Maracatu, deuses e cultura

HiperLAB UERN
Agência HiperLAB de Reportagem
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Por Analice Sousa, Antônio Roberto e Hadiel Medeiros — Da Agência HiperLAB/UERN

Amistura de cores, plumas, pedrarias, adereços e artefatos brilhosos reluz na Vivenda de Santa Rita, terreiro tradicional do bairro Abolição V, em Mossoró, a segunda maior cidade do Rio Grande do Norte e considerada a capital da cultura do Oeste Potiguar. A arte, a potencialidade e os encantos que a cidade têm a oferecer alimentam uma gente que sonha acordada com a volta de algo que um dia já existiu: O carnaval.

Deusimar de Ogum é uma delas. Com 61 anos, natural de Santa Rita, no Maranhão, ele é a figura principal desta reportagem. Se mudou para Mossoró ainda na adolescência. Jardineiro e ajudante de astrólogo, foi se intelectualizando com as ciências ocultas, ainda no despertar e brilhantismo da juventude, como ele mesmo diz. Umbandista, ele relembra que aos 13 anos de idade uma “coisa” entrou em sua matéria e descobriu, através de uma ida a uma Mãe de Santo chamada de Maria José Teixeira, ser espírita. E hoje, agradece a Deus e a São Jorge por isto.

Enquanto preparava o terreiro para a gira do dia seguinte, ele conversou com a nossa equipe. Com um sorriso que brilha, ele atende às pessoas que, todos os dias, chegam à sua casa.

Cultura e religiosidade se misturam por todos os cantos da casa de Deusimar. Fotos: Analice Sousa

De raça cigana nos costumes, nos modos de ser e como um menino brincante, descobriu no maracatu uma das suas maiores paixões. Sair vestido de maracatu na Avenida Marechal Hermes em pleno carnaval mossoroense era sua alegria. Sua grande entrada nos festejos foi quando Cristina Paulista — a Cristina dos Pimpões — integrante de um dos terreiros de umbanda de Mossoró o convidou para acompanhá-la nessa paixão:

“Deusimar, bora entrar no carnaval mais eu?”, diz ele ao relembrar com carinho de Dona Cristina seguida de uma risada espalhafatosa e a memória afetiva que mudou a sua história daquele momento em diante.

Ruge o instrumento do tempo e retrocedemos aos anos 80 quando João Newton da Escóssia era prefeito de Mossoró e dona Cristina propôs que montassem o Maracatu na cidade. Deusimar, então macumbeiro, montou o Maracatu Baque Virado, em Mossoró. Esse é o Maracatu que Deusimar carrega há mais de 40 anos.

“Só pode botar o Maracatu Nação Baque Virado na avenida se for mestre de terreiro que trabalhe com orixás, pois os orixás não dão a permissão para que qualquer pessoa exerça esse tipo de Maracatu. Se isso acontecer, eu, Deusimar, saio de dentro do terreiro virado no satanás, vou disputar com você, e é claro que eu não vou deixar você ganhar, meu querido. Nós somos ciganos, do baralho, então seja do culto afro-brasileiro, que seja da nação, porque você vai entregar o seu Maracatu a uma entidade do seu coração”, explica.

Maracatu é uma manifestação cultural que surgiu no século XVIII, e como num grande caldeirão cultural, emerge sob os nossos olhos a mistura da música, da dança e da história. Essa tradição tem o objetivo de manter viva a memória identitária da população brasileira, na maior parte a negra. A reverência aos antepassados é ponto crucial nos festejos de uma cultura tão rica. E quando qualquer um entra no meio da roda, se entrelaça nos costumes, descobre uma paixão indecifrável, e o espírito vira vulcão em erupção.

Deusimar ressalta que quando se fantasia da cabeça aos pés com os trajes que pesam mais de 40 kg de pedrarias e mais 8 kg de plumas, não responde pelos seus atos. O corpo transcende, é ocupado por algo que não é da sua natureza. Ele dá a permissão. Com a mediunidade aflorada e acompanhado de seus guias, suporta o peso em seus ombros calejados, sem deixar de mão uma dose de sua aguardente preferida.

Ao sentir o álcool ardendo na garganta e tomando conta do corpo, sai na avenida de forma magistral e faz brilhar o cortejo que é dividido por alas. Não é coisa de feitiçaria, nem tampouco diabólica. Cada um é cada um e tudo isto faz parte do processo para mostrar o trabalho que o seu orixá o mandou fazer, nas quais são as fantasias luxuosas que vão se destacar na frente do Maracatu.

Dentro de todo este costume, a arte se entrelaça às histórias dessa gente ancestral, na qual enfiaram nesta terra de coragem, um amor escancarado que carregam no peito e na alma através dos séculos. É este movimento que traz na essência o cheiro da cultura africana, indígena e portuguesa. O Maracatu não é um bloco de carnaval, nem nada do tipo, é o cortejo real da Nação Afro-Brasileira. Por ocasião, o cortejo desfila no carnaval. Mas o desfile oficial do Maracatu é na Igreja do Rosário, em Recife, no dia 13 de maio, em homenagem ao Afro-Brasileiro Raça Negra.

Deusimar percorreu algumas cidades do Nordeste mostrando o seu balanço e gingado dentro das fantasias luxuosas que produz. E a paixão pelo molejo gerado pelo batuque dos tambores que o sustenta ao carregar as fantasias, algumas vezes até mais pesadas que o próprio corpo. São diversos passos que englobam esse cortejo. E como num grande ritual místico, ele fala que é preciso tomar chá de canela e gengibre, para dar axé na voz e alargar o sorriso, recebendo palmas de todos que assistem o desfile. Toda essa força é hereditária, da sua avó, da sua mãe, e de todo conhecimento que dona Cristina o passou.

Congá dos pretos velhos zelado pelo babalorixá Deusimar de Ogum

Todo ano o Maracatu tem uma fantasia nova, e o tema, sai da calunga de Maria Padilha, dona do Maracatu. Para a montagem das fantasias, leva em torno de um ano e, após o desfile, a fantasia é desmontada e guardada. Todo o acervo desses longos anos de tradição estão na casa de Deusimar. São troféus. Páginas do livro da sua história.

Troféus de carnavais passados se amontoam na sala da casa

O respeito é o principal elemento e raiz dos festejos do Maracatu de Deusimar. “Respeito é bom e conserva os dentes”, diz. Ao passar pelas ruas, quem não quer o ver, que feche os olhos. Ele vai estar lá, todo se requebrando. Isso não o incomoda. No ano do nascimento do seu Maracatu, na Avenida Marechal Hermes havia uma igreja evangélica. Quando o cortejo passava em frente à igreja, parava de tocar os tambores até que estivesse longe o suficiente para não atrapalhar a adoração dos outros. A humildade que carrega no coração abre as portas para uma vida cheia de graça.

E, como se fosse um lamento devastador e triste, sente falta, acima de tudo, das práticas do carnaval, uma tradição que está sendo esquecida, mas que se mantém viva na mente e no coração de quem a pratica. O carnaval mossoroense já está se tornando uma lenda, e ele sente falta do incentivo por parte dos órgãos públicos e instituições culturais.

Eu vejo a hora ir para o inferno e não dançar mais o carnaval, para eu chegar lá e pelo menos animar. A tradição do Maracatu não existe só nas cidades grandes, há de ser valorizada em Mossoró também, porque em Mossoró ainda ‘tá’ vivo que Deusimar não morreu. Não entendo a desvalorização de uma cultura tão rica. O carnaval é vida, é alegria. É mentira que isso é coisa do demônio. Demônio é essa pobreza! O céu é alegria. Vamos morrer ao menos felizes”, afirmou.

Por mais que já esteja na casa dos sessenta, ainda segue com a mesma energia da sua juventude, mesmo sabendo que um dia chegará o grande e triste dia do seu fim e alerta.

“Quando eu tiver 85 anos eu ainda vou fechar de cadeado na passarela de Mossoró, enquanto a morte não o derrubar, seu gingado ainda vai perdurar. Eu vou curtir essa até minhas pernas aguentarem. E o meu pensamento. Depois disso, meu anel de bamba vai repassar para quem mereça”, diz.

Ao finalizar as histórias do passado e o anseio pelo futuro, Deusimar diz que tudo que construiu até aqui, quer que seja levado com o mesmo amor e fugaz pela sua linhagem e descendentes. Quer que valorizem o seu trabalho, suas relíquias e a sua paixão por esta arte poderosa. Que levem adiante e cresça.

Como um amor juvenil, seus olhos brilham toda vez que escuta o nome e ouve conversar sobre o Maracatu e seus elementos, demonstrando a admiração, a sensibilidade e a paixão que tem por esta que, até aqui, é o amor da sua vida.

Analice Sousa, Antônio Roberto e Hadiel Medeiros são estudantes do 2º período do curso de Jornalismo da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Reportagem produzida como atividade da disciplina Produção de Texto Jornalístico I. Orientação: Professor Esdras Marchezan

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O HiperLAB UERN é o Laboratório de Narrativas Multimídia do curso de Jornalismo da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).