Gaymada e os dissidentes da bala no País de Mossoró

HiperLAB UERN
Agência HiperLAB de Reportagem
7 min readMay 2, 2022

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Leonardo Matoso — Da Agência HiperLAB/UERN

Não pertencer à normatividade do sistema sexo-gênero é como estar num front de guerra, é por vezes barulhento e incapacitante, mas também silencioso e mortal. Esse confronto coloca uma bala no coração das crianças e adolescentes que brincam nas ruas, sem se importar se são filhos de reacionários, se pertencem a esquerda ou direita, se são agnósticos ou católicos, ou se fazem parte de doutrinas que escapam da normatividade hegemônica. Sua pontaria não falha nos colégios de classe alta, nem nas escolas públicas. Os guerrilheiros a favor do sistema sexo-gênero, atacam com igual perícia nas ruas do Rio Grande do Norte, nas vielas da capital ou nos subúrbios de Mossoró, mesmo está tendo sido a cidade que afugentou um grupo de cangaceiros, com chuvas de balas.

Ser um dissidente desse sistema é como ser um alvo fácil, é como um soldado cansado que saí pelo front segurando uma bandeira branca, pedindo paz e cessar fogo. É as vezes alguém cego como o amor, generoso como o riso, tolerante e carinhoso como um cão. Os guerrilheiros até cessam fogo, mas apenas neste alvo. Quando cansam de disparar nas crianças, atiram rajadas de balas perdidas que vão se alojar no coração de uma mulher que estava caminhando ou de dois rapazes que se abraçavam… a última bala quase matou uma travesti de 35 anos. O caso foi em 2019 e ela não morreu, mas ficou internada por duas semanas no hospital geral de Mossoró.

Nesse mesmo ano, um grupo de jovens que fugia das balas resolveu ocupar um espaço público na maior avenida da cidade. Um espaço destinado para família tradicional e para os atletas que iam aos domingos frequentar a Praça dos Esportes, na Avenida Rio Branco. Como uma forma de política reafirmatória dos espaços urbanos e buscando visibilidade, esses jovens criaram a GayMada, uma ressignificação esportiva da brincadeira “queimada”, que unia o lúdico com as performances ballroom dos anos 80 e 90 de Nova York. Era um grito pelo direito a contracultura hegemônica.

A queimada não é um esporte novo, surgiu na Idade Média, no norte da Europa Meridional, no reino da Papônia e ao longo dos tempos, foi assumindo vários nomes. Conhecido por Baleada, Barra-Bola, Caçador, Cemitério, Mata-Mata e tanto outros, possuem sempre as mesmas regras: os times selecionam quem ficará atrás da linha de fundo do campo adversário.

Esse jogador é encarregado de pegar as bolas que ultrapassam a linha e queimar os adversários por trás. O jogador escolhido também servirá como reserva e pode entrar no jogo enquanto houver equipe. Com um apito, um dos jogadores lança a bola para acertar um adversário. Acertado, ou queimado, o jogador deve se juntar aos outros, da mesma equipe, posicionados atrás da linha de fundo. O objetivo é fazer o maior número possível de queimadas em cada campo. O grupo vencedor será aquele que fizer o maior número de queimadas dentro de um tempo pré-estabelecido, ou então, aquele que queimar todos os jogadores adversários.

É incontestável a alusão que a queimada possui com os fronts de batalha. A divisão de campos, o acertar o alvo, invalidar o oponente. As crianças e adolescentes da bala, tentam sobreviver a guerra sexo-gênero, ressignificando o brincar. A regra da GayMada é a mesma da tradicional, o que muda é o perfil de quem participa.

O idealizador da atividade em Mossoró é Ubiratan Bezerra, de 24 anos e estudante do curso de Ciências Contábeis na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Para ele, o jogo é um grito de desconstrução. Nessa ressignificação, a comunidade LGBTQIAP+ jogava contra participantes héteros, numa quadra lotada e com torcida organizada. Para cada pontuação marcada, uma performance com danças, estilismos ou gritos de guerra eram expressos.

Nesse jogo, a maior fonte de emoção, segundo Ubiratan, eram as torcidas. As arquibancadas sempre lotadas conferiam à noite um estado de paz e conquistas, de apaziguamento dessa guerra.

“A quadra ficava lotada, tinha blogueiros, pessoas que iam gravar, divulgar, era muito bom. Quando a gente via a nossa volta, era lotado, a emoção tomava conta. Era um momento que sentíamos paz e igualdade”.

O fato é que a queimada fere bem menos que uma bala que trafega essa guerra. Ela queima o corpo e traz à tona a vivacidade, é um lembrete por viver e ocupar o terceiro Estado que mais mata ou violenta pessoas LGBTQIAP+, é um grito pela desconstrução de um binarismo que nem deveria mais está sendo discutido.

Segundo a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), um homossexual é morto a cada 28 horas no país e o Nordeste é a região mais perigosa.

É nesse perigo que Valentina Ambrósio, de 17 anos e estudante do ensino médio, corre ao fazer suas performances na quadra durante os jogos. Ela é uma espécie de ícone e diva da GayMada. Todos aplaudem e gritam quando ela acerta o oponente e faz suas danças glamourosas. Para ela, que se coloca como mulher trans, a GayMada é sua forma de divertimento e expressão, é um espaço que não habita o desrespeito e a violência. Mas que com a chegada da pandemia de COVID-19, esse espaço foi desfeito.

Como muitos jovens que sonham no país da bala, Valentina imagina-se um dia nas Olimpíadas. Ela é uma garota cheia de desejos que consegue manter os sonhos diante de todo sistema.

“Você consegue imaginar jogos de GayMada em Olimpíadas? Seria algo incrível. Temos pessoas com poder para fazer isso acontecer, mas muitas com pensamentos antiquados sobre nossa classe. Já vieram pessoas da mídia mossoroense com ideias de entrevistas, patrocínios e outras coisas que poderiam nos ajudar. Mas quando souberem que se tratava de pessoas LGBTQIAP+, cancelaram tudo. E isso é muito triste”.

O esporte como cultura valorizada já é difícil para heteronormatividade e quando existe valorização é recaído para o futebol, o esporte da virilidade e da afirmação do machismo. Agora imaginem os olheiros para a GayMada. Uma representação esportiva destoante da heteronormatividade e do nexo social, comandada por uma trans e um homem gay. É nesse ponto, que precisamos lembrar que a transexualidade é quem mais sofre efeitos da bala. O tiro costume ser no peito das crianças que se olham no espelho ou daquelas que contam os passos quando caminham, para não perder a postura masculina, caso contrário, são machucados. Para quem tem coragem de olhar a ferida de frente, a bala se transforma numa chave mestra que abre uma porta para mundos nunca vistos.

Caem todos os véus, a matriz se desfaz. Mas alguns dos que levam uma bala no peito resolvem viver como se não a tivessem dentro de si. Há quem tenha morrido por levar a bala. Outros compensam o peso da bala com grandes gestos donjuanescos ou de princesas. Há médicos e igrejas que prometem extirpar a bala. Eu tinha onze anos quando senti pela primeira vez o peso da bala. Senti que a carregava quando ouvi os garotos da rua chamar dois meninos de “viado” só porque eles estavam brincando de bonecas com suas irmãs. Na mesma hora, senti o peito queimar. Naquela noite, sem saber por que, imaginei pela primeira vez, contando para os meus pais que também gostava de brincar escondido, com as bonecas da minha irmã e que gostava da sensação que tinha ao abraçar meu melhor amigo. Eu nunca contei isso a eles, mas os dias que se seguiram foram os dias do medo, da vergonha.

Paul B. Preciado, ele diria e reafirmaria que não é difícil saber, por dedução estatística, conhecendo a boa pontaria dos nossos guerrilheiros, que haverá entre seus filhos algumas crianças que irão crescer com a bala no coração. Quando vejo as famílias das manifestações neoconservadoras avançarem com seus filhos, não posso deixar de pensar que entre essas crianças há algumas de cinco, dez, quem sabe doze anos que já carregam uma bala ardendo no peito.

Elas carregam cartazes que dizem “não toquem em nossos estereótipos de gênero”, “não aceitem o “kit gay” e as mamadeiras de piroca”, “amor, ordem e progresso”. Essas crianças carregam cartazes que alguém colocou em suas mãos e nem sabem a extensão dos seus significados, mas já sabem que não conseguirão estar à altura do estereótipo. Seus pais gritam que meninas lésbicas, meninos “bichas” e menines trans não podem frequentar a escola, mas essas crianças sabem que carregam a bala dentro de si. À noite, como acontecia quando eu era criança, vão para a cama com a vergonha de decepcionar os pais, talvez com medo de que eles as abandonem ou desejem sua morte. E sonham, como quando eu era criança, que fogem para um lugar no estrangeiro ou para um planeta distante, onde as crianças da bala podem viver.

Agora falo a vocês, pessoas da bala, pessoas que um dia frequentaram a GayMada e digo: a vida é maravilhosa, estamos esperando vocês, nós, os caídos, os amantes do peito perfurado. Vocês não estão sós e aguardamos vocês, para jogar mais uma vez.

Material de apoio

https://www.saibamais.jor.br/bia-beatriz-a-travesti-de-mossoro-internada-com-sinais-de-espancamento/

https://m.leiaja.com/noticias/2021/12/03/video-homem-pede-que-casal-gay-pare-de-expressar-afeto/

https://claudia.abril.com.br/noticias/garoto-suicidio-homofobia/

https://deolhonodiscurso.wordpress.com/2013/09/21/transexual-se-suicida-em-motel-de-mossoro-devido-ao-preconceito/

Reportagem produzida para a disciplina Jornalismo Esportivo, do curso de Jornalismo da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Orientação: Profª Drª Lígia Coeli.

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O HiperLAB UERN é o Laboratório de Narrativas Multimídia do curso de Jornalismo da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).