Apesar do crescimento, povos indígenas do RN ainda lutam por demarcação dos seus territórios

HiperLAB UERN
Agência HiperLAB de Reportagem
16 min read5 days ago

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Por Diêgo Cabó, Carlos Henrique e Louise Pinheiro — Da Agência HiperLAB/UERN

Dados do último censo apontam que a população indígena mais do que quadruplicou no Rio Grande do Norte. Território potiguar é o único do Brasil que ainda não possuí demarcação de terras indígenas.

O Brasil dos números frequentemente reflete um universo paralelo. Nesse cenário, Tapuias, Tabajaras, Paiacus, Katus e muitos outros são omitidos por Silvas, Oliveiras, Nogueiras e Souzas. Os primeiros não repercutem nas estatísticas, não aparecem na mídia e frequentemente têm suas vozes silenciadas. Vivem à margem do poder público e são obrigados a sobreviver sem seus direitos mais elementares. Eles eram “invisíveis”, mas não inexistentes. Foi o que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrou ao apresentar, “da noite para o dia’’, mais de 10 mil indígenas vivendo em território potiguar. Alguns podem chamar de invasão, mas eles estavam lá o tempo todo, antes mesmo de nossa existência.

De acordo com o último censo do IBGE, divulgado em 2023, o Brasil possui 1.693.535 indígenas. O número representa um crescimento de 88,12% em relação ao censo de 2010. O Rio Grande do Norte foi o estado brasileiro que registrou o maior aumento nesse número, saindo de 2.597 em 2010 para 11.725 indígenas em 2022, o que representa um salto de mais de 350% em 12 anos. Segundo Marta Nunes, responsável pelo projeto de Povos e Comunidades Tradicionais do IBGE, esse crescimento se deve à mudança de metodologia adotada pelo instituto

Para Valdeci do Santos Júnior, professor do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), esse crescimento se deu devido à valorização da cultura indígena nos últimos anos.

“Até 1970, os censos do IBGE afirmavam que não existia nenhum indígena no território potiguar. Somente a partir dos anos 2000 é que essa população começou a surgir em dados oficiais’’, relatou.

Professor Valdeci do Santos, da UERN, destaca a resistência dos povos indígenas do Rio Grande do Norte

Segundo ele, o estigma presente na sociedade da época impedia a autodeterminação de toda uma cultura originária existente no estado. Conforme o professor, o crescimento de mais de 350% em relação ao censo de 2010 representa um marco importante de valorização da cultura indígena, simbolizando a ideia de que ‘‘vocês não conseguiram nos exterminar, nós estamos aqui!’’, afirmou.

Para Eliane Anselmo, antropóloga, coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da UERN e coordenadora do Mapeamento das Comunidades Tradicionais do RN, realizado pela Secretaria de Estado das Mulheres, da Juventude, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (SEMJIDH), o processo de retomada do reconhecimento das origens, tradições e cultura indígena no Rio Grande do Norte teve início no século passado e se intensificou a partir dos anos 2000, resultando nos números apresentados pelo IBGE no último censo.

Professora Eliane Anselmo, da UERN, desenvolve pesquisas sobre a presença indígena no Rio Grande do Norte

Conforme pesquisa de campo desenvolvido por Eliane Anselmo, o território potiguar possui 23 comunidades indígenas:

Caboclos de Assú (Assú), Warao (Mossoró), Comunidade Açucena (João Câmara), Comunidade Amarelão (João Câmara), Santa Terezinha (João Câmara), Serrote de São Bento (João Câmara), Comunidade Cachoeira (Jardim de Angicos), Comunidade Marajó (João Câmara), Comunidade Lagoa do Tapará (Macaíba/São Gonçalo), Comunidade Ladeira Grande (Macaíba/São Gonçalo), Comunidade Catu dos Eleotérios (Goianinha/Canguaretama), Comunidade Sagi Jacu (Baía Formoso), Comunidade Sagi Trabanda (Baía Formosa), Comunidade Ponta do Mato (Ceara-Mirim), Comunidade Aningas (Ceara-Mirim), Comunidade Lagoa Grande (Ceara-Mirim), Warao (Natal), Mendonça (Natal), Tapuia Paiacu (Apodi), Comunidade Tabua (São Miguel do Gostoso), Rio dos Índios (Ceara-Mirim), Banguê (Assú), Lagoa Grande (Macaíba).

Fonte: IBGE
Em Apodi está instalado o primeiro museu indígena do estado, o Museu do Índio Luiza Cantofa

Um estado sem terras demarcadas

Apesar do crescimento registrado nos últimos anos, o estado do Rio Grande do Norte é o único que ainda não possui territórios demarcados no Brasil. Para Eliane Anselmo, essa dificuldade de demarcação se dá por diversos fatores, entre ele o histórico. Além disso, Anselmo acredita que parte da literatura contribuiu para esse processo de invisibilidade. Para ela, a sociedade ainda possui uma mentalidade colonialista sobre o que é ser indígena.

“O Nordeste de modo geral tem essa dificuldade histórica no reconhecimento dos povos indígenas. Ela foi a primeira região do nosso país a ser invadida e a sofrer esse processo de assimilação […] um processo de assimilação muito maior do que os passados pelos indígenas da região Norte’’.

No Brasil, o processo de demarcação de terras é regido pelo Decreto nº 1775/96. Lançado há 28 anos, a medida administrativa visa identificar e delimitar os territórios historicamente ocupados pelas comunidades indígenas. De acordo com o Decreto, a regularização fundiária dessas áreas envolve as seguintes etapas, sob a responsabilidade do Poder Executivo:

i) Estudos de identificação e delimitação, a cargo da Funai;

ii) Contraditório administrativo;

iii) Declaração dos limites, a cargo do Ministro da Justiça;

iv) Demarcação física, a cargo da Funai;

v) Levantamento fundiário de avaliação de benfeitorias implementadas pelos ocupantes não-índios, a cargo da Funai, realizado em conjunto com o cadastro dos ocupantes não-índios, a cargo do Incra;

vi) Homologação da demarcação, a cargo da Presidência da República;

vii) Retirada de ocupantes não-índios, com pagamento de benfeitorias consideradas de boa-fé, a cargo da Funai, e reassentamento dos ocupantes não-índios que atendem ao perfil da reforma, a cargo do Incra;

viii) Registro das terras indígenas na Secretaria de Patrimônio da União, a cargo da Funai; e

ix) Interdição de áreas para a proteção de povos indígenas isolados, a cargo da Funai.

A Secretaria de Estado das Mulheres, da Juventude, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (SEMJIDH) propôs uma alternativa para esse processo por meio de uma atualização da Lei estadual nº 9.104 de 2008, que trata da demarcação de terras quilombolas no Rio Grande do Norte. Eliane Anselmo considera essa alternativa é desafiadora, mas reconhece que é um caminho viável, já que o próprio Estado pode colaborar na demarcação de seu território.

“’Se o próprio estado realiza a demarcação, seria um processo mais rápido do que se fosse conduzido a nível federal’’.

Na prática, todo esse trâmite burocrático pode demorar anos, como mostra o caso da reserva indígena Lagoa do Tapará, localizada entre os municípios de Macaíba e São Gonçalo do Amarante. Segundo dados fornecidos pela Fundação Nacional do Índio (Funai), os indígenas da região de Tapará expressaram publicamente a necessidade de demarcação de seu território em 2013. No entanto, após 11 anos, o processo ainda não foi concluído.

Essa situação levou o Ministério Público Federal a protocolar, em abril de 2024, uma Ação Civil Pública com tutela de urgência contra a União e a Funai, cobrando a finalização do processo de demarcação desse território. Conforme o pedido do Ministério Público, a falta de demarcação por parte do órgão responsável traz prejuízos diretos à efetivação dos direitos dessa comunidade. A Funai declarou nos autos do processo que tal morosidade decorre especialmente por conta da ausência de pessoal e de recursos financeiros, além da alta demanda enfrentada pelo órgão.

A Fundação alegou ainda a inexistência de falha de atuação, reforçando que ‘’os desafios para a conclusão da delimitação dos estudos da Comunidade Indígena Tapará, no Rio Grande do Norte, são complexos e devem ser cotejados com o conjunto de urgências e prioridades que demandam a atuação consistente da FUNAI em âmbito nacional’’. Por fim, declarou que não cabe ao Poder Judiciário interferir na implementação de políticas públicas complexas, visto que essa seria uma competência ‘do poder discricionário da Administração’’.

No âmbito do processo, a 5ª Vara Federal do Rio Grande do Norte rejeitou, em 29 de abril, o pedido de tutela de urgência. Alegou-se que não há risco aos direitos da comunidade indígena e que, devido à ampla demanda de reivindicações fundiárias em todo o país, o caso não caracteriza omissão por parte do órgão responsável. Decisões semelhantes também foram tomadas em relação à delimitação da Terra Indígena Potiguara dos Eleotérios do Catu, localizada nos municípios de Canguaretama e Goianinha, e da Terra Indígena dos Potiguaras (Amarelão) no município de João Câmara.

Luiz Katu e Lúcia Paiacu são lideranças indígenas no Rio Grande do Norte.

De acordo com Eliane Anselmo, a Funai foi extremamente sucateada, interferindo diretamente no trabalho da instituição com os povos indígenas. ‘’É uma equipe muito pequena para dar conta de um território imenso como o da região Nordeste’’, afirmou. Por outro lado, ela acredita que com a mudança de governo, talvez a situação comece a mudar.

A professora também afirma que um dos maiores desafios ocorre no enfrentamento com as grandes empresas açucareiras e as redes de hotelaria da região, que aos poucos vêm tomando os territórios originalmente pertencentes aos povos indígenas.

“É muito difícil quando se luta contra os poderosos, especialmente quando o dinheiro está em jogo. A justiça no Brasil, como todos sabemos, é frequentemente lenta e, às vezes, falha’’.

Para Luiz Katu, cacique da Terra Indígena Potiguara dos Eleotérios do Catu, a demarcação de terras no Rio Grande do Norte tornou-se uma questão delicada.

“Os coronéis, as oligarquias, o agronegócio e esse patriarcado que rege essa política de estado, além de dominarem as grandes indústrias, acabam por influenciar significativamente nessas decisões’’.

Lagoa do Apodi, local histórico para a cultura do povo Paiacu Tabajara. Hoje, encontra-se poluída. Foto: Louíse Pinheiro

Memória como resistência

Enquanto os processos de demarcação enfrentam extensas filas burocráticas, Lucia Paiacu Tabajara resiste por meio da preservação da memória de seu povo milenar. Fundadora do Museu do Índio Luíza Cantofa, o primeiro museu indígena do Rio Grande do Norte, ela carrega consigo a missão de perpetuar a cultura Paiacu Tabajara.

Situado na antiga casa de máquinas, e que por muitos anos encontrou-se abandonado, o local que abriga o museu às margens da Lagoa do Apodi foi finalmente inaugurado em 26 de julho de 2023, após inúmeras disputas entre o município de Apodi e o governo do estado sobre a propriedade do imóvel. Para Lucia, que inicialmente organizou o museu em sua própria residência, estar ao lado da lagoa que faz parte da história do seu povo representa uma conquista muito grande. ‘’A gente sente no corpo, na alma, porque foi através dela que tudo começou’’.

Lucia Paiacu Tabajara aos 63 anos, segue defendendo a memória do seu povo milenar. Foto: Louise Pinheiro

Segundo a líder indígena, os ancestrais Paiacus viveram tranquilamente na região até meados do ano de 1688. No entanto, com a chegada dos Irmãos Nogueira, portugueses em busca de áreas para a criação de gado, surgiram os primeiros conflitos. Inicialmente, a presença dos colonizadores foi tolerada, mas a poluição da lagoa, causada pela criação de gado, levou o Cacique Itaú a declarar guerra.

“Foi aí que toda a confusão começou’’. Por duas vezes, os Paiacus expulsaram os irmãos Nogueira da região, mas eles retornaram. E então, eles causaram toda essa bagunça que resultou na atual condição da Mãe Lagoa: um esgoto parado e completamente contaminado’’, relata.

Para ela, a presença do museu representa uma forma de reparação com seus antepassados e uma evidência tangível de que sua ancestralidade é real. Ela compartilha, ‘‘Me sentia muito pesada, como se eles (os antepassados) estivessem gritando […] hoje, por estar aqui, me sinto bem, leve tanto fisicamente quanto espiritualmente’’.

Para o professor Valdeci do Santos Júnior, a localização do Museu do Índio Luiza Cantofa cumpre o papel de ‘’lugar de memória’’, conceito desenvolvido pelo historiador francês Pierre Nora. Para ele, o lugar de memória é aquele que possui significância para a sociedade em um contexto local.

“Se aquele local é tido como espaço indígena no passado, e os grupos indígenas do presente também assumem esse local como seu espaço, nada melhor do que um museu ali, na beira da lagoa, para dizer: ‘Olha, aqui é nosso espaço, onde guardamos nossas memórias’. Se um edifício como este estivesse no centro da cidade, talvez não tivesse a mesma importância que ali, onde originalmente os grupos indígenas ocupavam’’, afirma o pesquisador.

Apesar da conquista, Lúcia sabe que a presença do museu incomoda. ‘’Através do museu, é que a gente vê o desenvolvimento de uma cidade, de um estado, de um país. Então, isso incomoda. Incomoda o município, incomoda o falso estado democrático de direito. Por isso, eles não se interessam em colaborar’’, relata. Registrada como Lúcia Maria Tavares, em 2019 ela iniciou a batalha pelo reconhecimento de seu verdadeiro nome, tornando-se a primeira mulher do Rio Grande do Norte a receber o direito de inserir o nome indígena em seu registro.

‘‘O juiz perguntou para mim: ‘Lúcia, por que você quer mudar seu nome?’ Eu respondi: ‘Não quero mudar meu nome, quero meu nome de volta. Eu sou da família Paiacu Tabajara’’, disse.

Lucia Paiacu Tabajara teve seu nome reconhecido em 2019. Foto: Louise Pinheiro

Resistência define a vida de Lucia. E a luta pela preservação da cultura Paiacu Tabajara tornou-se seu principal objetivo de vida. ‘’Eu vou morrer defendendo. Honestamente, já apareceu muitas pedras, mas eu vou jogando de lado porque é um trabalho sem fim’’, declara. Aos 63 anos, ela deseja que as futuras gerações continuem o trabalho desenvolvido em prol da comunidade. ‘’Eu espero que não deixem acabar isso aqui, porque a minha vida, meu sangue, minha saúde, tudo está aqui’’.

Confira o documentário “Pelo silêncio e pela injustiça”, de Evelyn Freitas

Fotografias: Louise Pinheiro

Katu — Articulação e defesa como forma de preservação

Luiz Katu lidera a luta na comunidade indígena Potiguara Katu. Foto: Ascom/Prefeitura de Goianinha

Luiz Katu tornou-se um exemplo de luta em defesa da natureza e da permanência histórica de seu povo. Cacique da comunidade indígena Potiguara Katu, situada na região dos municípios de Canguaretama e Goianinha, ele foi responsável pela criação de uma das primeiras escolas indígenas do Rio Grande do Norte, visando resistir ao apagamento da cultura e da memória de todo o seu povo.

Para ele, a articulação entre as comunidades indígenas potiguares, indigenistas e voluntários ligados ao movimento indígena foi essencial no início da trajetória de luta política dessas comunidades. ‘’Esses parceiros foram fundamentais, inclusive, para viabilizar que chegássemos a alguns espaços aos quais antes não tínhamos condições de acessar. Sair da aldeia e chegar à cidade grande’’, relata Katu.

“Foram cinco anos de articulação muito intensa para conseguirmos uma audiência pública’’, relata Katu ao recordar da histórica sessão realizada na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte em 15 de junho de 2005.

“Foi um marco na história de autoafirmação, reafirmação e reivindicação. Naquela ocasião, pela primeira vez, dirigi-me ao público fora do meu território, dirigindo-me ao Estado brasileiro e a toda a sociedade brasileira, defendendo a existência do meu povo. Ainda não era o Cacique Luiz Katu, mas fiz meu discurso porque me indignava com o que era dito sobre nós na Assembleia’’

Luiz Katu em evento Abril Indígena na UERN. Foto: Marcos de Jesus

Na ideia de Brasil apresentado nas leis e tratados, ser cidadão significa ter a aptidão de exercer direitos civis e políticos. No entanto, no Brasil real, ter uma calça e uma camisa pode muitas vezes definir até onde você pode chegar na defesa de quem se é. Passados 19 anos, Katu ainda carrega a dor de ver seus parentes barrados na entrada da Assembleia Legislativa por não possuírem trajes sociais. ‘’Disseram que eles não podiam entrar lá daquele jeito, vetaram a nossa entrada’’. Para ele, a importância do reconhecimento não se limita à necessidade de aceitação externa; como ele afirma, ‘’nós nos reconhecemos’’. No entanto, para buscar reparação e acesso a políticas públicas, é necessário esse reconhecimento por parte do Estado.

A Festa da Batata é um momento tradicional do povo Katu. Foto: Ascom/Prefeitura de Goianinha

A busca pela demarcação

Iniciado em 2005, o processo de demarcação do território Katu segue a passos lentos. Diante da omissão do órgão responsável pela demarcação, a alternativa encontrada foi buscar o Ministério Público. Mesmo com as recomendações apresentadas pelo MP, a judicialização do processo se tornou um caminho inevitável. Segundo o Cacique, as comunidades Mendonças do Amarelão e, mais recentemente, o povo Tapuia, localizado entre São Gonçalo e Macaíba, também recorreram à judicialização do procedimento.

De acordo com Luiz Katu, a Funai alega possuir um grande número de solicitações e que existem prioridades. Para ele, a situação é delicada: ‘’Não queremos retirar a prioridade de nenhum território indígena, pois todos têm igual importância. Na nossa visão, todas as terras indígenas no Brasil deveriam ser demarcadas urgentemente, conforme prevê a nossa Constituição’’. Por outro lado, a legislação brasileira tem priorizado os procedimentos de demarcação em terras indígenas que se encontram em risco ou conflitos.

Após denúncias de desmatamento em área de Mata Atlântica, o líder indígena tem enfrentado ameaças e até emboscadas de pessoas ligadas à exploração de madeira e ao agronegócio. Segundo Katu, a retirada ilegal de madeiras como Pau-ferro, Ipê, Maçaranduba e Sucupira vem ocorrendo há décadas. ‘’Em janeiro de 2024, houve uma derrubada sem precedentes na Mata Atlântica. Mais de dez campos de futebol foram devastados. Conseguimos reunir provas e apresentá-las ao Ministério Público, à Polícia Federal e ao Idema’’, relata.

A denúncia resultou no indiciamento de dois canavieiros. Segundo o Cacique, a partir daí, o território indígena Katu passou a ser tratado como prioridade. ‘’Existe um critério de urgência para que o GT Katu seja criado até o final deste ano. Veja bem, essa urgência só é considerada quando estamos ameaçados de morte ou passamos por situações semelhantes’’, afirmou. Apesar da criação do GT, o processo de demarcação ainda envolve inúmeras outras etapas até ser homologado pelo Presidente da República.

Marco Temporal: uma pedra no caminho

No contexto dessa luta, as comunidades indígenas passaram a enfrentar novos desafios burocráticos devido à proposta de mudança na política de demarcação de terras no Brasil. Conhecida como marco temporal, a tese sustenta que os povos indígenas só têm direito a reivindicar uma terra se estivessem nela antes da promulgação da Constituição de 1988.

Criada em 2007 para justificar a demarcação da Terra Raposa Serra do Sol, Luiz Katu afirma que agora a tese está sendo usada para fins contrários. ‘’É um crime contra a humanidade, contra a existência dos povos originários neste país […] é uma forma muito macabra de extinguir um povo e negar a ele o direito de reivindicar o que está previsto na lei’’, afirma.

Contestado por decisões anteriores do STF e já declarado inconstitucional no ano de 2023, o tema ressurgiu a partir da Proposta de Emenda à Constituição 48/2023. Segundo Katu, caso seja aprovada, grande parte dos territórios indígenas que estão sendo reivindicados no Rio Grande do Norte ficaria inviabilizada de ser demarcada. ‘’Nosso povo foi expulso de seus locais de origem. Somente depois se reorganizaram e retornaram ao seu território tradicionalmente ocupado. No entanto, eles irão alegar que a reivindicação desse território está ocorrendo após 1988’’, disse a liderança. Outro problema elencado pelo Cacique é a reavaliação de territórios já demarcados.

Com Sônia Guajajara, o Brasil passou a ter, pela primeira vez, um ministério dedicado aos povos indígenas. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Segundo Eliane Anselmo, a proposta da PEC 48/2023 prejudicaria principalmente os povos indígenas da Região Nordeste, especialmente as comunidades do Rio Grande do Norte. ‘’As comunidades indígenas iniciaram seus processos de reconhecimento principalmente na última década. Se considerarmos a tese do marco temporal, ninguém aqui teria direito à demarcação de terra’’, afirmou.

De acordo com Tayse Campos, liderança indígena, mestre em Antropologia Social e Coordenadora de Mulheres da Microrregional da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), o principal desafio enfrentado pelos povos indígenas no Brasil são os ataques de natureza política. ‘’Não há cumprimento efetivo da Constituição de 1988. Quando o governo federal estabelece um longo trâmite, aliado à morosidade burocrática, e, ao mesmo tempo temos um Congresso Nacional disposto a mudar por meio de PEC a norma constitucional que garante a demarcação, nosso maior desafio se torna político’’, afirma.

Sob pressões e ameaças

O Cacique também defende a demarcação do território como forma de resguardar a Área de Proteção Ambiental Piquiri-Una. ‘’Hoje existem três grandes focos de desmatamento na área de mata nativa. Três que a gente já identificou de imediato, mas existem outros que estão fazendo na surdina’’, alerta.

A liderança lamenta a falta de recursos na defesa da APA. ‘’Não conseguimos mapear com precisão os mais de 42.000 hectares de reserva. Não é tarefa fácil. São indígenas andando a pé ou, às vezes, conseguindo uma moto velha, mas sem combustível. Torna-se quase impossível’’, lamenta. ‘’Quem nos ajuda a mapear e acompanhar algumas dessas ações são os coletores de mangaba, os raizeiros e os artesãos que vão à floresta pegar matéria-prima. Eles também são guardiões e contribuem nesse monitoramento’’, complementa.

Para Eliana, a presença dos povos indígenas nesses territórios é fundamental para a preservação tanto da fauna quanto da flora da região. Segundo a professora, é evidente o contraste entre as áreas onde se encontram os canaviais da indústria açucareira e aquelas habitadas pela comunidade indígena. ‘’Não há como egar que uma das principais características dos territórios indígenas é a preservação do meio ambiente’’, afirma

“Não esperem que um Cacique, uma Cacique indígena do Rio Grande, seja assassinado e vire notícia nacional e internacional para que se tenha uma terra indígena demarcada no estado’’

O apelo surge diante as inúmeras ameaças de morte que a liderança vem recebendo nos últimos tempos. Katu acredita que as denúncias contra a destruição da Área de Proteção Ambiental Piquiri-Una resultaram nas ameaças. Diante a importância da preservação, ele diz não se intimidar. ‘’Se não fosse assim, a área de proteção ambiental já teria desaparecido’’, afirma.

“Eu sei que posso não comemorar. Entendo que corro um risco muito sério ao não celebrar essa demarcação junto com meus parentes. Existe uma máxima compartilhada pelos povos indígenas que diz: ‘a gente não morre, a gente se torna a própria mãe terra’”

Como consequência das ameaças, em maio de 2024, o Ministério Público Federal solicitou ao Comando da Polícia Militar do Rio Grande do Norte que adote medidas de segurança para proteger o cacique.

Reconhecimento de uma luta

Apesar das ameaças, a luta de Katu em defesa do movimento indígena potiguar e da defesa do meio ambiente, resultou em uma rede de apoio nacional, com a emissão de notas de solidariedade de diversas entidades.

No último dia 9 de julho, o líder foi agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. ‘’Recebi a notícia com muita alegria. Ela chegou em um momento em que não tínhamos muito o que comemorar, pois estávamos aqui, atentos à nossa defesa e criando estratégias para continuarmos vivos. Isso me trouxe muita alegria’’, disse.

A homenagem representa um marco histórico para o movimento indígena no estado. É um passo concreto no processo de construção de uma sociedade mais justa e inclusiva, onde diferentes saberes se entrelaçam e se fortalecem mutuamente. A voz indígena, por tanto tempo silenciada, agora ecoa com força nos corredores da academia, inspirando novas gerações a lutarem por um futuro mais promissor para todos.

Confira o filme “Antes do livro, o cocar” de Rodrigo Sena

Existe uma máxima compartilhada pelos povos indígenas que diz: ‘’a gente não morre, a gente se torna a própria mãe terra’’. Foto: Marcos de Jesus

Diêgo Cabó, Carlos Henrique e Louise Pinheiro são estudantes do 2º período do curso de Jornalismo da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Reportagem produzida como atividade da disciplina Produção de Texto Jornalístico I. Orientação: Professor Esdras Marchezan

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