Flores Baldias quebram o concreto

Jhonattan
Hipercubo
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7 min readNov 1, 2018

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Desabrochando no mundo na música, a Flores Baldias esbanja originalidade misturando poesia, guitarras e zabumba

Jordão, Mateus e Chaves Paixão. Imagem: Macalango

Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

- A Flor e a Náusea, Carlos Drummond de Andrade

Flores sem dono, flores independentes, flores baldias. Como a flor do poema de Drummond de Andrade, que rasga o concreto, o asfalto, o nojo e ódio; como as Flores do Mal, de Baudelaire, cuja beleza é nutrida pelo tédio e angústia que assola o homem da modernidade; as flores têm sido para os poetas, símbolo de resistência silenciosa e pacífica. Resistência por meio da poesia, das artes, da cultura.

Dia 21 de setembro, por volta das 20h de uma sexta, eu me encontrava no estacionamento do Espaço Cultural, à espera da Flores Baldias. A banda se apresentaria ali apresentaria ali cerca de uma hora depois, à convite do Projeto Cambada, uma espécie de vitrine para bandas paraibanas idealizada pela Fundação Espaço Cultura (Funesc), e aproveitei a ocasião para marcar uma conversa com o grupo completo.

Era possível sentir a energia deles reverberando naquele ambiente fechado; energia de quem está prestes a se apresentar.

Quando chegaram, cumprimentei primeiramente e agradeci a Jordão Ribeiro, guitarrista e um dos vocalistas da Flores, por ter me servido de mediador entre mim e os outros rapazes, Jean Michel (que se apresenta com o pseudônimo Chaves Paixão e faz o violão e vocais), Mateus (vocal e baixo), Mikael e, chegando pouco depois, Emmanuel, ambos percussionistas. Sem luxos, sem exigências, os rapazes carregam em uma das mãos os instrumentos e, na outra, bandejas com frutas e frios, água e refrigerantes, para servirem-se ao fim da apresentação. Eles colocam tudo no camarim, um grande espaço vazio e branco, com uma das paredes completamente coberta por espelhos que fica alguns lances de escada abaixo na Funesc. De mobília há, além de um frigobar, apenas dois sofás onde se sentam alguns amigos que acompanham a banda.

No balcão onde foram colocadas as frutas, eu me apoio e posiciono o celular com o gravador ligado. Os garotos estão agitados pela ansiedade e ficamos todos de pé. Era possível sentir a energia deles reverberando naquele ambiente fechado; energia de quem está prestes a se apresentar.

Das raízes…

Os três vocalistas da banda. Imagem: Macalango

A gênese da Flores Baldias ocorreu em 2015, formada por Mateus, Jean Michel, Jordão e Zé Silva, na percussão. Mateus e Jean (que é carioca, mas mora aqui desde os 12 anos) têm uma amizade de longa data, construída no bairro do Castelo Branco, na zona sul de João Pessoa. É um antigo bairro da cidade, morada para diversos músicos, artistas e poetas, muitos deles estudantes ou com alguma ligação à Universidade Federal da Paraíba, cuja sede se encontra no bairro. Nesse ambiente fértil, Jean Michel e Mateus formaram aos 17 ou 18 anos sua primeira banda de metal, passando depois para um som mais alternativo — mais “mutantes”, como explica Mateus. “Mas ficou nessa de garagem mesmo. Essa coisa de ter banda fica estacionada e cada um vai procurar o que fazer. Eu me envolvi muito com a Fogueira Cultural (manifestação artística organizada por estudantes da UFPB) com a galera num coletivo. E nessa época surgiu uma ideia de fazer um grupo que continuasse tratando de poesia e o nome desse grupo seria Fores Baldias, só que isso não se formalizou e ficou no imaginário”.

Morando no mesmo bairro, Mateus conhecia também Emmanuel, e apesar da diferença de idade (Mateus tem 27 e Emmanuel, 22), o primeiro frequentava a casa do segundo para ouvir histórias de seu pai. Emmanuel, por sua vez, era amigo de Mikael, que não conhecia os outros rapazes. Os dois começaram cedo na música: Emmanuel no acordeão, aos seis anos, chegando a tocar na Orquestra Sinfônica Infantil da Paraíba; Mikael no violão, apesar de, no início, fugir das aulas de música para jogar bola. Ambos terminaram por se dedicar à percussão. Amigos chegados, entraram na Flores Baldias com a saída de Zé Silva. Jordão, natural de Itaporanga, município que fica há cerca de 400 km de João Pessoa é o único cuja infância não está ligada ao bairro do Castelo Branco. No entanto conheceu os rapazes na universidade, por intermédio do irmão de Mateus, com o qual fazia o mesmo curso.

… aos frutos

Uma mistura de rock com raízes nordestinas. Imagem: Macalango

Após o resgate do nome idealizado por Mateus, a Flores Baldias começou a desabrochar, ainda com Zé Silva na formação. Em pouco tempo, a banda conseguiu recursos para produzir o primeiro EP, através do Fundo Municipal de Cultura em 2017. Com este auspício, preparava-se para dar os primeiros passos em direção a uma carreira, mas a vida guardava uma cartada impossível de prever: dois dias antes do primeiro show da banda, Jean Michel sofreu um acidente de trânsito que lhe comprometeu a visão e lhe jogou em uma longa espera de um ano por um transplante de córneas. Para Jean, no entanto, o infortúnio não comprometeu sua relação com a música: “Quando eu estava com o ombro debilitado alguns amigos trouxeram outros instrumentos lá pra casa pra poder aprender, mas sempre estou escutando música. Se eu não tivesse tocando, estava escutando alguma coisa”.

Nesse entreato, Zé Silva saiu da banda, espaço que foi ocupado por Emmanuel e Mikael. A adição de dois percussionistas veio da necessidade que a banda sentiu em reforçar os traços nordestinos presentes em sua música, com marcante influência do forró, do baião, do maracatu, do coco, estilos onde o trabalho percussivo tem uma importância vital. A alfaia, o atabaque, a zabumba, o triângulo fazem um contraponto harmonioso à guitarra distorcida de Jordão, cuja influência do metal consona muito bem, entre riffs e solos, com toda a melodia da viola dos cancioneiros. A banda conseguiu encontrar um ponto de equilíbrio entre o metal, o batuque e a melodia.

Para vencer o concreto, uma flor não usa de força, mas persistência, para crescer abrindo espaço entre a massa dura. […] Cada flor é uma vida; cada vida, um ato de resistência.

Havia pouco material da banda na internet — ao menos na época em que essa entrevista foi feita — para que eu pudesse estudar melhor o som. Dessa forma, o show que se sucedeu logo após a conversa foi uma grata surpresa. Certas bandas têm como forte a gravação e produção de forma que ao vivo perdem muito de sua força, enquanto outras são exatamente o contrário: seu som se revela na apresentação. O segundo caso talvez seja o da Flores Baldias. A presença de três vocalistas (Jean Michel, Mateus e Jordão), adicionados das batucadas lembram muito a dinâmica de uma roda de coco ou maracatu, estilos cuja real força se revela na pulsação das batidas. Essa mistura da guitarra com a percussão já foi experimentada por bandas como Nação Zumbi, Cordel do Fogo Encantado e no Mestre Ambrósio, de Siba, e seus outros projetos — e dá muito certo. No show, a Flores apresentou composições suas — que vão do forró, passando por ritmos caribenhos, como a salsa — e covers de bandas locais, que tem muito a ver com o estilo da banda, como Jaguaribe Carne, Cabruêra e Chico César.

Para vencer o concreto, uma flor não usa de força, mas persistência, para crescer abrindo espaço entre a massa dura. Logo que despontam através da rachadura as primeiras pétalas ainda fechadas, essa vitória se revela apenas o começo, tendo a pequena flor ainda de resistir às intempéries do tempo e dos homens. Cada flor é uma vida; cada vida, um ato de resistência.

Imagem: Macalango

A banda gravou neste ano, após a recuperação de Jean Michel, o EP Quebrando o Concreto no Estúdio Peixe Boi, no bairro dos Bancários, com produção da Parahybólica. O disco é esperado para novembro ou dezembro, dizem os rapazes. Como a flor no poema de Drummond de Andrade, a Flores Baldias tenta rachar todo o tédio com música, dança, cultura, e achar seu espaço na cena paraibana que floresce. “Eu acho que o cenário está vivendo um momento de efervescência interessante, e a gente está também muito empolgado com o nosso som, de ter passado no edital e ter sido chamado pelo Cambada após apenas duas apresentações. A gente está instigado, né? Querendo devorar o mundo”.

Para vencer o concreto, uma flor não usa de força, mas persistência, para crescer abrindo espaço entre a massa dura. Logo que despontam através da rachadura as primeiras pétalas ainda fechadas, essa vitória se revela apenas o começo, tendo a pequena flor ainda de resistir às intempéries do tempo e dos homens. Cada flor é uma vida; cada vida, um ato de resistência.

Por outro lado uma flor é essencialmente um órgão reprodutor, cuja finalidade é produzir sementes que irão passar em frente o DNA daquela planta. Com bandas é bem parecido. Se a banda sobreviver tempo suficiente, poderá deixar suas sementes, que por sua vez terão de lutar crescer e quebrar o concreto. Ainda no início, a Flores Baldias segue resistindo, nutrindo-se do solo fértil alimentado pelas bandas que vieram e deixando seu legado para as que virão.

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Jhonattan
Hipercubo

Amante de música e escritor; jornalista nas horas vagas