Juros: uma abordagem histórica

Lucas Badaro
Heterodoxos
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7 min readAug 3, 2020
Pintura “El cambista y su mujer” de Marinus Van Reymerswale — Imagens: Museo Nacional del Prado e fonte desconhecida

Período Neolítico e o Código de Hamurabi

Começando a análise histórica, estima-se que os primeiros empréstimos com juros aconteceram no período Neolítico (5.000–3.000 a.C.), quando o primeiro fazendeiro emprestou sementes com a expectativa de receber uma quantidade maior após a colheita. Essa hipótese é reforçada graças aos antigos documentos sumérios que registravam a contabilidade (créditos e débitos) da época. Mais à frente na história, temos a formação da antiga babilônia e o legado do rei Hamurábi (1810–1750 a.C.) que deu origem ao primeiro conjunto de leis escritas, o famoso Código de Hamurabi.

Pintura rupestre do período neolítico encontrada em Tassili n’Ajjer na Argélia (esquerda) e o Monólito onde consta o Código de Hamurabi (direita)— Imagens: DE AGOSTINI PICTURE LIBRARY (GETTY) e Wikipédia/Domínio Público

Pode-se entender o código como uma constituição primitiva, visto que ela regulava assuntos como calúnia, trabalho, divórcio e comércio. Na parte específica do comércio, o código estabelecia limites de juros para empréstimos de exatos 20% a.a. pelo peso da prata já que a necessidade de limitação dos juros era a forma encontrada pelo reino para se tentar evitar a usura (taxa de juros acima do moralmente entendido como aceito).

Mundo greco-romano

Na Grécia antiga os juros eram amplamente praticados sem qualquer regulação em um período marcado pela existência da escravidão por dívida. O cenário muda em 594 a.C. com as reformas de Sólon (638 — 558 a.C.) que levaram ao cancelamento das dívidas, à libertação de escravos e à regulamentação das taxas de juros, que passaram a variar entre 8% a.a e 18% a.a dependendo do tipo do empréstimo, contudo, concomitantemente os filósofos começaram a condenar a prática dos juros, sendo o maior exemplo de todos o de Aristóteles (385–323 a.C.) que em seu livro Política expressou o caráter antinatural dos juros, uma vez que ele desvirtuava o papel do dinheiro na sociedade, sinalizando assim sua condição infértil.

“O que há de mais odioso, sobretudo, do que o tráfico de dinheiro, que consiste em dar para ter mais e com isso desvia a moeda de sua destinação primitiva? Ela foi inventada para facilitar as trocas; a usura, pelo contrário, faz com que o dinheiro sirva para aumentar-se a si mesmo; assim, em grego, lhe demos o nome de tokos, que significa progenitura, porque as coisas geradas se parecem com as que as geraram. Ora, neste caso, é a moeda que torna a trazer moeda, gênero de ganho totalmente contrário à natureza.”

- Aristóteles

Posteriormente em Roma, a regulação dos juros já era presente na Lei das Doze Tábuas (450 a.C.), o primeiro código de leis romanas que limitava os juros a 1% a.a. Por ser uma sociedade formada em sua grande maioria por militares e fazendeiros, a questão dos juros acabou sendo pouco alterada ao decorrer dos anos, mas no último século antes de cristo, o ditador Sula (138–78 a.C.) estabeleceu duas mudanças: a primeira foi marcada pelo fim dos juros compostos nas dívidas, pois levava o credor rapidamente à falência e a segunda se referia ao limite máximo de 12% a.a; taxa que mais tarde foi elevada para 12.5% a.a. por Constantino (272–337 d.C.) no século IV. Com a queda do Império Romano do Ocidente, a parte oriental continuou com a taxa de 12.5% a.a. até Justiniano (482–565 d.C.) reorganizar a legislação do Império Bizantino e publicar o Código de Justiniano (528–533 d.C.) que estabelecia uma taxa gradativa de no máximo 8% a.a; sendo o máximo de 8% a.a. para cidadãos comuns, enquanto cidadãos ilustres como senadores recebiam um limite máximo de taxa de 4% a.a.

Escola de Atenas (editado), afresco por Rafael (esquerda) e a reprodução do Fórum Romano (direita) — Imagens: Wikipédia/Domínio Público e Wikimedia Commons

Sabemos que durante certas épocas, os juros eram proibidos devido à presença e expansão do cristianismo, e retornavam em outros momentos. No século IX o juro máximo subiu para 11% a.a. e continuaram até a queda de Constantinopla em 1453.

Idade média

Períodos de proibição total dos juros foram comuns na Idade Média por ação da Igreja Católica que condenava a pratica com base em passagens bíblicas, como por exemplo as das Escrituras Hebraicas (Antigo Testamento) citadas abaixo:

19. A teu irmão não emprestarás à usura; nem à usura de dinheiro, nem à usura de comida, nem à usura de qualquer coisa que se empreste à usura.

20. Ao estranho emprestarás à usura; porém a teu irmão não emprestarás à usura, para que o Senhor, teu Deus, te abençoe em tudo que puseres a tua mão, na terra, a qual passas a possuir.

- Deuteronômio 23:19–20

Justamente essas duas passagens foram utilizadas no Primeiro Concílio de Niceia (325 d.C.) com o intuito de proibir a usura por parte dos clérigos. Após o concílio e nos próximos séculos a usura foi terminantemente perseguida pela igreja até a formulação da primeira proibição universal da usura no Império Carolíngio durante o reinado de Carlos Magno (742–814 d.C.). A proibição continha uma capitular que proibia a usura em todo império e ainda a definia como uma prática imoral “Onde mais é pedido do que é dado”.

Com advento da filosofia escolástica, as críticas à usura foram se aprofundando, ao ponto que o seu uso fosse considerado um pecado contra o sétimo mandamento (Não furtarás).

Quadros (editados) “Netherlandish Proverbs” (esquerda) e “The Triumph of Death” (direita), ambos pelo pintor holandês Pieter Bruegel, o Velho — Imagens: Wikipédia/Domínio Público

No Segundo Concílio de Latrão (1139 d.C.), a usura foi tratada de forma ainda mais rigorosa, sendo decretada a excomunhão de qualquer praticante, tornando-a um pecado também contra o Direito canônico¹. Mais tarde São Tomás de Aquino (1225–1274 d.C.) reafirmaria o caráter estéril do dinheiro descrito por Aristóteles ao citá-lo na Suma Teológica, concluindo que tirar usura de qualquer homem era simplesmente mal.

1.Leis e regulamentos definidos pela Igreja Católica e pela Igreja Anglicana.

“Quem recebe dinheiro a título de mútuo, sob a condição de pagar usuras, não dá ao usurário a ocasião de a receber, mas, de mutuar. O usurário, por seu lado, tira a ocasião de pecar, da malícia do seu coração. Por onde, dele provém o escândalo passivo e não o ativo, do mutuado. Mas esse escândalo passivo não é razão de deixar alguém de pedir dinheiro a título de mútuo, se dele precisar; porque tal escândalo não nasce da fraqueza ou da ignorância, mas, da malícia.”

- São Tomás de Aquino

Mesmo com as pressões teológicas relacionadas aos juros, a prática nunca foi realmente interrompida por completo e nem por muito tempo na Europa, dado que o uso do crédito era vital para o financiamento de guerras e do comércio, contudo, as principais reprovações da Igreja eram direcionadas aos que lucravam com os juros, principalmente as lojas de penhores que na Idade Média chegavam a cobrar uma taxa de 300% a.a.

A instauração de modificações da doutrina cristã só foi ocorrer com a crítica oriunda dos líderes protestantes e suas reformas. Para o monge Martinho Lutero (1483–1536 d.C.) a usura era condenável, mas taxas de juros baixas, como 5% a.a.(taxa usualmente utilizada no Sacro Império Romano Germânico) não deveriam ser tratadas como extorsão. O reformista suíço Ulrico Zuínglio (1481- 1531 d.C.) condenava os usuários profissionais, mas ressaltava que a obrigação de pagar juros constava nas passagens bíblicas.

“Deem a cada um o que lhe é devido: se imposto, imposto; se tributo, tributo; se temor, temor; se honra, honra.”

- Romanos 13:7

Na França, o reformista Martin Bucer (1491–1551 d.C.) dizia que os empréstimos a juros justos fossem aqueles que seguissem a Regra de Ouro² e na visão do teólogo João Calvino (1509–1564 d.C.), se os empréstimos a juros fossem mesmo de todo mal, Deus não haveria de deixar os judeus emprestarem a estranhos (Deuteronômio 23:19–20). Em 1547, Calvino reestruturaria a igreja em Genebra e fixaria uma taxa legal de juros de 5% a.a. Diante todo o movimento da Reforma Protestante, temos o alinhamento da burguesia ao protestantismo e o enfraquecimento da Igreja Católica e por consequência o enfraquecimento das punições à usura.

2.“Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles façam a vocês”

Os valores dos juros na Europa foram bem voláteis ao decorrer dos séculos, inclusive variavam de reino para reino, além de taxas diferentes para empréstimos pessoais, para comércios, para príncipes e para depósitos bancários. Trago abaixo dois gráficos acerca das menores taxas de juros de empréstimos comerciais e depósitos bancários separados por séculos em alguns países do continente europeu.

Em suma, nos séculos posteriores, os juros se tornaram uma questão não só econômica, mas também filosófica, dado que os mercantilistas começaram a supor a essência dos juros, por exemplo, para John Locke (1632–1704 d.C.) o juro era o preço do aluguel do dinheiro e não deveria ser regulado por nenhuma lei. No entanto, as visões da essência dos juros são diversas ao longo da história e serão tratadas de forma detalhada em outros textos.

Até a próxima!

Referências

SCHMANDT-BESSERAT, DENISE. How writing came about, University of Texas Press, 2010.

DE HAMURABI, Código. Introdução, tradução (do original cuneiforme) e comentários de E. Bouzon, 1976.

GROTE, GEORGE, A History of Greece: From the Time of Solon to 403 BC. Routledge, 2013.

ARISTÓTELES, 1252 a.C., A Política, Tradução de Roberto Leal Ferreira, 2 ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998.

TELFORD, LYNDA, Sulla: a dictator reconsidered. Pen and Sword, 2014.

DE AQUINO, Tomás; MARTORELL, José. Suma teológica. São Paulo: Loyola, 2003.

LOCKE, JOHN, Some Considerations of the Consequences of the Lowering of Interest: And Raising the Value of Money. In a Letter Sent to a Member of Parliament, 1691, Awnsham and John Churchill, at the Black-Swan in Pater-Noster-Row, 1824.

HOMER, SIDNEY; SYLLA, R. EUGENE, A history of interest rates, Rutgers University Press, 1996.

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Lucas Badaro
Heterodoxos

Hábil jogador de sinuca e apaixonado por economia