Ash, melhor não comer esse Zubat…

Marcos V. C. Vital
Hipótese Nula
Published in
6 min readNov 13, 2020

Uma historinha sobre COVID-19, pokémon e revistas predatórias

Ugh!

Há um tempo atrás, escrevi por aqui sobre o que são os tais artigos científicos, e algum tempo depois a Gracielle Higino escreveu esta excelente continuação (sério, ela usa tweets do Neymar pra explicar tudo). Depois disso tudo, eu fiquei com aquela velha ideia do tipo um-dia-vou-escrever-sobre, para falar sobre as tais revistas predatórias. Mas como acontece com 90% das ideias da categoria um-dia-vou-escrever-sobre, acabei não escrevendo… Até que me deparei com um artiguinho fantástico, e desta vez a vontade de escrever sobre o assunto acabou vencendo! :D

Daqui a pouco falo sobre pokémon, continue a ler!

Antes de falar sobre os pokémon e a covid: afinal, o que são as tais “revistas predatórias”?

Então, como eu explico na postagem sobre artigos científicos, existem revistas que seguem um modelo no qual os autores pagam uma taxa, que é usada para manutenção da revista (e para que qualquer pessoa possa acessar e ler os artigos sem pagar nada). E é de olho nesta taxa que algumas pessoas viram a chance de ganhar dinheiro com um esquema bem sujo… Resumidamente, funciona assim:

  • você cria um site para uma revista científica, ou para várias revistas associadas (muitas vezes usando nomes bem próximos de revistas que já existem, para uma chance maior de confundir autores incautos);
  • você adiciona um corpo editorial para dar legitimidade para a coisa toda (às vezes são nomes inventados, em outras são pessoas reais, mas que muitas vezes nem sabem que os nomes estão lá!);
  • você cria a descrição de um processo de revisão por pares, tradicional nas revistas, mas que na verdade nunca vai acontecer de verdade.

Pronto, agora você senta e espera… E quando alguém chega no site da revista, acha que ela é legítima e submete um artigo, a pegadinha começa. A revista responde num prazo absurdamente mais rápido que o normal, dizendo que seu artigo foi revisado e aceito sem alterações (ou pede algumas alterações mínimas, para disfarçar). E logo depois te informa a taxa de publicação, que na maioria das vezes nem estava no site. Se você se recusa a pagar, eles podem te pressionar, fazer ameaças (falsas, claro) de ações legais, etc.

Muitos autores que não sabiam que a revista não era legítima, acabam caindo nessa e pagando a taxa. De vez em quando um autor ou outro pode deliberadamente publicar em uma revista assim — mas normalmente é uma péssima ideia, porque uma vez que outros cientistas da área percebem que a revista é fake, pega muito mal ter algo publicado nela em seu currículo… E no fim, quem opera o esquema ganha dinheiro fácil. Stonks.

Mas cadê os pokémon?

Já vamos chegar lá!

Para todo movimento fraudulento como este, tem sempre um movimento contrário, para combater. E uma das práticas para se lidar com isso é se identificar as revistas falsas. Em alguns casos é mole: nomes falsos no corpo editorial, sites completamente amadores e outros sinais assim. Mas de vez em quando aparecem alguns casos mais sofisticados, que são bem construídos para evitar suspeitas, e aí entram os cientistas que fazem o que cientistas sabem fazer bem: experimentos!

É bem simples na verdade: você criar um artigo falso, deliberadamente cheio de coisas nonsense e absurdas, e depois submete para uma revista. Se ela for legítima, a revisão por pares vai funcionar como deve, e uns três revisores provavelmente vão ficar com “cara de WTF” ao lerem o artigo, que será rejeitado rapidinho (na verdade, se o artigo for muito nonsense, ele já iria ser bloqueado ao ser recebido por alguém da equipe editorial!). Agora, se a coisa passar… Aí bingo, você desmascarou uma revista predatória! \o/

Pokémon e COVID-19, é isso mesmo?

Pois é!

O que levou a escrever este texto é este artigo de teste maravilhoso que pode ser lido e baixado aqui. Ele faz parte deste tipo de teste que eu escrevi acima, e serviu pra mostrar que a American Journal of Biomedical Science & Research é completamente suspeita. O processo todo foi descrito pelo próprio autor do artigo aqui, se você quiser ler. Mas o que me chamou a atenção é o nível de detalhamento e a quantidade absurda de referências tanto ao universo dos pokémon quanto à vários outros elementos da cultura pop (incluindo Bob Esponja e o doutor House). É aquela coisa: se você vai desmascarar uma revista predatória, por que não se divertir de montão enquanto faz isso?!

A brincadeira começa com o título: Cyllage City COVID-19 Outbreak Linked to Zubat Consumption — ou seja, fala sobre um surto de COVID-19 como consequência de consumo de Zubats! Para quem não sabe, Zubats são uns pokémon morcegos (famosos por irritar jogadores em alguns dos jogos de videogame da franquia). Ah, e Cyllage City é uma cidade do universo pokémon!

Logo depois temos os nomes dos autores e suas filiações: temos o prof Elm, da New Bark Town University; a enfermeira Joy, do pokecenter de Cyllage City; e por algum motivo, temos ninguém menos que Gregory House!

No texto, pelo menos dois pontos que achei fantástico. A menção de pessoas que passaram pela caverna ligando as rotas 7 e 8 em Kalos, que vai ser conhecida por quem jogou algum dos jogos da geração VI da franquia (fora que uma “caverna cheia de Zubats” aparece em outros jogos). E o momento no qual os autores dizem, abertamente que:

Epidemiologistas acreditam que é altamente provável que uma revista publicando este artigo não pratique revisão por pares e seja, portanto, predatória.

:D

As referências nas referências

As referências bibliográficas usadas no artigo estão lá para serem apreciadas, e só consigo imaginar o autor morrendo de rir das próprias ideias. Existem várias referências reais, muitas delas de artigos que falam sobre revistas predatórias (rá!). Mas existem outras completamente geniais, como esta:

Jesse J James J (2020) Prepare for trouble: Coronavirus outbreak reaches North America. Rocket Science Monthly 21(2): 45–47

Ou esta:

Joy MP, Joy DD, Joy TP (2006) Rabies outbreak in Pokémon daycare center. Infectious Diseases 33: 377–378.

Mas quem nem curte pokémon pode se divertir também! Vou deixar duas outras referências muito boas aqui, começando com uma diretamente da Fenda do Bikini:

Squarepants, S Star P, Cheeks S (2014) Treatment of Karenovirus infection with processed food. Bikini Bottom Journal of Morbidity and Mortality 32: 2–50.

E mais esta, de quatro carinhas verdes dos esgotos:

da Vinci L, Simoni MdLB, da Urbino MS, Bardi DdNdB (2014) Effects of exposure to sewage on martial arts skills in turtles. Journal of Cowabungan Zoology 479(2): 149–155.

A quantidade de referências legais é muito grande, cada vez que olho o artigo e confiro uma que eu não tinha lido antes, dou uma risada… XD

Não resisti!

Agora, diversão à parte, o assunto é sério: revistas predatórias, além de gerar dinheiro para alguns espertalhões por aí, são um problemão para a comunidade científica. São um problema para autores que submetem seus trabalhos sem perceber a natureza altamente maliciosa da revista, e que acabam tendo seus trabalhos não avaliados de forma correta (e ainda publicados em um veículo sem credibilidade); e são um problema para o público geral, pois é fácil se enganar pela aparência legítima de artigos (e um artigo de baixa qualidade publicado assim, pode enganar desinformar leitores que não sejam daquela área específica). Então, vocês vão me perdoar pelo uso do trocadilho infame aqui, mas lá vai: temos que pegá-las!

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Marcos V. C. Vital
Hipótese Nula

Prof. da UFAL, coordenador do LEQ, apaixonado por ensino, ciência, R e jogos!