um jeito bem fácil, pois já existem diversos estudos embasados, carregados de evidências, por exemplo, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) que apontou a América Latina como a região mais desigual do planeta, ultrapassando até as disparidades de regiões mais pobres do mundo.

Vejamos abaixo mais alguns dados que comparam a desigualdade entre o centro e a periferia.

Fonte: elaboração própria

No gráfico acima, observamos que no ano de 2017 a desigualdade na periferia se encontrava acima da desigualdade dos países centrais. Dentre os países observa-se que o único do centro que se aproxima da desigualdade da periferia é os EUA, por questões específicas que serão exploradas em outros momentos. Na América Latina, o país que se aproxima da realidade do centro é o Uruguai, uma exceção à regra. Já no centro vemos que França e Suíça, famosos por políticas de bem-estar social, possuíam um Índice de Gini consideravelmente menor. Em geral, a desigualdade do centro do capitalismo é menor do que na periferia, enquanto os países mais desiguais se encontram próximos da cor vermelha, os países mais igualitários se localizam próximos da cor azul(repare no caso dos países europeus).

Feito o primeiro passo de mostrar que a desigualdade da periferia é maior do que no centro, cabe nos perguntar a seguir: por que isso ocorre?

De acordo com o artigo “Linking Economic Complexity, Institutions, and Income Inequality” publicado pelos professores Hartmann, Guevara, Figueroa, Aristaran e Hidalgo, é importante entendermos a correlação existente entre a desigualdade social e a complexidade econômica (a composição da pauta exportadora de um país). Para entendermos melhor o que significa complexidade econômica é importante destacar três aspectos: o quanto o país exporta de bens com composição de produtos sofisticados (que demandam muita tecnologia para serem fabricados), o quão ubíquo¹ são os produtos exportados e por fim o quão diverso é a composição dessa pauta exportadora.

1.Para entendermos o conceito de ubiquidade, pensemos em um exemplo: poucos países conseguem vender um carro elétrico, portanto seria esse um bem não ubíquo. Agora a banana por exemplo pode ser produzida por diversos países, logo a banana é um bem ubíquo.

O método usado pelos professores teve como base o uso da plataforma Economic Complexity Index (ECI) — para avaliar o grau de complexidade econômica dos países — , juntamente com os dados sobre desigualdade (medido pelo Índice de Gini), que permitiram aos autores chegarem à conclusão de que os países que possuem baixa desigualdade em geral possuem uma pauta exportadora de bens não ubíquos, dotados de tecnologia de ponta. Por outro lado, nós latino-americanos, temos uma estrutura exportadora baseada em bens com baixa produtividade e alta ubiquidade.

Vejamos um primeiro exemplo dessa comparação de pautas exportadoras, especificamente entre a brasileira (o país mais desigual da América do Sul) e a francesa (um dos países menos desiguais da Europa).

Exportações brasileiras em 2018 (esquerda) e exportações francesas em 2018 (direita) — Fonte: Economic Complexity Index (ECI)

Repare que enquanto o Brasil exporta em grande parte minério de ferro e soja, o que mais pesa nas exportações francesas são os aviões, helicópteros, carros e etc. Observe também como a estrutura produtiva francesa é mais diversificada do que a brasileira. Para compararmos a produção em produtos complexos com a produção de commodities, pensemos por exemplo em um carro de ponta que gera em sua produção uma quantidade considerável de empregos com altos salários, demandando tecnologia, educação e a formação de encadeamentos para trás e para frente em sua cadeia produtiva, o que acaba promovendo até certo ponto uma mobilidade social positiva. Já uma estrutura especializada em commodities não goza do mesmo dinamismo, sendo caracterizada em geral por baixos salários (quando comparada com os salários em indústrias competitivas), mão de obra precária, baixa tecnologia (em comparação com a tecnologia usada na indústria) e baixa mobilidade social, com a unidade produtiva na mão de poucos latifundiários.

Mas é claro que um exemplo por si só não prova a correlação entre estrutura econômica e desigualdade, para tanto voltemos ao artigo dos professores em busca de mais respostas.

Podemos ver no gráfico de complexidade econômica abaixo (à esquerda) que países que possuem uma alta desigualdade como Bolívia e Equador possuem também uma baixa complexidade econômica. Diversos países detentores de certas especificidades seguem ao redor da reta decrescente, que demonstra a relação de uma maior complexidade econômica com uma menor desigualdade e vice-versa, ou seja, existe uma relação negativa entre ambas as variáveis. Como a América Latina é uma região com baixa complexidade econômica temos — seguindo a correlação — uma alta desigualdade.

Complexidade econômica mundial e o Índice de Gini — Fonte: gráficos extraídos do artigo “Linking Economic Complexity, Institutions, and Income Inequality”

Mas alguém poderia argumentar que no Brasil, principalmente durante o governo Lula II, o país tinha uma pauta exportadora baseada em sua grande parte em commodities e apresentava simultaneamente uma forte redução da desigualdade. Bom, esse é um ponto interessante, contudo é importante destacar um aspecto que o artigo dos professores levantam: de que a desigualdade nos países com pauta exportadora baseada em commodities está em “em outro patamar” quando comparada com a desigualdade dos países do centro capitalista. Para entendermos o que isso significa, vamos ver o gráfico abaixo que mostra uma comparação entre países que exportam commodities, no caso o cobre (Chile, Georgia, Tanzânia, Mongólia e Peru) e países que exportam produtos de mais complexos (Itália, Áustria, Finlândia, Suíça e Suécia). Repare que os países exportadores de cobre possuem uma desigualdade consideravelmente maior que os países do centro quando avaliamos o gráfico do Índice de Gini acima (à direita).

Diante dos gráficos apresentados podemos perceber duas coisas: a primeira é a de que existe uma correlação negativa entre complexidade econômica e desigualdade social — quanto mais complexo menos desigual —, e a segunda diz respeito ao fato de que a desigualdade social entre países que exportam produtos complexos está em “um patamar” abaixo da desigualdade dos países exportadores de commodities

A desigualdade vigente na América Latina é bem diferente da desigualdade do centro, e mesmo que políticas públicas que visem combater a desigualdade sejam feitas (e devem), essas políticas apenas reduzem a desigualdade dentro do “patamar” da periferia, por exemplo, nos governos FHC II, Lula I e II e Dilma I houveram de fato sucessivas reduções da desigualdade, que chegou em 2015 ao valor de 0.52, tal como o mostrado abaixo.

Histórico do Índice de Gini do Brasil (1995 -2018). Repare que a menor desigualdade registrada no Brasil foi no ano de 2015 — Fonte: World Bank Database

Contudo, quando comparamos a desigualdade social existente no centro que está entre 0.36 na Itália e 0.29 na Suíça (salvo algumas exceções), percebemos que essa redução da desigualdade, apesar de importante, foi muito distante da ocorrida no centro.

É claro que também podem existir exceções, alguém poderia citar a Austrália e a Noruega, mas aqui cabe lembrar um fator importante, esses são países que possuem de fato muita riqueza, mas também conservam uma população pequena e rica em recursos naturais, podendo desfrutar assim de uma altos níveis de renda per capita. Também é importante frisar que os gráficos analisados mostram uma correlação negativa entre os países sofisticados e não sofisticados. Japão e EUA, que apesar de possuírem uma elevada complexidade econômica, apresentam índices altos de desigualdade social em comparação com outros países do centro do capitalismo, ou seja, exceções existem mas a correlação é inegável.

Tendo em vista que existe uma correlação entre complexidade econômica e disparidades sociais, cabe nos perguntar: é a desigualdade que cria uma pauta não complexa ou é a pauta exportadora de commodities que gera a desigualdade?

Causas e consequências

Para entendermos essa causalidade, o primeiro ponto a se levantar é o aspecto histórico. Para tanto, o Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz aponta em entrevista à BBC que as condições para a desigualdade social na América Latina se encontram em nosso passado colonial. Essa é uma análise importante pois quando observamos a colonização em terras latinas, observamos a consolidação da desigualdade de terra, que colocou uma grande parte da população distante de qualquer meio de sobrevivência. Pense no caso brasileiro (mas isso poderia ser aplicado também à toda América Latina), quando estudamos nossa história vemos que tivemos um sistema de terras bem desigual, caracterizado pelas Capitanias Hereditárias e posteriormente pelas leis de terras. Com isso o sistema político que reflete essa estrutura é a de grupos ligados ao latifúndio, que usam do Estado para perpetuar seus interesses. Isso esteve presente durante todo o período monárquico (cujo o fim esteve ligado ao fim da escravidão e o desagrado das elites fundiárias) na República da Espada e na subsequente República Velha. Temos então que nosso passado colonial condicionou a formação de uma estrutura baseada em produtos base, estrutura essa que está intimamente correlacionada com uma alta desigualdade social.

É claro que todo país tem sua própria história, sua própria especificidade. O Brasil passou por alguns projetos de industrialização mas ainda assim é um país muito desigual (até porque esses projetos de industrialização tiveram seus limites e não propiciaram a formação de uma indústria moderna), contudo ao observarmos os gráficos apresentados e a nossa história enquanto país, é possível dizer que nossa estrutura econômica (aliada a outros fatores como a ausência de programas de redução da desigualdade social) é uma das responsáveis pelas nossas disparidades sociais.

Por fim, podemos chegar a algumas conclusões: primeiro a de que existe uma correlação clara e observável entre viver exportando commodities e possuir uma alta desigualdade social, segundo de que a nossa desigualdade é consideravelmente maior, em “outro patamar” se comparado com alguns países europeus, e em terceiro a manutenção da estrutura produtiva de baixa complexidade econômica em nosso passado colonial. Portanto a desigualdade para nós, latino- americanos, é diferente da desigualdade europeia, aqui temos um capitalismo tal como o deles, entretanto temos particularidades que devem ser levadas em conta quando analisamos nossa realidade, ao invés de importarmos ideias e modelos de outras estruturas econômicas.

Aqui temos latifúndios, dependência econômica, sofremos de inúmeros golpes e de uma série de características que devem ser pensadas por latino-americanos, para latino-americanos.

Referências

Relatório da Cepal: https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/41598/4/S1700567_es.pdf

Entrevista de Joseph Stiglitz : https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51406474

Texto do professor Paulo Gala: https://www.paulogala.com.br/por-que-a-estrutura-produtiva-condiciona-a-desigualdade-de-renda-de-um-pais/

Artigo: Linking Economic Complexity, Institutions, and Income Inequality, dos professores: Dominik Hartmann, Miguel R. Guevara, Cristian Jara Figueroa, Manuel Aristaran e Cesar A. Hidalgo: https://www.eco.unicamp.br/images/arquivos/Hartmann_WD_May2017.pdf

Entrevista com Thomas Piketty: https://www.youtube.com/watch?v=y82tZaHnvKI

Relatório da OXFAM sobre desigualdade social no Brasil: https://www.oxfam.org.br/um-retrato-das-desigualdades-brasileiras/pais-estagnado/

Artigo do Professor Paulo Gala: https://www.paulogala.com.br/como-medir-complexidade-economica/

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Felipe Carvalho Brisola
Heterodoxos

Leitor de quadrinhos do Batman e no tempo livre estudante de economia