Privilegiado

Vagner Vargas
HIGH FIVE
Published in
10 min readApr 9, 2019

Por Kyle Korver
Traduzido por
Vagner Vargas
Clique aqui para ler o texto original (em inglês) no The Players' Tribune

Foto: Melissa Majchrzak/Getty Images

Quando a polícia quebra a perna do seu companheiro de time, você pensaria que aquilo te faria acordar um pouco. Quando o prendem na rua em Nova York, jogam na cadeia e causam uma lesão tão séria que encerra a temporada para ele, você pensa que saberia que tem algo de errado nessa história.

Você pensaria. Mas não pensa.

Ainda lembro da minha reação quando ouvi o que aconteceu com o Thabo (Sefolosha). Era 2015, já na parte final da temporada. Thabo e eu éramos companheiros de time nos Hawks e tínhamos pegado um voo tarde após um jogo em Atlanta. Quando acordei na manhã seguinte, o grupo de mensagens do time estava enlouquecido. Os detalhes ainda não estavam claros, mas os caras estavam dizendo Thabo machucou a perna? Durante uma prisão? Espera, ele passou a noite preso? Estávamos todos muito chateados e confusos.

Bem, quase todo mundo. Minha resposta àquele episódio foi… diferente. Tenho vergonha de admitir isso. É por isso que quero compartilhar essa história agora.

Antes de continuar, deixa eu dizer uma coisa. Thabo não era um cara aleatório que por acaso jogava no mesmo time que eu. Nós ficamos muito amigos naquele ano. Era o cara que eu procurava para conversar sobre qualquer coisa não relacionada ao basquete. Política, religião, cultura, o que você pensar. Thabo trazia uma perspectiva diferente e atípica do que estamos acostumados a ver na NBA. E é fácil perceber por que: antes de jogar comigo em Atlanta, ele passou por França, Turquia e Itália. Ele fala três línguas! A mãe do Thabo era da Suíça e o pai da África do Sul. Eles viveram juntos na África do Sul antes dele nascer, depois foram embora por causa do apartheid.

Não demorou para que eu percebesse que o Thabo era uma das pessoas mais interessantes com quem eu já havia convivido. A gente se respeitava. Era legal, sabe? A gente se importava um com o outro.

Enfim… Na manhã em que descobri que Thabo foi preso, quer saber qual foi a primeira coisa que pensei? Sobre meu amigo e companheiro de time? Meu primeiro pensamento foi: O que o Thabo estava fazendo em uma boate em uma noite de back-to-back?

Sim. Não pensei como ele está? Não pensei o que aconteceu durante a prisão? Não pensei alguma coisa parece errada nessa história. Não pensei em nada parecido com isso. Antes de saber de tudo que tinha ocorrido, e antes até de ter a chance de conversar com Thabo, eu meio que o culpei.

Pensei bem, se eu estivesse no lugar dele, em uma boate tarde da noite, a polícia não teria me prendido. A não ser que eu tivese feito algo errado.

Constrangedor.

Não é como se fosse um pensamento consciente. Foi puro reflexo, a primeira coisa que veio à minha cabeça. E eu estava preocupado com ele, não tenho dúvidas quanto a isso. Ainda assim, constrangedor.

Alguns meses depois, um júri o declarou inocente de todas as acusações. Ele fez um acordo com a polícia de NY a respeito do uso de força contra ele. E então a história simplesmente desapareceu. Saiu da mídia. Thabo passou por uma cirurgia e por todo o processo de reabilitação. Logo outra temporada da NBA começou e estávamos na quadra novamente. A vida seguiu.

Mas eu ainda não conseguia esquecer meu desconforto com aquela situação. Eu não estava envolvido no incidente. Eu nem estava lá. Então por que eu sentia que tinha decepcionado meu amigo? Por que eu sentia que tinha me decepcionado?

Algumas semanas atrás, aconteceu algo no ginásio do Utah Jazz que reviveu muitas dessas questões. Talvez você tenha visto. Nós estávamos jogando contra o Thunder e Russell Westbrook e um fã trocaram algumas palavras durante o jogo. Não vi ou ouvi exatamente o que ocorreu, e se você estava acompanhando o jogo na TV ou pelo Twitter, talvez tenha tido a mesma impressão inicial. Depois do jogo, um dos repórteres me perguntou o que tinha acontecido entre eles. Eu disse que não tinha visto e acrescentei algo como mas você conhece o Russ. Ele interage muito com o público.

Claro que a história completa saiu mais tarde naquela noite. O que realmente ocorreu foi que um fã disse coisas realmente muito feias e estava muito perto do Russ, que respondeu. Depois do jogo, ele disse que sentiu que aqueles comentários tinham uma carga racial. O incidente atingiu um nervo dentro do nosso time.

Em uma reunião fechada com o presidente do Jazz no dia seguinte, meus companheiros de time compartilharam histórias semelhantes, episódios em que se sentiram degradados de maneiras muito além do aceitável. Um deles disse que sua mãe ligou logo após o jogo, preocupada com sua segurança em Salt Lake City. Outro companheiro disse que aquela noite o fez se sentir como se estivesse em um zoológico. Um dos caras nessa reunião era Thabo, ele é meu companheiro em Utah agora. Eu olhei pra ele e lembrei daquela noite em NY.

Todo mundo estava chateado. Eu estava chateado e envergonhado. Mas tinha outra emoção naquela sala naquele dia, uma que era mais difícil e delicada. Era uma mistura de decepção com cansaço. Estavam todos exaustos disso tudo.

Não foi a primeira vez que eles participaram de conversas sobre raça em suas carreiras, e não foi a primeira vez que eles tiveram que falar sobre a atitude odiosa de outros. E outro grande ponto tratado durante a reunião foi como incidentes como esse não eram apenas sobre as pessoas envolvidas. Não era só sobre Russ e um torcedor. Era muito mais. Era sobre o que significa exsitir como uma pessoa negra em um espaço predominantemente branco.
Era sobre racismo nos Estados Unidos.

Antes de a reunião acabar, eu me juntei aos que exigiram uma resposta e uma promessa da franquia de que ia se manifestar sobre o ocorrido. Acho que meus companheiros e eu sentimos que era um passo na direção certa. Mas acho que ninguém ficou satisfeito.

Tem uma coisa sobre a qual fiquei pensando muito nas últimas semanas. É o fato de que, se formos sinceros, demograficamente eu tenho muito mais em comum com a maioria dos torcedores que estão nas arquibancadas do que com os jogadores que estão em quadra.

Depois do que aconteceu em Salt Lake City, e com os debates que temos tido desde então, comecei a realmente perceber o papel que essa demografia exerce em meu privilégio. Eu posso ser amigo do Thabo, companheiro de time do Ekpe (Udoh) ou colega do Russ. Eu posso trabalhar com esses caras. E eu absolutamente, 100% estou ao lado deles. Mas eu me pareço com o outro lado. E, gostando ou não, estou começando a entender que isso significa alguma coisa.

O que estou percebendo é que, não importa o quanto eu me dedique a ficar do lado deles ou apoie jogadores e jogadoras negros na NBA e na WNBA, eu ainda estou nessa conversa sob uma perspectiva privilegiada de poder ter escolhido estar nela. O que obviamente significa que, por outro lado, eu poderia facilmente optar por não estar. Todo dia eu tenho essa escolha, esse privilégio, baseado apenas na cor da minha pele.

Em outras palavras, eu posso dizer todas as coisas certas do mundo. Posso me solidarizar ao Russ depois do que aconteceu em Utah. Posso evoluir e mudar minha opinião sobre o que ocorreu com Thabo em NY. Posso ser aquele cara estranho do filme Corra! que fica se gabando sobre como ele votaria no Obama uma terceira vez. Posso condenar todo racista que eu já conheci. Mas também posso me misturar com a multidão e meu rosto vai se perder no meio dessas pessoas sempre que eu quiser.

Eu percebo isso agora. Talvez alguns anos atrás perceber isso teria um senso de progresso. Mas não estamos alguns anos atrás. Estamos no hoje. E sei que tenho que melhorar, então estou tentando. Estou tentando perguntar a mim mesmo o que eu deveria de fato fazer. Como eu, um homem branco, parte deste problema sistêmico, posso me tornar uma parte da solução quando o assunto é racismo no meu local de trabalho? Na minha comunidade? Neste país?

Estas são as perguntas que tenho feito a mim mesmo ultimamente. E não acho que tenha todas as respostas, mas eis aquelas que estão começando a soar mais e mais como verdade:

Tenho que continuar a estudar a história do racismo nos EUA.

Tenho que ouvir. Vou dizer de novo, pois é importante: tenho que ouvir!

Tenho que apoiar líderes que vejam a justiça racial como fundamental, como algo que está no coração de praticamente todos os problemas que temos no país atualmente. E tenho que apoiar políticas que façam a mesma coisa.

Tenho que fazer o meu melhor para reconhecer quando tenho que simplesmente sair do caminho para ampliar as vozes dos grupos marginalizados que constantemente ficam esquecidas.

Mas, talvez mais do que tudo, eu sei que, como um homem branco, tenho que responsabilizar outros homens brancos. Nós temos que nos responsabilizar. E todos temos que ser responsáveis, ponto. Não apenas pelo que fazemos, mas também pelas maneiras como nossa falta de ação pode criar espaços seguros para quem adota comportamentos tóxicos.

Acredito que os parâmetros que temos que definir para nós mesmos, neste momento crucial, são mais altos do que nunca. Temos que ser ativos e apoiar as causas de quem é marginalizado, precisamente pelo fato de que eles são marginalizados.

Dois conceitos sobre os quais venho pensando muito ultimamente são culpa e responsabilidade. Quando o assunto é racismo nos EUA, acho que culpa e responsabilidade têm uma tendência de serem vistos como a mesma coisa. Mas estou começando a entender que existe uma diferença real.

Como pessoas brancas, somos culpados pelos pecados de nossos antepassados? Eu acho que não. Mas nós somos responsáveis por eles? Sim, acredito que somos.

Cheguei à conclusão de que, quando falamos sobre soluções para o racismo sistêmico — reforma policial, diversidade no ambiente de trabalho, ações afirmativas, melhor acesso à saúde e até reparação histórica — não estamos falando sobre culpa. Não estamos falando sobre apontar dedos.

É sobre responsabilidade. Sobre entender que quando falamos a palavra igualdade, por gerações, o que realmente dissemos foi igualdade para um certo grupo de pessoas. É sobre entender que quando falamos a palavra desigualdade, o que realmente queríamos dizer era escravidão e o que ela causou, efeitos que sentimos até hoje. É sobre entender em um nível básico que pessoas negras e pessoas brancas ainda são tratadas de maneira diferente. E que essas diferenças vêm de uma história feia, não de uma separação aleatória.

E também é sobre entender que movimentos como Black Lives Matter são importantes. Vamos encarar a realidade: eu provavelmente estaria salvo se estivesse na rua em NY naquela noite. E Thabo não estava. Eu estava salvo dentro de quadra naquela outra noite em Utah. Russel não estava.

Mas por pior que seja ter que lidar com o racismo nos ginásio da NBA em pleno 2019, a verdade é que você pode argumentar que este tipo de racismo é mais fácil de se lidar. Por que pelo menos nestes casos o racismo é fácil de ser detectado. Não há nenhuma ambiguidade, nem no ato e, ainda bem, nem na resposta. Nós tiramos o torcedor do ginásio e banimos ele pelo resto da vida.

Mas o racismo se manifesta de maneiras muito mais perigosas, silenciosas e menos estúpidas. Não é do tipo que vem anunciado ao entrar em um ginásio. É quieto e sutil. Do tipo que praticamente não dá para enxergar. É a pessoa que diz todas as coisas “certas” em público. É amigável quando conhece uma pessoa negra, educada. Mas na vida privada… Bom, é a pessoa que deseja que todo mundo parasse de “fazer tudo girar em torno de raça” o tempo todo.

É o tipo de racismo que parece quase invisível, uma das grandes razões para que ele continue existindo. Então, de novo: banir um cara como o torcedor que insultou Russ é a parte fácil. Mas se nós realmente vamos fazer a diferença na liga, como comunidade e como país, é como eu disse, acho que temos que nos esforçar para dar outro passo adiante.

Primeiro, identificando aquelas atitudades menos visíveis e não tão óbvias como o que elas são de fato: racismo. Segundo, denunciando ativamente e em todos os níveis. É o mínimo que temos que fazer para poder considerar a NBA, ou qualquer outro local de trabalho, como uma parte mínima da solução.

Vou terminar já já, mas tenho um último pensamento. A NBA é composta em mais de 75% por pessoas negras. Setenta e cinco porcento. Eles construíram essa liga, fizeram-na crescer e transformaram-na no que ela é hoje. Só queria dizer que, se você não encontra dentro de você a necessidade de apoiá-los, se o melhor que você pode fazer é ser passivo e tolerar o que acontece, se vamos optar por nos misturar e sair da discussão, isso não é o suficiente. Nem perto disso.

Sei que estou em uma posição estranha, como um dos jogadores brancos mais conhecidos na NBA. É uma posição que vem com algumas coisas interessantes. E é uma posição que me transforma em um símbolo para muitas coisas, para muita gente e pessoas que muitas vezes não sabem nada sobre mim. Normalmente eu apenas os ignoro, mas este não é um momento normal.

Me parece um momento para traçar uma linha na areia. Acredito que o que acontece com os negros neste país, em pleno 2019, é errado. O fato de que a desigualdade está inserida tão profundamente em tantas das instituições mais confiáveis está errado. Acredito que a responsabilidade de fazer as coisas mudarem é de qualquer um que esteja do lado dos privilegiados. Se você não sabe nada sobre mim fora da quadra, eu entendo, mas se você quer entender alguma coisa, saiba que eu acredito nisso. Saiba isso sobre mim.

Se você usa minha camiseta nos jogos, saiba isso sobre mim. Se você está pensando em comprar minha camiseta para alguém, saiba isso sobre mim. Se você está me seguindo nas redes sociais, saiba isso sobre mim. Se você vier aos jogos do Jazz torcer por mim, saiba isso sobre mim. E se você está usando meu nome para sua própria causa, saiba isso sobre mim. Saiba que eu acredito que isso importa.

Obrigado por ler.

Agora chegou a hora de eu calar a boca e escutar.

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