Lendo artigos científicos: um guia de sobrevivência

Marcos V. C. Vital
Hipótese Nula
Published in
6 min readAug 23, 2023

Algumas dicas e sugestões de como ler artigos sem arrancar (muito) os cabelos

https://phdcomics.com/comics/archive.php?comicid=242

Eu já escrevi algo a respeito de artigos científicos aqui antes, focando na jornada (muitas vezes sofrida) que é a publicação de um. Neste novo texto, porém, quero focar no outro lado: o de quem lê! Ler artigo não é lá uma tarefa muito simples, e pode ser especialmente dura para quem está começando. Então vamos lá com algumas dicas e sugestões!

Alerta: nestes tempos de negacionismo científico, muita gente tem tentado ler artigos científicos publicados sobre os temas mais falados ou discutidos no momento. Isso é bem interessante, mas existem riscos: se ler algo de um assunto que você está estudando pode ser desafiador, ler algo que passa longe da sua área de informação pode ser complicado, e na pior das hipóteses você pode entender tudo errado… Este guia foi escrito focando em estudantes e pesquisadores lendo artigos da sua área de formação, ou que sejam ao menos tangencialmente ligados a ela, ok? Se você quer ler algo sem uma formação ou preparação básica adequada, faça com muita cautela.

Um pouco de contexto

Não estou escrevendo este texto agora completamente ao acaso: ele nasceu junto com uma disciplina eletiva! Neste semestre eu ofereci uma disciplina de “Tópicos em Ecologia do Brasil” para a turma da licenciatura noturna em Ciências Biológicas da UFAL. A proposta da disciplina é lermos e discutirmos artigos científicos da área de Ecologia que tenham como foco de estudo organismos, biomas ou ambientes brasileiros (com um foco especial no Nordeste, já que estamos em Alagoas).

Nós começamos a disciplina revisando conceitos fundamentais: discutindo a Ecologia em seus níveis de organização, escalas e abordagens de estudo. Depois, fizemos um esforço colaborativo de selecionar artigos, tentando manter o máximo de variedade no que diz respeito a estes três pontos. E aí, antes de começarmos a ler, tivemos uma aula para conversar sobre como lemos artigos. Este texto é fruto desta discussão que aconteceu em sala de aula.

Ah sim, um detalhe importante: este texto está claramente enviesado pelas minhas experiências, e escrevo isso pensando principalmente em artigos de pesquisas científicas na área de Ecologia. Acho que a maior parte das minhas sugestões são gerais o suficiente, mas algumas coisas com certeza podem ser diferentes em artigos de outros tipos e em outras áreas.

Um aviso sobre muitas formas diferentes de se chegar a uma mesmo resultado!

Pois é, mas antes de avançar, acho que cabe mais um avisinho aqui. O que eu vou sugerir é o meu jeito de ler artigos. Como eu acho que esta é uma forma produtiva e funcional, explico para as pessoas como eu faço e por que eu faço assim. Algumas podem seguir e curtir. Outras podem tentar, achar ruim, e encontrar uma maneira melhor! Então o lance é: por mais que existam caminhos que costumam funcionar para a maioria das pessoas, no final o que importa é: encontrar uma maneira que funcione para você. Então leia este texto como uma sugestão interessante, e não como um guia rigoroso, certinho?

Começando pelo começo? Eu não!

Ler o resumo costuma ser algo intuitivo sobre como começar, não é? Pois então: eu normalmente não faço isso. Antes de conferir o resumo, o meu primeiro impulso é olhar as figuras — especialmente os gráficos!

Veja bem: quase todo artigo científico que apresente uma coleta e análise de dados coletados vai apresentar um ou mais gráficos (e isto é mais ou menos esperado na minha área, a Ecologia). Acontece que um bom gráfico conta uma história, e se os autores seguirem a ideia básica de que a legenda da figura deve ser mais ou menos autoexplicativa, você conseguirá ter um vislumbre dos principais resultados do estudo. Então esta é a minha sugestão de começo:

1 — comece pelas figuras e gráficos.

Agora vamos para o resumo? Bom, eu normalmente não vou ainda: eu vou conferir as conclusões! Elas podem estar em uma seção à parte, mas em muitos casos pode ser apenas um ou dois parágrafos finais da discussão. Se você já sabe o tema do artigo (afinal, o título vai te dar uma boa ideia) e já teve uma visão rápida dos resultados pelas figuras, ler as conclusões deve te ajudar a ter uma ideia do desfecho, do que os autores acham que é a “amarração” da coisa toda. Então, prosseguindo como minha sugestão de segundo passo:

2 — siga para ler as conclusões.

Agora sim, vamos para o resumo e a leitura “na ordem”. Neste momento eu normalmente volto para o começo do artigo, e leio tudo na ordem. Mas tem um detalhe: se for um artigo importante pra mim, esta leitura será superficial e rápida, porque como vocês vão ver minha outra sugestão adiante, eu lerei o artigo de novo.

Nesta leitura, eu não vou me preocupar com as coisas que não for capaz de entender. Os autores mencionam um método complicado? Detalham um experimento complexo? Apresentam conceitos de difícil compreensão?! Sem problemas: apenas relaxe e siga lendo, mesmo sem entender direito. A ideia desta leitura mais leve e rápida é que você consegue ter uma visão geral do artigo. Então, este é meu terceiro passo:

3 — faça uma leitura rápida e superficial do trabalho.

Pronto, você agora deve ter uma visão do que os autores fizeram, o que eles encontraram e o que eles acham que são as principais conclusões e implicações. E agora? Bom, agora depende… Vai depender do que você precisa do artigo.

Pode ser que neste momento você perceba que aquele artigo tem pouca importância para a sua pesquisa. Ou talvez você tenha sacado tudo mesmo com a leitura rápida! Se for este o caso, você pode parar por aqui — só não se esqueça que é sempre bom anotar os pontos principais, pois se você for citar o artigo no futuro, vai saber fazer isso de forma adequada.

Por outro lado, pode ser que após a leitura rápida você precise se aprofundar, e aí é o momento da leitura cuidadosa. Você relê tudo, anota detalhes e tenta ter uma compreensão melhor de tudo o que leu. Sabe o que é bacana? Pode ser que um monte de coisas que você não tinha entendido na primeira leitura façam sentido agora, uma vez que você pegou a visão geral e agora consegue entender melhor os detalhes. ;)

Mas perceba que algumas coisas podem ainda não ser bem compreendidas — e está tudo bem! Isto faz parte do processo, e depois eu comento mais sobre isso. De qualquer forma, fica aqui o registro das duas possibilidades de quarta etapa:

4 — Se compreendeu tudo ou artigo é pouco importante, acabou;

OU

4 — Faça uma leitura cuidadosa.

E agora?

Bom, se você seguiu para a leitura cuidadosa, acho que há duas coisas relevantes para se comentar aqui. A primeira diz respeito aos métodos, resultados e detalhes técnicos em geral, e a mensagem principal que eu quero passar é: não entre em pânico e mantenha a calma!

Nem sempre temos toda a preparação para entender o que é um “modelo misto com medidas repetidas e uma distribuição de erros binomial” ou qualquer coisa do tipo. O segredo é: você pode (e provavelmente deve) ir estudando os métodos relevantes para sua área, e enquanto desenvolve este lado, você vai construindo uma compreensão intuitiva do que são os métodos e o que eles fazem. Depois de ler três artigos que usam um mesmo tipo de método de análise, por exemplo, você já tem pelo menos uma ideia do contexto no qual aquele método é usado. Vá com calma e tenha em mente que uma compreensão superficial dos métodos já deve ser suficiente para você começar a ler artigos em uma determinada área — e a compreensão mais aprofundada vai chegando aos poucos.

A outra coisa relevante que eu quero comentar é: escute sua intuição e acredite no seu senso crítico! Se você está lendo um artigo e acha que alguma coisa está estranha, errada, equivocada ou completamente sem sentido e avacalhada, existe uma chance enorme de que você tenha razão! Então evite ter artigos com uma postura de que “se está publicado, está certo”. Claro, nós sabemos que artigos em boas revistas e de autores que são pessoas conhecidas em uma área tem boas chances de estarem bem certinhos. Mas mesmo nestes casos, pequenos deslizes podem passar. E de vez em quando, artigos podem ser ruins, mal escritos e estarem simplesmente falando um monte de besteira ou chegando a conclusões erradas… Se você é inciante em uma área, pode sentir uma certa “timidez” ao pensar que achou erros — não sinta. Mantenha o espírito crítico sempre afiado, e saiba que você pode (e deve) questionar coisas que não parecem estar corretas.

Acho que é isso!

Ufa! Isso ficou grande, e mesmo assim não sei se consegui passar tudo o que eu acho relevante. Mas espero que ajude um pouquinho quem está sofrendo com essa tarefa muitas vezes árdua de ler artigos e mais artigos. Então é isso! Qualquer coisa deixe um comentário aí, e vamos nos falando. ;)

Um abraço, e até a próxima!

Marcos V. C. Vital

--

--

Marcos V. C. Vital
Hipótese Nula

Prof. da UFAL, coordenador do LEQ, apaixonado por ensino, ciência, R e jogos!