Armação: a história do treino secreto de Luka Doncic com Steph Curry

Samir Mello
HIGH FIVE
Published in
10 min readFeb 2, 2019

Por Tom Haberstroh
Traduzido por
Samir Mello
Clique
aqui para ler o texto original (em inglês)
Siga o @highplusfive no Twitter!

As cortinas foram abaixadas para que ninguém espiasse dentro da academia Hub 925, cerca de 32km a leste da Oracle Arena. Fora um punhado de treinadores que estavam presentes, ninguém mais sabia desse treino secreto, que aconteceu no fim de agosto do ano passado.

Este foi o dia que Stephen Curry treinaria com Luka Doncic, talvez o mais celebrado prospecto europeu de todos os tempos. Não houve transmissão ao vivo via Instagram, ou melhores momentos montados pelo House of Highlights.

O agente de Doncic, Bill Duffy, queria manter as coisas discretas. Apenas um pequeno grupo — talvez uma dúzia de pessoas — estavam presentes, mas quase ninguém fora daquela academia localizada em Pleasanton, Califórnia, tinha ideia de que o duas vezes MVP treinaria com o prodígio esloveno. Foi tudo tão misterioso que nem o dono dos Mavericks, Mark Cuban, sabia do evento.

“Eu só queria expô-lo à excelência do Steph”, Duffy contou à NBCSports.com. “Não apenas à habilidade do Steph, mas apreciar o esforço que vai com isso”.

Curry já havia marcado um treino, comandado pelo seu treinador de longa data, Brandon Payne, da Accelerate Basketball, com o fenômeno do colégio Jalen Green, que pode ser o prospecto número 1 da classe de 2020. Após uma ligação de Duffy, Payne fez uma singela mudança nos planos.

Luka estará na cidade por um dia ou dois. Ele poderia se juntar a Steph para uma seção de treinos?

É claro, Payne disse a ele, mas havia algo que Payne deveria saber, Duffy refletiu.

“Ele nunca treinou dessa forma antes”, Duffy disse a Payne pelo telefone. “Tudo isso será novo para ele. Seja paciente com Luka”.

Enquanto adolescente, Doncic já havia dominado as ligas profissionais da Europa, vencido os prêmios de MVP da EuroLiga e da ACB em 2018, mas ele nunca havia treinado com um jogador do calibre de Curry. Ele encarou sessões de arremesso com o guru Mike Penberthy, agora empregado pelo New Orleans Pelicans. Mas nada como o que ele estava prestes a experimentar.

Nos círculos da NBA, os treinos de Curry são lendários. De que outra forma alguém sairia de Davidson para chegar a ser o primeiro MVP unânime da NBA?

Então, Doncic encarou o treino de Curry, que deveria durar só uma hora. Durou três.

“Luka”, Payne afirma após trabalhar com o esloveno de perto, “é um estudioso do basquete”.

É tarde de sexta-feira em Fort Mill, em uma academia propriedade de Payne, próximo de Charlotte, cidade natal de Curry. O experiente treinador de Curry se diverte assistindo a um vídeo.

“Ele é enorme”, Payne diz sobre Doncic, fazendo Curry parecer um anão na tela. “Luka é um cara grande. Ele tem 2.03m fácil. Cara grande, bem grande”.

A terceira rodada do votos de All Star de 2019 foi publicada e o cara grande acabou de ampliar a liderança sobre Curry como o segundo jogador mais popular da Conferência Oeste (LeBron James ainda é o primeiro). Doncic, o único calouro entre os 40 mais votados, recebeu mais atenção que Curry, Kevin Durant e Kyrie Irving.

Nos cerca de 7 meses desde que o Mavericks fez a troca para escolhê-lo com a 3ª pick do draft de 2018 da NBA, Doncic se tornou uma figura cultuada nos círculos da liga. Suas médias à la LeBron de 19.9 pontos, 5.3 assistências e 6.1 idas à linha de lance livre ajudaram a cimentar seu estrelato. O hipnótico hino #HalleLuka, do The Ringer, acrescenta à sua aura.

Em agosto, Payne viu alguns desses sinais em primeira mão. Ele me convidou para sua sala de vídeo antes de seu voo para Los Angeles para o lançamento da turnê Underrated do Curry. Ele insistiu que eu visse o quanto Doncic evoluiu em apenas cinco meses.

Payne tem microgerenciado cada movimento de Curry, usando ferramentas como óculos de luz estroboscópica, bolas de tênis e sinalizadores FitLight que funcionam como sinais de trânsito. Ele até trabalhou os padrões de respiração de Curry. Alguns já o chamaram de a versão do basquete do personagem de J.K. Simmons, em Whiplash.

Não é esse o tempo.

Duffy sentiu que Doncic iria se beneficiar ao ver como é a vida no topo da montanha.

“Eu queria mostrar a ele que alguém nesse nível ainda pode aprender coisas novas, ser corrigido”, Duffy disse. “Brandon fala para Steph, faça isso, não faça aquilo, corrigindo ele toda hora. Eu acho que alguém como Luka iria pensar, ‘Uau — Steph está no top 3 do basquete e ele tem alguém o motivando a ser ainda melhor? Ser exposto a isso foi algo especial”.

No vídeo, Payne grita instruções de drible e arremesso tanto para Curry quanto para Doncic. Um drible, side step 2. Um drible, escape 3, agora do outro lado! Side step 2, mesmo trabalho de pés, escape 3. Side step 2, volta, um drible, escape 3.

“Esses conceitos são bem difíceis”, Payne explica. “Quando você é Stephen, esses conceitos são difíceis. Esse treino não foi nenhuma bobagem. Foi um treino eu-tenho-algo-para-melhorar-com-Stephen, de verdade. Ser jogado nisso e responder tão bem quanto ele respondeu, foi impressionante”.

Esse treino em particular foi completado por Curry em três minutos. Seus arremessos foram impecáveis, mal tocando a rede. Doncic, tentando acompanhar os comandos e ritmo, levou nove minutos e 48 segundos. (Doncic ainda está aprendendo inglês, sua quarta língua.)

“Ele recebeu muita informação de uma só vez, isso é difícil”, Payne afirma. “Minha terminologia é complexa. As palavras nem tanto. Mas quando você começa a lidar com diferentes combinações, é…difícil”.

Em determinado ponto, durante um exercício, Doncic está passando pela quadra com duas bolas de basquete, um treino comum nos Estados Unidos. Doncic está tendo dificuldades. Jalen Green e Curry estão para lhe dar uma volta. Doncic põe a língua para fora e ri da situação. Ele faz bastante isso quando fica para trás. Eu considero isso um sinal do autoconhecimento de Doncic e de seu amor pelo jogo.

Payne concorda. “Steph é assim também”.

Daí Payne fica sério novamente.

“Espera aí, volta”, Payne ordena para seu assistente nos controles. Ele volta e aperta o play.

“Você viu os lábios fechados do Luka, e depois sua língua pra fora?”, Payne me pergunta.

Sim, ele está se divertindo. Ele tem 19 anos.

“Esse é o primeiro sinal de sobrecarga neurológica”, Payne me corrije. “Tipo, é coisa demais para um jogador. Ele não estava conseguindo respirar porque sua boca estava fechada”.

Ele me diz para observar Curry — notar sua boca aberta enquanto ele dribla pela quadra, como a grade no nariz de uma Ferrari, esfriando o motor.

“Então”, Payne explica, “essas são as coisas pelas quais eu estou procurando”.

Algo que eu nunca considerei: o quão bom será Doncic quando ele aprender a respirar de forma correta?

Doncic estava um pouco pesado durante esse treino. Ele havia acabado de tirar um mês de folga para se recuperar do exaustivo ano na Europa, no qual ele jogou cerca de 90 partidas. “Nós tínhamos que descansá-lo”, afirma Duffy.

Payne estima que Doncic já emagreceu cerca de 4–6kg esta temporada, mas o favorito a Calouro do Ano ainda está longe de ser magro. Listado como tendo 98,8kg, a condição física de Doncic foi um ponto de discussão antes do draft. O que as pessoas não compreenderam é que ele usa seu peso como uma ferramenta. Doncic faz você pensar que não consegue ser rápido com aquele peso todo, antes de finalizar.

“Todo mundo repara no stepback”, Payne explica. “Sim, ele tem um stepback, mas você não está prestando atenção em como ele diminui de velocidade antes de fazer o stepback. Você cai no sono, seus pés relaxam e, de repente, ele manda um stepback incisivo. É muito fácil para ele, porque ele é grande e forte. A mecânica dele é muito boa também”.

Na semana anterior ao treino com Curry, Doncic esteve na P3 Sports Science Lab, em Santa Barbara, para avaliar sua biomecânica. Eles descobriram que suas habilidades de desaceleração — ir de 60 a zero, figurativamente — são algumas das melhores já vistas em centenas de atletas profissionais. (Doncic tem visitado a P3 anualmente desde que ele tem 15 anos).

“Ele é boleiro”, Payne diz. “Eu nunca havia visto alguém controlar o defensor com mudança de ritmo da forma como ele faz. Ele te controla. Você não controla ele. Ele tem um toque e um instinto que simplesmente não têm como ensinar”.

Além de seus atributos físicos, Payne não consegue parar de falar sobre o palpável entusiasmo de Doncic pelo jogo e como isso o motivou enquanto Curry não parava de matar arremessos. Doncic começou a rir diversas vezes durante o extenuante treinamento, parcialmente porque estava impressionado com a habilidade de Curry e parcialmente devido às suas próprias dificuldades.

No fim do treinamento, ele estava competindo com Curry arremesso por arremesso.

“Stephen tem trabalhado comigo pelo mesmo tempo que Luka joga basquete”, Payne afirma. “Stephen tem essas sequências onde parece que ele não é humano. Eu não posso imaginar como seria estar nesse treino. É como se, quando um arremesso de Stephen cai acertando a rede, nós não contamos como um acerto”.

Após a primeira hora de arremessos e dribles sem parar, Doncic queria mais. Após a segunda hora, Payne sugeriu que o treino terminasse. Doncic queria mais. Após três horas, eles foram levantar pesos.

“Ele estava rindo, se divertindo”, Payne conta. “Eu acho que ele está gostando de todo o processo. Ele se sentiu desafiado. Stephen acabou de completar o treino. Agora, eu quero superá-lo”.

O registro do treino de agosto é um estudo de contrastes. Curry é um robô de 30 anos, preciso e eficiente. Doncic, por outro lado, aos 19 anos, parece um pedaço de barro — de alta qualidade. E essa é a parte assustadora.

“O trabalho de pés dele é incrível”, Payne opina. “No fim dos jogos? É incrível. Mas se você analisar bem, não é nada refinado. Pense em como ele vai ser ainda melhor se ele trabalhar nisso”.

É difícil assistir Curry e Doncic jogando basquete juntos e não imediatamente querer acessar uma máquina do tempo. Doncic será assim em uma década? Curry é um modelo de eficiência tanto em sua movimentação quanto nas porcentagens de seus arremessos. Ele quase não errou durante todo o treino e nunca perdeu controle da bola. Doncic, no entanto, foi um trabalho em progresso. Ele errou um drible aqui, um arremesso ali. Mas após algumas poucas repetições, Doncic se tornou surpreendentemente proficiente, uma característica que tem sido evidente em sua primeira temporada na liga.

Doncic marcou 74 pontos em 76 minutos durante situações clutch nesta temporada, arremessando para 51% em situações de fim de jogo, com a partida indefinida. Após ajuste de ritmo, Doncic está marcando 46.8 por 100 posses no clutch, nona melhor marca da NBA. Em determinada ocasião, ele marcou 11 pontos seguidos para vencer o Houston Rockets, motivando o técnico do Mavs, Rick Carlisle, a dizer para a ESPN: “Está bem claro que ele gosta desse tipo de momento. Ele é destemido”.

Pegue, por exemplo, o treino “3–2–1 Perfeito”, o qual Payne escolheu propositalmente para ser um dos últimos, para simular o cansaço no fim dos jogos. Acerte cinco arremessos seguidos de cinco lugares diferentes na metade da quadra. Depois, volte e acerte dois seguidos dos cinco mesmos lugares em ordem reversa. Depois, termine com cinco arremessos seguidos de um ponto só. O treino não acaba até o jogador acertar os últimos cinco.

“Neste momento, os quadríceps de Luka estão pegando fogo”, Payne conta, assistindo Doncic se esforçar durante o treino.

No vídeo, Payne diz algo para Doncic.

“Eu só perguntei se ele queria parar”, Payne revela. “Ele disse não. Nove minutos é bastante tempo para ficar arremessando e driblando sem parar.

“Caramba, esse foi difícil. Foi bem difícil, agora que eu estou assistindo”.

Doncic acerta os cinco e sorri, como ele fez em dezembro após acertar uma bola de 3 impossível do canto, no estouro do cronômetro contra Portland, mandando o jogo para a prorrogação. Essa habilidade de desempenhar cansado e sob pressão tem motivado Doncic durante sua temporada de calouro. Quando os momentos são importantes, quando as pernas estão cansadas, ele aparece com uma jogada importante, e geralmente com um sorriso no rosto.

Em determinado momento, Payne pausa o filme do treino. Ele quer se certificar de que eu estou prestando atenção. Curry puxa Doncic de lado e começa a lhe dar instruções, dizendo onde ele deve ir e lhe ajudando a entender o exercício.

“Essa foi a primeira vez que eu vi Stephen agir como um mentor no meio de um treino”, Payne me conta.

Curry faz isso em acampamentos com seus alunos, mas nunca com um profissional. Talvez Curry veja Doncic como ambos.

Doncic está vivendo a vida da NBA com sucesso. Enquanto outros calouros conceituados, como Deandre Ayton, Jaren Jackson Jr. e Trae Young, passam por momentos de imutabilidade em seus jogos, Doncic tem aumentado sua taxa de uso a cada mês, carregando cada vez mais as responsabilidades ofensivas de Dallas. Em outubro, ele teve a 67ª maior taxa de uso da NBA. Em janeiro, ele é o 15º na mesma categoria, acima de estrelas como Curry, Damian Lillard e Kawhi Leonard. Doncic só é um calouro por definição.

“Ele foi preparado para isso”, Duffy diz sobre Doncic. “Eu não sei qual é o limite. Steph coloca um limite em si mesmo? Steve Nash? Kobe Bryant? Luka é definitivamente parte esse grupo”.

Cuban concorda, nós estamos vendo só o começo.

“A melhor parte de Luka, além do quanto ele está se divertindo”, é que ele tem muitas áreas nas quais pode melhorar seu jogo”, Cuban analisa. “E ele vai trabalhar em todas elas”.

Nos escritórios da Accelerate perto de Charlotte, Payne observa seu relógio e vê que está atrasado para um voo. Ele rapidamente me mostra uma tabela com dados de cada arremesso de Doncic em comparação com os exercícios que ele fez em agosto. Cada arremesso tem um link para vídeos de jogos e o vídeo do treino de agosto.

“Eu poderia assistir isso o dia todo”, Payne diz ao pegar suas malas. “Tem muita carne pra roer nesse osso, cara. Muita carne”.

--

--

Samir Mello
HIGH FIVE

Jornalista do portal Metrópoles e Mestre em Tradução pela City, University of London; passagens pelas redações do Jornal de Brasília e Correio Braziliense