Como vamos nos lembrar de Kobe Bryant

Vagner Vargas
HIGH FIVE
Published in
12 min readMay 30, 2016

Quatro ex-companheiros de Kobe compartilharam histórias da carreira do astro em mais um textaço do The Players’ Tribune

Em mais uma empreitada da High Five Translations Co., em “parceria” com o genial The Players’ Tribune, apresentamos aos leitores do nosso humilde blog outra contribuição do excelente site norte-americano.

Depois de traduzir as belíssimas palavras de Hakeem Olajuwon sobre o small ball, chegou a vez de colocar no bom e velho português o que Horace Grant, Brian Shaw, Ron Harper e Devean George têm a dizer sobre os momentos que passaram ao lado de Kobe Bryant.

Mais uma vez, conteúdo imperdível, publicado originalmente e em inglês aqui, no site do The Players’ Tribune.

Se intrometendo nos aquecimentos da Liga Italiana de Basquete quando tinha 11 anos de idade. Destruindo companheiros de equipe de uma maneira tão feia que quase causou um tumulto. Acordando às 5h da manhã para treinar enquanto seus companheiros dormiam. Cantando o rap do disco The Blueprint no fundo do ônibus. Estas são as histórias que definem Kobe Bryant para aqueles que o conhecem melhor.

Enquanto a carreira de 20 anos de Kobe chega ao fim, muitos tributos começaram a aparecer. Mas este não é um destes tributos. Este é um olhar sobre Kobe durante o histórico tricampeonato dos Lakers no começo dos anos 2000 na visão de jogadores que estavam ao redor dele todos os dias. Sentamos com Brian Shaw, Horace Grant, Ron Harper e Devean George para fazer uma simples pergunta: Como você vai se lembrar de Kobe?

Brian Shaw

Eu joguei contra o pai do Kobe, Joe Bryant, na Itália, em 1989. Kobe tinha uns 11 anos de idade naquela época. Joe jogava numa cidade pequena, e sempre que os outros times vinham nos enfrentar em Roma, todos os jogadores norte-americanos iam para este grande McDonald’s no centro da cidade. O lugar era enorme. Era diferente de qualquer McDonald’s que nós tínhamos nos Estados Unidos. Era “o lugar” — quase como que uma viagem em família. Todo mundo ia se encontrar lá. Então eu tenho lembranças vívidas do Kobe sentado, comendo batata-frita e conversando sobre basquete quando era uma criança pequena.

Kobe era obcecado pelo jogo desde aquela época. Quando nós estávamos no aquecimento antes dos jogos, ele tentava participar junto com a gente. E não estou falando tipo, você sabe, ficar pegando rebotes como aqueles garotos responsáveis por pegar as bolas ou coisas do tipo. Quero dizer, aquele moleque estava na fila para fazer bandejas como se fosse parte do time. Ele ficava lá arremessando com os outros caras.

Então um dia eu devo ter mandado ele sair do caminho e ele me desafiou para um jogo de H-O-R-S-E*. Para ser sincero, eu nem me lembro do que aconteceu naquele jogo. Mas a história cresceu ao longo dos anos. Começou como se ele tivesse me vencido no H-O-R-S-E e chegou ao ponto de que ele tinha me vencido no um contra um. Aquilo ganhou vida própria.

Quando ele chegou à NBA e nós fomos à final da NBA naquela primeira vez em L.A., os repórteres chegavam em mim com uma cara séria e perguntavam: “Kobe realmente te pegou em um jogo um contra um na Itália?”

Eu ficava, “O quê? Ele tinha 11 anos. Eu tinha 22. Você tá falando sério?”

Mas essa era o poder do Kobe.

Eu acho que ele pode ter me vencido no H-O-R-S-E. Vou dar isso a ele.

Depois da Itália, fiquei um tempo sem encontrá-lo. Encontrei-o novamente quando ele estava em seu ano de júnior no colégio. O pai dele o trouxe para um jogo quando eu estava jogando em Orlando. Naquela época, ele tinha 16 anos e tinha a mesma altura que eu. Tivemos uma conversa legal, e quando eu estou me virando para ir embora, Kobe diz, “Te vejo depois do meu último ano de colégio. Vou jogar contra você”.

Eu meio que sacudi minha cabeça, pensando, “Esse moleque deve ter algum problema. Ele nem mencionou a faculdade”. Um ano e meio depois, eu vi a notícia na imprensa: Kobe Bryant declara que vai participar do Draft da NBA.

Horace Grant

Em termos de competitividade, Jordan é 1A e Kobe 1B. Eu joguei com ambos e posso te dizer isso com certeza.

1B x 1A em quadra, nas palavras de Horace Grant

Sabe quando os capitães vão para o meio da quadra com os árbitros antes do jogo e todo mundo se cumprimenta para as câmeras?

MJ olhava no seu olho enquanto sacudia sua mão. Às vezes ele até sorria. Mas enquanto você sorria de volta, MJ estava pensando em como ele iria colocar o pé no seu pescoço. Ele era diabólico assim.

Kobe era diferente. Ele iria até você durante o aperto de mão e diria que não gosta de você e que iria te destruir. Sério, ele não iria dizer isso apenas antes do jogo, ele diria também no calor da batalha. Ele não se importava com quem você era. Ele diria, “Eu não acredito que eles estão te colocando para me marcar. Você tá falando sério? Você acha que pode me marcar?” E ele não estava brincando. Ele queria dizer aquilo mesmo. E o outro cara sabia disso. Essa é a diferença. Ele plantava a semente da dúvida na cabeça dos outros. E quando você tinha essa semente contra o Kobe, estava acabado.

Ron Harper

O jeito implacável do Kobe não era exclusivo com os jogos. Basquete era uma obsessão para ele 24 horas por dia e 7 dias por semana. Quando a bola começava a quicar nos treinos, não tinha necessidade de aquecimento para ele. Ele já estava aquecido às 7h da manhã. Ele estava pronto para entrar em quadra. Ele também jogava tão duro nos treinos que comecei a pensar comigo mesmo: “OK, esse cara realmente está tentando ser o MJ. Ele está tentando ser o melhor de todos os tempos.”

Brian Shaw

Se você fizesse uma cesta no Kobe no treino, ou mesmo fizesse uma jogada boa enquanto ele te marcava, ele não te deixava em paz até você jogar um contra um com ele. Quem quer enfrentar o Kobe no um contra um? Ninguém. Mas ele ia te incomodar tanto até você finalmente aceitar.

Se você o driblasse ou fizesse uma cesta em cima dele, o resto do time pegava no pé por que sabia quão competitivo ele era. Então eles transformavam aqueles momentos em algo grande. Aquele time dos anos 2000 dos Lakers era cheio de provocadores.

Então esse cara, J.R. Rider, chega ao time em 2000 e as coisas ficam realmente interessantes.

Devean George

MEU. DEUS. J.R. Rider. Esse era um cara interessante. Muito talentoso. Foi o primeiro jogador da NBA que eu conheci pessoalmente. Sou de Minnesota, onde ele começou a carreira nos Timberwolves, e meu pai cuidava de um bar em North Minneapolis. Um dia, quando eu estava no colégio, meu pai me ligou e disse: “Ei, J.R. Rider está aqui no bar.”

Eu fiquei meio, “Por que diabos J.R. Rider estaria em um bar em North Minneapolis?”

Meu pai respondeu, “Ele está aqui. Venha e tire uma foto com ele.”

Então eu fui. Tirei uma foto com uma Polaroid com ele. Meu bairro não era exatamente o lugar mais frequentado por jogadores da NBA. Mas esse era o J.R. Era um cara real, muito real.

Horace Grant

J.R. era um cara impetuoso. Ele era de Oakland. Caras de Oakland são de uma raça diferente. Ele tinha aquela confiança arrogante nele. Kobe tinha acabado de conquistar o título em 2000. Nós fizemos uma troca pelo J.R., e ele não era uma ameaça para a titularidade do Kobe ou qualquer coisa do tipo, mas isso não importava.

J.R. falava besteiras para o Kobe. Todo treino. Era “filho da p*” isso, “filho da p*” aquilo. Ele chegava para o Kobe e dizia, “Leva essa bunda de volta para a cozinha.”

Você não diz essas coisas para o Kobe. Você está pedindo para levar.

A gente sabia que o Kobe ia derrubá-lo. Assim que o Kobe encontrasse a fraqueza do J.R., ele iria dar o troco. Então um dia eu acho que ele encontrou…

Brian Shaw

J.R. tinha sido uma estrela em Minnesota e em Portland. Ele era o principal pontuador. Também tinha feito alguns ótimos jogos contra os Lakers. Então ele chegou cheio de confiança.

Um dia, no treino, J.R. diz para o Kobe, “Não se confunda, eu sou uma estrela também, e eu costumava fazer cestas em você.”

Então Kobe diz, “Cara, você realmente acha que pode me enfrentar? Beleza, depois do treino, eu e você. Um contra um.”

J.R. diz, “OK, eu não sou babaca. Vamos nessa.”

Ron Haper

Phil Jackson adorava esse tipo de coisa. Ele nem esperou o treino acabar. “Beleza, vocês querem fazer isso? Todo mundo fora da quadra.”

J.R. Rider, o homem que desafiou Kobe. E seu deu mal

Eu já era um veterano a essa altura. Você não precisa me mandar sair duas vezes. Me dê um Gatorade, um saco de gelo e uma pipoquinha. Puxei uma cadeira e esperei o show começar.

Devean George

Os jogadores mais antigos estavam em êxtase. Se alguém fizesse uma cesta em alguém nos treinos, era como se nós estivéssemos no parque. “Ooooohhhhhhh! Ele te pegou! Ele te pegou, garoto!”

Shaq estava lá instigando, “Oh! Não deixa ele te pegar assim! Não deixa ele te driblar!”

Era um show todos os dias. Agora você tinha Kobe e J.R. na frente de todo mundo? Meu Deus. Ninguém foi para o chuveiro. Todo mundo puxou uma cadeira na lateral. Era como uma luta de pesos pesados.

Brian Shaw

Eles jogaram até 10, cada cesta valendo um ponto. Kobe simplesmente o demoliu.

Ron Harper

Kobe o destruiu.

Brian Shaw

Era um Kobe de 22 anos. Capacidade atlética insana. Incansável. Assim, ele chutou a bunda do J.R. Ele tirou todos os truques da cartola — enterrada, up-and-under, pull-up, crossover.

Devean George

Fadeaway. Mão esquerda. Mão direita. Passando fácil por ele.

Brian Shaw

A gente estava na lateral alucinando. As pessoas estavam rindo e gritando. “Ei, J.R., cuidado com o que você deseja.”

Ron Harper

Os caras estavam agitando as toalhas e gritando, “Parem o espancamento, por favor, parem!”

Horace Grant

J.R. queria brigar com todo mundo na quadra.

Devean George

Quando Kobe terminou com ele, a gente ficou meio que, “Cara, você precisava mesmo fazer isso com ele?”

A gente não estava acreditando. Você tem que entender, era um cara que tinha bons números na liga. Não era alguém que só ficava esquentando banco. J.R. era um cara supertalentoso. Mas o Kobe entrou numa espécie de zona e ficou maluco. Não, ele ficou furioso pra cima do J.R.

Horace Grant

Chegou a um ponto que o J.R. basicamente disse, “Chega. Chega.”

Pela primeira vez na vida dele, J.R. ficou com o rabo entre as pernas.

Ron Harper

Eu lembro de ter pensado: “Meu Deus, esse moleque está em outro nível”.

Brian Shaw

O negócio é que a gente ganhou o campeonato naquele ano e o J.R. contribuiu para o time. É assim que funcionava. Era um ambiente muito competitivo.

Horace Grant

Kobe queria ser o melhor. A maioria dos caras quer estar na NBA. Talvez queiram ser um All-Star. Talvez um jogador que valha o salário máximo. Mas a maioria não tem a paixão e o foco para realmente querer ser o melhor. Kobe queria isso desde o primeiro dia. Ele estava perseguindo MJ. Era o objetivo dele.

Ron Harper

Eu lembro quando cheguei aos Lakers, em 99, e fui a um TGI Fridays com o Kobe no Novo México. Tivemos uma longa conversa e ele queria me perguntar tudo sobre como era o MJ. “Quanto ele treina? Quanto ele trabalha? Como ele evolui o jogo dele?” Eu disse a ele que MJ trazia algo novo todos os anos. Em um ano, um pull-up. No outro, o fadeaway. “Como ele se comportava?” Eu disse que MJ estava sempre de terno e gravata. Quando ele ia trabalhar, ele ia trabalhar. Kobe ficou realmente intrigado com aquilo tudo.

Horace Grant

Kobe era obcecado. Durante a temporada, ele trabalhava extremamente duro. Mas fora da temporada? Era um animal. Ele acordava às 5h da manhã, ficava no ginásio por quatro horas arremessando e trabalhando os movimentos de costas para a cesta, depois ele ia para a academia levantar peso por duas horas. Então ele ia para casa um pouco e voltava no período da tarde para arremessar mais. Isso é verdade. Todos os dias. Todos. Os. Dias.

Devean George

Kobe não é aquele competidor que faz barulho. Eu acredito que ele está falando consigo mesmo. Ele fica em casa assistindo aos vídeos dos jogos 24h por dia quando as câmeras não estão o filmando.

As pessoas sabem que ele trabalha duro, mas eu acho que, de certa forma, é algo até subestimado. Não acho que as pessoas entendam completamente como ele era competitivo, por que não acabava quando o jogo terminava ou as luzes se apagavam. Sério — eu ia para o ginásio às 6h da manhã e o Kobe já estava lá pingando suor, pronto para ir embora.

Brian Shaw

Ele é o cara que mais aguenta a dor que eu já vi. LeBron teve câimbras e tiraram ele da quadra. Paul Pierce machucou o joelho e o tiraram de cadeira de rodas. Dwyane Wade também depois que machucou o ombro.

Kobe rompeu o tendão de aquilles e não saiu de quadra enquanto não deixaram ele bater os dois lances livres. Depois ele foi andando até o vestiário. Ele não ia deixar ninguém tirá-lo de quadra.

Essa foi a coisa mais impressionante sobre ele que eu presenciei, e eu vi muita coisa. Se você sabe como é sentir essa lesão — quero dizer, é indescritível o quão forte você tem que ser para fazer isso.

Horace Grant

Kobe deixar de bater aqueles lances livres seria como uma criança pequena desistir do sorvete. Esquece.

A habilidade que ele tinha de jogar machucado é diferente de tudo que já vi. Naqueles times campeões, ele estava jogando com várias lesões que muita gente nem fazia ideia. E ele nunca reclamou.

Brian Shaw

Eu sempre conto essa história para as pessoas que me perguntam sobre o Kobe. A gente sempre fazia raps no fundo do ônibus. Sempre que um disco do Jay-Z era lançado, era algo importante para nós. Os caras compravam o disco no dia do lançamento e ficavam cantando as músicas favoritas. Talvez eles soubessem os primeiros versos ou o refrão. Bom, Kobe ficava no fundo do ônibus cantando todas as frases de todas as músicas do disco que tinha acabado de ser lançado. Eu digo cada letra. Era genuinamente impressionante. Ninguém conseguia descobrir como aquilo era possível.

Devean George

Era incrível. Não fazia sentido. Eu estava sempre pensando, “Como esse cara está aprendendo as letras tão rápido?” Nós todos comprávamos o disco assim que saía. Todo mundo estava escutando as músicas. Eu não sabia as letras. Como você sabe? Acabou de lançar, 24h atrás, cara!

Eu imaginava ele sentado a noite toda, com os fones de ouvido, escrevendo as letras num caderno de novo e de novo, como meus filhos fazem quando vão estudar para uma prova de inglês. O diabo do disco saiu ontem e ele já sabe tudo de trás para frente.

Foi aí que eu percebi, talvez esse cara seja um gênio. É isso ou ele estava fazendo com o que o Jay mandasse uma cópia do disco para ele antes de todo mundo. De qualquer forma, essa é uma pequena janela para dentro do mundo do Kobe. Ele era obcecado com grandeza.

Ron Harper

Nunca mais vai haver alguém como Michael Jordan. Mas também é capaz de nunca mais haver alguém como Kobe Bryant. Ele chegou mais perto do que qualquer outro vai chegar do MJ. Kobe podia driblar com a bola, podia arremessar de qualquer lugar da quadra, podia passar. E isso era todo dia. Essa é a diferença. Se ele e o Shaq tivessem ficado juntos, eu realmente acredito que ele teria ganhado seis ou sete títulos. De verdade.

Devean George

O legado do Kobe é o tempo que ele sustentou sua grandeza. Há vários níveis de respeito na NBA. Ser dominante por 20 anos? Esse é o último nível. Por isso você vê todos os grandes jogadores impressionados enquanto ele se despede. A NBA é ótima em conhecer as pessoas, mas há alguns poucos escolhidos que você não consegue. Ninguém nunca realmente entendeu o Kobe. O único capaz de pará-lo foi o tempo.

É definitivamente estranho assisti-lo na TV no tour de despedida, sorrindo e aproveitando. Mas eu adoro isso, porque você consegue ver que ele está em paz com a decisão. O caminho chegou ao fim, mas que droga, foi ótimo.

*H-O-R-S-E é um jogo em que um jogador faz um movimento específico para fazer uma cesta e o outro jogador tem que fazer igual. Caso um movimento não consiga ser replicado, o jogador que não foi capaz de fazer a cesta ganha uma letra. Quem completar HORSE primeiro perde.

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