Possibilidades econômicas para nós, os netos

Notas sobre o papel da economia no Capitaloceno

Lilian Roizman
Heterodoxos
19 min readDec 7, 2020

--

Fonte: ozengenharia e National Portrait Gallery/Divulgação

“[…] as ideias de economistas e de filósofos políticos, tanto quando têm razão como quando não a têm, são mais poderosas do que normalmente se pensa. Na verdade, o mundo é governado por pouco mais. Homens práticos, que se creem bastante isentos de quaisquer influências intelectuais, são normalmente escravos de algum economista defunto.”

— John Maynard Keynes

“É mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo.”

— Fredric Jameson/Slavoj Žižek

O silêncio que deriva do fardo

Em um desses dias, minha terapeuta estava tentando me convencer a ser menos pessimista. Ela disse que, em termos de construção de carreira, as coisas com certeza estão melhores para sua filha do que foram para ela. “Nem tudo está piorando”. Eu respondi, surpreendentemente, que não sabia nem ao menos se ter filhos era uma possibilidade para mim. Para pôr filhos nesse mundo, precisamos ao menos ter um mundo. Foi surpreendente para mim porque até então não tinha colocado essa preocupação em voz alta. Eu sempre pensei em dedicar minha vida a pensar soluções para os problemas ambientais, mas acho que só agora eu passei a encarar como esses problemas terão um impacto direto na esfera pessoal da minha vida: ter filhos, por exemplo. Sempre nos disseram que serão questões do futuro; questões um tanto abstratas, de um futuro indeterminado. Mas não: essas serão questões muito palpáveis, de um futuro bem próximo. Foi nesse momento que eu percebi duas coisas: do abismo que separa nossa geração da dos nossos pais e professores; e de como a minha percepção sobre o futuro se alterou nos últimos meses, sobretudo depois que comecei a me dedicar à pauta ambiental.

Sempre me incomodou demais a simplicidade dos nossos professores quando perguntados: “E agora? O que fazer?”. O jeito com o qual abrem um sorriso sincero e respondem: “Agora é com vocês!”. Passei a invejar a leveza com a qual passam a responsabilidade do estrago que fizeram para nós. E de fato, eles nos apresentam os modelos mais acurados sobre o que nos espera. Mas o que nos apresentam é o nosso futuro, não o deles. Nós teremos que lidar com as consequências do que nos fizeram. Eu aprendi a ter raiva dessa leveza, e passei a considerar o otimismo um luxo.

A ideia de que todos aqueles que já tem mais que seus 40 anos são privilegiados deve ser reivindicada. É por isso que vou usar este espaço para falar com estudantes de economia como eu, pessoas em sua maioria vencendo o cansaço do dia a dia diante de um futuro (muito) incerto. Aos meus colegas que, quando perguntados, não dizem nada, pois muitas vezes já não há por que dizer; aos co-autores do silêncio da sala de aula (e agora dessas insuportáveis conferências de vídeo), onde não temos o que discutir. O silêncio é uma coisa difícil de desemaranhar, sobretudo porque ele diz ao mesmo tempo o nada e o tudo, a passividade e a revolta, o vazio da mente ou a atribulação de pensamentos, a vergonha, a impotência, o descaso. Eu não poderia me propor a interpretar o silêncio de vocês, porque o silêncio coloca no espaço um mistério, e esse mistério me põe em contato com meu próprio silêncio, que já é suficientemente espesso para ser atravessado.

As possibilidades econômicas para os nossos netos?

Estamos — infelizmente-em 2020. Nos restam apenas 10 anos para que o prazo dado por Keynes para que sua utopia se realize. Em 1930, Keynes publicou seu ensaio “Possibilidades Econômicas para Nossos Netos”, em que descreve com toda a caridade de seu otimismo suas perspectivas para o século futuro. Esse texto tornou-se, em alguma parte, o cânone entre economistas que apregoam a temporariedade dos problemas sociais e ambientais que enfrentamos. Todo estudante de economia já ouviu (ou senão, certamente ouvirá) falar elogiosamente desse texto. Nós, os jovens economistas, precisamos combater esses elogios: é uma questão de sobrevivência, nós sofremos hoje de um mau ataque de otimismo econômico.

Keynes vislumbra em seu curto ensaio a resolução definitiva do problema econômico que afligiu a história da humanidade desde seu princípio: a escassez de recursos, o peso diário do labor em sua luta pela sobrevivência. Já se parte, daí, de um olhar pejorativo sobre o passado, que tem por base a universalização da única métrica possível ao homem branco ocidental; o produtivismo. Mede-se a qualidade de vida de todas as gerações da espécie humana, independentemente de sua localização cultural, geográfica ou temporal, pela sua riqueza material, ou melhor, pela sua capacidade de produzir mercadorias. Essa visão unilinear da história parte de uma visão unívoca do valor, ignorando o fato de que quase todo outro aglomerado humano simplesmente não tinha como princípio organizativo da vida a mobilização crescente das capacidades produtivas. Entender a história da humanidade como uma narrativa de progresso linear só fará sentido se excluída toda diversidade simbólica e sociocultural do mundo.

Keynes culpa a “falta de progresso” na incapacidade de se acumular capital e inovação técnica. O poder dos juros compostos — a concepção de acumulação exponencial de valor — teria libertado a humanidade de seu estado de miséria estagnada, inaugurando a idade moderna. Keynes diz que o impulso inicial desse processo teria sido a alta de preços induzida pelo “tesouro” de ouro e prata que a Espanha trouxe do mundo Novo ao Velho. Não me alongarei muito nesse ponto, mas é notável a romantização do processo de espólio da conquista colonial, que foi apenas parte do extenso período de acumulação primitiva. Um processo que custou a vida de uns 30 milhões de ameríndios (Bethell, 1998), por conta do genocídio, peste e trabalho forçado nas minas.

De fato, o desencadeamento do regime de acumulação capitalista promoveu um aumento impressionante das forças produtivas e da multiplicação da riqueza material avaliada em termos monetários. As principais inovações tecnológicas sem dúvida possibilitaram que mais fosse produzido com menos esforço: Keynes afirma que o padrão de vida cresceu cerca de 4x na Europa e Estados Unidos após 250 anos de acumulação. Mas esta riqueza, que o autor celebra estar em posse da humanidade, como todos sabem se concentrou num grupo muito restrito. Quando olhamos apenas para a Europa, é fácil ver na acumulação de capital um aumento significativo da qualidade de vida, ainda mais quando o único parâmetro para a qualidade é na verdade um parâmetro quantitativo: o dinheiro. Mas, quando lançamos um olhar holístico e sistêmico sobre o capitalismo, fica evidente que as condições da acumulação capitalista e inovação técnica só foram possíveis após o estabelecimento de uma ordem colonial, racista, patriarcal e classista da sociedade.

Até que ponto, então, essa melhoria do padrão médio dos países desenvolvidos seria possível sem a escravização de povos de matriz africana, a servidão e genocídio ameríndios, que permitiu a mobilização de trabalho barato? Até que ponto seria possível sem a dissolução dos laços comunitários e tradicionais e a dependência das economias periféricas¹ aos seus centros? Até que ponto seria possível sem a subordinação das mulheres ao trabalho doméstico que garantia a ida diária do proletário às fábricas? Ou até mesmo, até que ponto teria sido possível sem a intensiva queima de combustíveis fósseis que coloca o maquinário metálico da indústria em seu movimento quase mágico? O que é preciso é um pensamento econômico que se ponha a questionar quais são, a níveis globais e planetários, os pré-requisitos dessa magnífica “era de ouro” da humanidade.

Na Argentina, 2012, dois pequenos agricultores assistem à pulverização de agrotóxicos no latifúndio que os cerca (à esquerda) e, no Mato Grosso, 2013, a expansão da agricultura sobre a floresta (à direita) — Fonte: Alvaro Ybarra Zabala

Um olhar que privilegia as forças produtivas em detrimento das relações de produção (como se fossem elementos independentes, e não indissociáveis) torna sempre possível uma visão messiânica da tecnologia: ela, em sua reprodução, retroalimenta laços insustentáveis de exploração para com a sociedade e o meio ambiente. Politizar a tecnologia é necessário para compreender que ela liberta na exata medida em que nos escraviza.

1.Há diferentes expressões para designar os países de menor desenvolvimento, tais como subdesenvolvidos, terceiro mundo, pobres, entre outras. Uma forma bastante difundida nos cursos de economia para a classificação de países com características econômicas inferiores é a denominada de economias periféricas, que se difere das economias centrais, isto é, dos países desenvolvidos.

Keynes apostava que, devido ao enriquecimento crescente e à acumulação exponencial de capital, dentro de um século seríamos capazes de solucionar a escassez, mesmo com o aumento populacional. Mas, então, se perguntava: como seria possível sanar a escassez frente a insaciedade aparentemente infinita do homem? Ele separava nossas necessidades entre duas ordens distintas:

“Agora é verdade que as necessidades dos seres humanos podem parecer insaciáveis. Mas elas caem em duas classes — aquelas necessidades que são absolutas no sentido de que nós as sentimos qualquer que seja a situação em que nossos semelhantes seres humanos possam estar, e aquelas que são relativas no sentido de que nós só as sentimos se a satisfação delas nos colocar acima, e nos fizerem sentir-nos acima, de nossos semelhantes. Necessidades da segunda classe, essas que satisfazem o desejo de superioridade, podem realmente ser insaciáveis; pois quanto mais alto o nível geral, mais altas ainda elas serão. Mas isto não é tão verdadeiro quanto às necessidades absolutas — um ponto pode ser logo alcançado, muito mais cedo talvez do que nós possamos perceber, quando estas necessidades são satisfeitas no sentido de que nós preferimos dedicar nossas energias adicionais a propósitos não-econômicos.”

Keynes, pg. 3–4

Quando a escassez do mundo fosse resolvida, o gênero humano (guiado primeiramente pelas elites, “aquelas que estão espiando a terra prometida para o resto de nós e lançando seu acampamento lá”) se depararia com uma espécie de vazio existencial: como viver sem trabalhar? De acordo com Keynes, que partilha de uma visão de natureza como um cruel estado de permanente luta pela sobrevivência em meio à escassez, essa seria uma condição inédita não apenas à humanidade, mas a todos os seres vivos. A um primeiro olhar, essa condição seria aterrorizante para os nossos, que, há milênios foram acostumados ao suor do trabalho. Seríamos todos, de acordo com ele, tão psicologicamente miseráveis como as mulheres das classes altas que, privadas da necessidade econômica do trabalho doméstico, teriam que se dedicar à tristeza de atividades fúteis como a cozinha, a limpeza e os remendos, agora vazios em significado, pois seriam inábeis demais para achar qualquer coisa melhor para preencher seu tempo.

Deixemos de lado a misoginia no exemplo infeliz usado por Keynes, que já nos custaria mais alguns parágrafos. Da mesma forma com a qual ele limita o propósito feminino à esfera do trabalho doméstico, faz o mesmo com a humanidade ao limitar seu propósito ao trabalho. Ao fazê-lo, parte-se de uma falsa dualidade entre lazer e trabalho, que é própria da sociedade moderna. Tal dualidade supervaloriza o tempo de lazer, ao mesmo passo que o coloca em um lugar secundário e luxuoso, após a necessidade do trabalho, ou seja, a dedicação às atividades econômicas geradoras de valor.

Pensar que a redução da jornada de trabalho seria temerosa só faria sentido sob um olhar capitalista, que atribui ao homem o trabalho como sua função primária. É comum que se diga que toda a humanidade fora do capitalismo vivia em uma constante luta contra a escassez, mas ao mesmo tempo é extremamente difundida a visão de que indígenas são preguiçosos, por exemplo. Pierre Clastres reflete com precisão essa contradição ao olhar para os Yanomami que conseguem satisfazer todas as suas necessidades ao trabalhar em média três horas diárias, ou no caso dos Bushman do deserto do Kalahari, que se dedicam, com calma, a cinco horas diárias à sua subsistência.

Mulheres Yanomami (esquerda) e uma pequena tribo Bushman (direita) — Fontes: JOÉDSON ALVES / EFE e Grassland Bushman Lodge

“Com efeito, resulta de sua análise que não apenas a economia primitiva não é uma economia da miséria, mas que ela permite, ao contrário, determinar a sociedade primitiva como a primeira sociedade de abundância.”

Clastres, pg. 124

O tempo do trabalho nessas sociedades não opera em oposição às demais atividades diárias, que denominamos de “lazer”. Assim como o tempo da conversa, dos ritos, da música e da brincadeira, o trabalho não é um fardo pejorativo, mas mais um dos espaços da vida compartilhada. O trabalho, assim, não é universalmente aquele a que fomos condenados na punição pós-edênica. Não precisa haver medo do lazer, porque o trabalho não precisa ser o propósito infeliz da humanidade. Keynes olha com otimismo esse estado de “colapso nervoso” do pavor do lazer após a desnecessariedade do trabalho, uma vez que seria um estado passageiro em que o gênero humano estaria redescobrindo suas potencialidades de ser genuinamente realizado em seus propósitos não-econômicos. O ponto aqui é que poderíamos sonhar com a dissolução do econômico frente às demais esferas da vida, se considerarmos que o trabalho sob o capitalismo enfrenta uma escassez muitas vezes imaginária, pois não se dedica à manutenção da vida, mas à acumulação desenfreada.

Assim, a ideia de que a tecnologia industrial e o capital têm um papel libertador, parte de dois princípios básicos que, para mim, devem ser fundamentalmente problematizados. A tecnologia muito mais desloca o “trabalho” para outros grupos sociais e a natureza que efetivamente o poupa, e o trabalho que ela nos vem poupar é uma forma especificamente moderna de lidar com a produção dentro de um regime capitalista, que separa o econômico da vida.

Afora esses pontos problemáticos pelos quais não poderia deixar de tratar no texto, proponho que avaliemos em que medida as expectativas de Keynes para o nosso presente se efetivaram. Quase cem anos após o texto ter sido escrito, será que nos aproximamos da utopia keynesiana? Será que podemos dizer que o capitalismo sanou nossas necessidades básicas ao ponto de podermos reduzir de modo voluntário nosso tempo de trabalho e voltar nossos esforços ao bom da vida, isto é, o lazer? Vejamos o que aconteceu nesses 90 anos, e seus efeitos ao nosso redor.

Produtividade e o Capitaloceno²

Keynes não errou, de modo algum, suas expectativas sobre a capacidade de constante reinvenção das forças produtivas e o aumento exponencial da produção. Assim como ele previa, algumas décadas depois do texto ser escrito, a inovação tecnológica transbordou da indústria para o campo com a Revolução Verde³, com o uso de agrotóxicos e (pouco mais tarde) transgênicos. No período que se seguiu às Guerras Mundiais, mais especificamente após a década de 50, a sociedade capitalista atravessou um processo mundial de urbanização e uma revolução notável nas tecnologias de transporte e comunicação, bem como seu espraiamento para países “em desenvolvimento”. Esse processo pode ser muito bem notado no ponto de inflexão em praticamente todos os parâmetros socioeconômicos abaixo:

2. O Capitaloceno surge como contraproposta à noção de Antropoceno. Ambos conformam tentativas de nomear o conjunto de mudanças no Sistema Terra, como forma de indicar que já abandonamos o Holoceno e estaríamos passando a uma nova era geológica cujas características ainda são incertas. Enquanto o “Antropoceno” (Era dos Humanos) elenca como fator causante das mudanças climáticas o “antropos” (ser humano a-histórico e universal, sem gênero, raça ou classe), o “Capitaloceno” (Era do Capital) busca associá-las a uma forma específica de reprodução social: o capital, ou seus detentores. A primeira parece indicar que a mudança climática como sina inevitável do “humano”, a segunda aponta caminhos de superação.

3. O termo Revolução Verde designa a invenção e disseminação de novas sementes e práticas agrícolas (como a mecanização do campo e a interferência nos ciclos de nitrogênio do solo por adubação artificial) que permitiram um vasto aumento na produção agrícola a partir da década de 1960 nos Estados Unidos e na Europa e, nas décadas seguintes, em outros países.

Fonte: Steffen et al. (2015)

Mas, a que custo obtivemos esse notável estado de abundância? Will Steffen (e demais autores) analisam a interação entre as tendências socioeconômicas com as tendências observadas em variáveis do sistema terra. Sua defesa é a de que, a partir da invenção da máquina a vapor (um possível marco tecnológico que teria fundado a revolução industrial) em 1750, foi possível observar um aumento expressivo da interferência humana no sistema Terra, que, após a década de 1950, sofreu um ponto de inflexão exponencial. A atividade humana no planeta, de acordo com os autores, estaria tirando as variáveis de sua trajetória estável típica do Holoceno, fundando o que seria uma nova era geológica: o Antropoceno. Enquanto alguns autores relacionam tais efeitos ao aumento populacional e à generalização do padrão de consumo dos países desenvolvidos, outros autores, como Jason Moore, entendem o aumento geométrico das variáveis como resultado inerente do comportamento reprodutivo do capital, que agora atinge escalas titânicas, e, por isso, preferem o termo Capitaloceno. Conforme o pedido final de Keynes, na frase final de seu artigo, os economistas foram levados a sério como especialistas (tal como os dentistas!), e aqui está o resultado.

4. Nós humanos surgimos na época do Pleistoceno, há entre 2,588 milhões e 11,7 mil anos, que, a grosso modo, era bem mais instável e com temperaturas extremas (dentro dele se inseria a “Era do Gelo”, por exemplo). Foi, entretanto, no Holoceno que se desenvolveram a maior parte das “civilizações”: esse período era marcado por uma estabilidade no Sistema Terra e temperaturas mais altas, que permitiram a sedentarização e avanços em uma agricultura mais produtiva, os Estados, uma explosão populacional, etc. Oficialmente, o Holoceno se iniciou há cerca de 11,65 mil anos, após o último período glacial e se estende até o presente. As mudanças climáticas tem tirado o planeta da estabilidade típica do Holoceno, o que talvez indique que estamos passando para uma nova Era geológica, o que ainda é tema de discussão na comunidade científica.

Fonte: Steffen et al. (2015)

A economia capitalista e seu aparato técnico de fato conseguiram mobilizar de maneira acelerada e crescente a riqueza material da sociedade. O ponto é que, fundada na visão dualista entre Humanidade vs Natureza que busca combater a escassez, esqueceu-se que a humanidade é parte que integra o todo, ao ponto de atuar como um agente geológico sobre ela. Em sua tentativa de libertar o Homem da sua luta contra a sobrevivência, como sonhavam Keynes e seus sucessores, o capitalismo mostrou-se capaz de efetivamente criar a escassez em escala planetária. A tecnologia, enquanto matéria capitalista, aparece aqui não com o objetivo de poupar o trabalho, mas como ente social de efeitos geológicos, que organiza fluxos de matéria, consumindo e interferindo nos ciclos naturais a escalas crescentes.

Keynes, em 1930, falava na possibilidade futura de deixarmos nosso amor ao dinheiro de lado. Uma vez solucionado o problema econômico, passaríamos por uma mudança de paradigma moral que, como nos velhos tempos, condenaria os excessos e as acumulações despropositadas. Mas advertia:

“Mas tome cuidado! O tempo para tudo isso ainda não chegou. Pois pelo menos por outros cem anos nós teremos de convencer a nós mesmos e a cada um de que o justo é mau e o mau é justo; pois o mau é útil e o justo não é. Avareza, usura e precaução ainda devem ser nossos deuses por algum tempo ainda. Pois só elas podem nos conduzir para fora do túnel das necessidades econômicas à luz do dia.”

Keynes, pg. 7

E, em 2020, quando estaríamos ao menos vendo muito próxima à luz do fim do túnel das necessidades econômicas… o que vemos? Poderia me alongar nas estatísticas e manchetes recentes de jornal que retratam o desemprego, a divisão de gênero e raça do mercado de trabalho, e as tendências da jornada de trabalho no mundo subdesenvolvido. Mas basta olhar para o mais básico. Hoje em dia, produz-se comida mais que suficiente para alimentarmos 10 bilhões de pessoas (Holtz-Gimenez), mas as tendências mostram que, até 2030, serão 840 milhões de pessoas famintas. Apenas no Brasil, nos últimos 5 anos, cresceu em 3 milhões o número de pessoas passando fome. Sem dúvida, a acumulação de capital promoveu um aumento na produção, mas a ineficiência dos mecanismos de mercado em promover a distribuição do mínimo que se precisa para viver é notável. Mas nossa maior preocupação talvez não seja a ineficiência ou o desperdício, que alguns argumentarão ser questão de gestão ou de propriedade, mas um problema que poderá por em risco a própria produção: a emergência climática.

O meio ambiente e as mudanças climáticas

Gostaria de propor que fizéssemos o mesmo exercício de Keynes, e olhássemos para o futuro daqui a 100 anos. Infelizmente, pensar o longuíssimo prazo já não é mais uma possibilidade. De acordo com o último relatório feito pelo IPCC (Painel Internacional de Mudanças Climáticas), mesmo no caso em que todos os países signatários do Acordo de Paris cumpram com os compromissos afirmados, estaremos fadados a um aumento da temperatura média do planeta em pelo menos 2°C, nos próximos 30 anos. Esse mesmo estudo mostra que, caso os compromissos na redução de emissões de gases de efeito estufa sejam ignorados e se insista em um business as usual, o aumento da temperatura pode atingir 3°C ou mais. Para de fato levar a cabo essas políticas, seria necessária uma mudança rápida no paradigma tecnológico e energético, mas, mais do que isso, seria necessária uma mudança brusca na redução de combustíveis fósseis, desmatamento e incêndios florestais, redução da produção agropecuária intensiva e extensiva: talvez aí pudéssemos nos ater ao marco dos 2°C. Mesmo nesse caso, os efeitos sobre a vida e o funcionamento terrestre serão perversos. No gráfico abaixo podemos ter diferentes projeções de acordo com as políticas climáticas adotadas até 2100:

5. O Acordo de Paris é um tratado mundial que possui um único objetivo: reduzir o aquecimento global. Ele foi discutido entre 195 países durante a COP-21 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas), em Paris. O compromisso internacional foi aprovado em 12 de dezembro de 2015 e entrou em vigor oficialmente no dia 4 de novembro de 2016. Um tempo recorde para um acordo climático dessa envergadura.

6. Mais precisamente, a previsão era de um aumento entre 1,5–2,1°C, mas as informações atualizadas apontam que a janela de tempo para 1,5°C foi perdida.

Fonte: Climate Action Tracker (2020)

E, diante desses cenários, quais são os efeitos que poderíamos prever? O aumento de 2°C implicaria em quase 5,9 milhões de pessoas expostas a ondas de calor extremo, 3,6 milhões de pessoas afetadas por estresse hídrico e 362 milhões de pessoas que sofrerão com perdas de colheitas. Além disso, é certo — até porque já são efeitos vividos cotidianamente — que sofremos com um declínio drástico da biodiversidade do planeta, aumento considerável como secas, ondas de calor extremo, alteração do regime de chuvas, aumento de queimadas, acidificação dos oceanos e aumento do nível do mar, entre outros.

Além dessas projeções, o mesmo relatório do IPCC estabelece que, de modo a conseguirmos minimizar a catástrofe ambiental que se segue, é necessário que na próxima década, tenhamos cortado as emissões de CO2 para 18GT (Tonelagem Bruta) e zerado as mesmas até 2050. Os próximos 10 anos serão decisivos para definir (e dessa vez sem aumentativos) não apenas o curso da humanidade, como também a sobrevivência das demais comunidades terrestres e o próprio rumo do sistema Terra pelos próximos 10 mil anos. Vemos o tempo histórico da sociedade capitalista chocar-se e misturar-se com o tempo geológico, borrando os limites práticos entre os polos do pensamento dualista moderno. Talvez por coincidência, aqueles dez anos que teríamos para consumar o sonho de Keynes em sua luta contra a escassez, agora serão decisivos para a vida em sua luta contra a abundância.

7. Em 2019, foram emitidas 43GT.

8. Conforme dito por Sir David King, ex-Cientista Chefe do Governo Britânico.

A economia do futuro e o que nos aguarda

Eu por muito tempo acreditei que o silêncio da sala de aula refletia um despropósito geral com as possibilidades de futuro. Nosso curso nos prepara para pensar o desenvolvimento de longo prazo de nosso país, em um novo paradigma econômico global em que as barreiras tecnológicas são tão distantes que parece ser impensável qualquer forma de catching up. Já é suficientemente difícil preocupar-nos com nós mesmos em nossa individualidade não menos incerta, entre prazos e entrevistas para empregos. Mas tenho descoberto em meu silêncio um vazio maior, que tem a ver com o próprio papel do economista no mundo que nos legaram.

9.Em Economia, designa-se por convergência (catching-up) o processo em que as economias em desenvolvimento se aproximam do nível de riqueza acumulada das economias mais desenvolvidas

A economia que construímos, a gestão (do grego nomos) da nossa casa (oikos), criou-se sobre princípios que contradizem a ecologia, os fundamentos (logos) da casa, impondo perturbações irreversíveis sobre ela. As ciências econômicas, conforme nos foram ensinadas, está a cada dia um estudo mais obsoleto, pois o mundo para o qual foi feita já não existe mais. A utopia que crê na tecnologia (e seus fundamentos socioambientais assimétricos) a serviço da acumulação (ou a acumulação a serviço da tecnologia) como pressuposto de uma suposta libertação humana, tal como proclamada por Keynes, já não tem mais lugar neste planeta. Os professores que nos dizem que o desenvolvimento não se limita ao crescimento, mas o tem como precondição, já falam de um mundo que não os pertence.

Talvez Keynes esteja certo ao dizer que, passados 100 anos, agora seja o momento de abandonar os deuses do dinheiro no altar da acumulação, e nos propormos ao desafio muito palpável de pensar nossa sobrevivência (e dos terráqueos conosco) em meio à escassez que as gerações passadas de economistas ajudaram a construir. Isso ou mantemos nossa fé na inovação tecnológica e na inevitabilidade da acumulação, pensando a Terra como mais um bem indiferenciado, e acreditando que a tecnologia nuclear, o extrativismo espacial e colonização interplanetária como opções a se cogitar para o futuro.

É de se lamentar que, nessa curta janela de anos, as decisões continuarão nas mãos dos privilegiados. Mas por entre esses prenúncios de ruínas, podemos nos colocar a pensar em alternativas ao desenvolvimento que partam de um olhar sistêmico sobre os humanos e a natureza, que se pautem pela igualdade racial e de gênero, pela distribuição, bem viver e decrescimento. Pensando não nos netos, nem nos filhos, mas em nós: é preciso que se reinvente a economia, como questão emergencial. Pela sobrevivência, acima de tudo, e debaixo para cima.

REFERÊNCIAS

BETHELL, Leslie, et al. História da América Latina: América Latina Colonial, vol I. 2ª edição. São Paulo: Edusp, 1998.

Eric Holt-Giménez, Annie Shattuck, Miguel Altieri, Hans Herren & Steve Gliessman (2012): We Already Grow Enough Food for 10 Billion People … and Still Can’t End Hunger, Journal of Sustainable Agriculture, 36:6, 595–598. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/10440046.2012.695331

KEYNES, John M. Possibilidades Econômicas para Nossos Netos. Ensaios sobre Persuasão, Nova Iorque: W.W.Norton & Cia., 1963, pp. 358–373.

STEFFEN, W., Broadgate, W., Deutsch, L., Gaffney, O., & Ludwig, C. (2015). The trajectory of the Anthropocene: The Great Acceleration. The Anthropocene Review, 2(1), 81–98. doi:10.1177/2053019614564785

Para entender mais esse argumento, consultar o livro “Global Magic: Technologies of Appropriation from Ancient Rome to Wall Street” (2016), de Alf Hornborg.

Climate Action Tracker: https://climateactiontracker.org/media/images/CAT-2100WarmingProjectionsGraph-PNGLarge500-202.original.png

Hunger Map 2020: https://docs.wfp.org/api/documents/WFP-0000118395/download/?_ga=2.222602654.446311060.1606090242-911815931.1606090242

https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/sites/2/2019/06/SR15_Full_Report_High_Res.pdf

--

--