Sobre “Capitalismo sem rivais”: por ocasião da publicação em língua grega

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5 min readFeb 19, 2021
Fonte: bogazicilectures e amazon

Branko Milanović nasceu em 1953, em Belgrado, na Sérvia. Referência nos estudos de desigualdade e distribuição de renda, foi economista-chefe do departamento de pesquisa do Banco Mundial. Atualmente, Milanović é professor no Graduate Center da City University de Nova York.

Tradução feita por Gabriel Vinicius e Ju Pantin, com a permissão do autor

Do original: On “Capitalism, Alone”: On the occasion of Greek-language publication

Data da publicação: 16/01/2021

Se, como você diz, o capitalismo é um sistema sem oponente, Fukuyama estava certo quando falou do “fim da história”?

Na verdade não, porque, para Francis Fukuyama o “Fim da História” implicava o domínio do capitalismo liberal em todo o mundo. Não é isso que observamos. Pelo contrário, notamos muitas formas de organização política, não apenas uma. O que chamo de “Capitalismo Político” (exemplificado pela China, Vietnã, Cingapura etc.) é uma dessas formas políticas não liberais. Mas, no que diz respeito ao capitalismo, a sua dominação atual — que é incontestável tanto geograficamente quanto em termos de nosso sistema de valores — deve ser sempre vista como um desenvolvimento histórico, e nunca como um “término” de nossa história.

Segundo a sua interpretação, o comunismo cumpriu o seu papel e é um sistema que pertence ao passado e não ao futuro. Os regimes do socialismo real eram comunistas? Somente os stalinistas afirmam isso. Hoje você dificilmente encontrará um marxista que apoie tal coisa. Pelo contrário, muitos consideram que o “real” era a difamação do ideal socialista.

Acho que essa é uma visão muito errada. Mesmo se “o socialismo realmente existente” fosse 100% compatível com o pensamento de Marx, isto não poderia ser considerado como um critério para que o julguemos “socialista” ou não. Não há dúvida de que suas características essenciais — propriedade não privada dos meios de produção e centralização das decisões econômicas- estavam totalmente de acordo com a concepção tradicional, incluindo a de Marx, do socialismo. Além disso, não negamos que o capitalismo de hoje é “capitalismo”, mesmo que alguns libertários ou mesmo os Friedmanitas não pensem assim por causa (digamos) do papel muito forte do Estado, existência de sindicatos ou impostos elevados. Tais construções teóricas absolutamente “puras”, quer falemos de capitalismo, socialismo ou feudalismo, nunca existiram. Da mesma forma, não contestamos que algumas sociedades são predominantemente cristãs, mesmo que não sigam à risca os princípios da religião. Assim, “socialismo realmente existente” era de fato socialismo.

Você argumenta que os países que adotaram o modelo de social-democracia — um dos três do capitalismo moderno, como você diz — conseguiram alcançar níveis de prosperidade e liberdade política sem precedentes na história humana. Então, podemos dizer que esta ainda é a solução para os problemas que as sociedades enfrentam hoje?

Sim, eles realmente o fizeram em termos de prosperidade econômica, liberdade política e mobilidade social. Este ainda é um sistema muito bom — mas eu argumento que foi um sistema “construído” para um mundo de estado-nação homogêneo e de limitados fluxos de capital e trabalho. Com movimentos muito maiores de capital e trabalho, o estado de bem-estar, que é a parte-chave do capitalismo social-democrata, está sob forte pressão. O capital móvel pode sair se os impostos forem muito altos e a mão de obra móvel (estrangeira) pode entrar. A perda de capital enfraquece a capacidade de financiar o estado de bem-estar, enquanto o influxo de mão de obra estrangeira reduz a homogeneidade cultural que estava na origem do estado de bem-estar.

O que vemos hoje é uma virada do “capitalismo liberal”, que se torna cada vez mais autoritário e se aproxima do “capitalismo político”, ou mais perto do que alguns analistas chamam de “capitalismo com características chinesas”. O que você acha disso?

Sim, isso está acontecendo em alguns países. Mas as questões cruciais serão se o capitalismo político é capaz de gerar taxas de crescimento econômico mais altas do que o capitalismo liberal. Se for assim, tenderá a dominar, seja porque outras nações também vão querer crescer mais rápido e podem imitar algumas das características tecnocráticas do capitalismo político, ou porque o poder relativo dos países do capitalismo político aumentará. Isso está, creio eu, no pano de fundo da atual guerra comercial EUA-China: uma batalha ideológica travada no terreno do crescimento econômico.

Como você acha que a situação atual com a pandemia do coronavírus afetará a democracia e a justiça social em geral?

Acho que isso pode levar os países a reavaliar (aumentar) o papel do Estado nos serviços públicos, como saúde e educação. Primeiro, o neoliberalismo e, depois, as políticas de austeridade praticamente tiraram todos os recursos (pessoas e instrumentos) de muitos serviços públicos. Saúde e educação passaram a ser consideradas como qualquer outra atividade empresarial. Mas não são, porque têm externalidades enormes: sem população saudável e educada não há atividade econômica e crescimento, e sem uma população totalmente saudável, mesmo o crescimento econômico de uns poucos não tem sentido. É por isso que a saúde e a educação não podem ser administradas da maneira como administramos os negócios comuns: não podemos tratar os hospitais como hotéis cujo objetivo é otimizar o número de leitos e pacientes. Essa abordagem é responsável pelos provedores de saúde ficarem, em muitos casos, sobrecarregados durante a crise e não conseguirem salvar vidas.

A mudança climática é agora talvez o parâmetro mais importante na evolução das sociedades humanas. Os economistas em suas teorias podem ignorá-lo ou se comportar como se ele nem existisse?

Claro, os economistas devem abordar as mudanças climáticas. Mas eles deveriam fazer isso usando os instrumentos econômicos tradicionais de tributação e subsídios, tributando atividades e produtos que contribuem para as emissões e subsidiando suas alternativas mais ecologicamente corretas. Os argumentos a favor do decrescimento não reconhecem essas realidades. Seus proponentes acreditam que o mundo pode parar de crescer, mas não querem aceitar que isso só seja possível se cerca de 10–15% da população mundial que vive na pobreza abjeta permanecer pobre para sempre, ou se o mundo rico cortar sua renda em pelo menos um terço. Nenhuma dessas duas opções é desejável ou mesmo viável, e é por isso que os ideólogos do decrescimento estão errados.

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