Thay (à esquerda) e Jazz (à direita) venceram a última edição do Slam do Conhecimento, projeto de extensão realizado em Mossoró

(Sobre)vivências: a poesia da comunidade

Agência HiperLAB de Reportagem
7 min readJul 15, 2021

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Nas rimas de Jazz e Thay, a força da arte de duas jovens poetisas brasileiras

Por Anna Nívea — Da Agência HiperLAB/UERN

A arte, em suas múltiplas vertentes, é uma valiosa forma de luta e resistência. Reflexo da cultura e época vividas pela sociedade, serve para denunciar inúmeras mazelas que afetam grupos minorizados e reivindicar uma política coletiva mais equivalente. Como instrumento pedagógico, o Slam mistura pautas sociais e educação através de batalhas de poesias autorais. As competições conquistaram incontáveis adeptos, como Jazz e Thay, jovens estudantes que descobriram o palco ideal para compartilhar suas experiências e percepções de mundo.

Jazzy dos Santos Gomes, conhecida como “Jazz”, tem 17 anos e mora no município de Sapezal, Mato Grosso. Poeta marginal desde 2019, ano que conheceu o Slam por intermédio de uma amiga poeta, descreve sua vivência como pessoa preta e trans não-binária. Encorajada a falar sobre essas questões, e outros temas, Jazz compôs cerca de 15 a 20 poesias e relata que o interesse surgiu devido a sensação de reconhecimento.

“A partir da identificação, quando vi pessoas como eu escrevendo sobre nossas questões, nossos medos ou até mesmo exaltando a cultura e nosso povo, senti como se pertencesse e que tinha pessoas que me entendiam.”

Sua primeira batalha aconteceu ano passado, na 1º edição online do Coletivo Slam da Guilhermina. Ao todo, Jazz participou de 37 competições e venceu o Slam do Conhecimento — Campeonato Interescolar de Poesia Falada promovido pelo projeto de extensão universitária Slam do Conhecimento. O evento está vinculado ao Departamento de Psicologia da Faculdade Católica do Rio Grande do Norte em parceria com o Departamento de História da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

“Sou uma pessoa nordestina, de Maceió-AL, e nunca tinha participado de um Slam do Nordeste. Senti um acolhimento e identificação muito grande. Nós somos um povo muito rico, diverso e precisamos compartilhar nossas falas.”

Ciente das problemáticas enfrentadas pela população preta e pela comunidade LGBTQIA+, Jazz utiliza seu conhecimento para combater o racismo e LGBTfobia. Também destaca que os grupos minorizados usam os slam’s e a poesia marginal como armas na luta por uma mudança estrutural da sociedade.

“É de extrema importância estarmos inclusos na poesia, arte, cultura no geral, e não em situação de rua, prostituição, onde o estado quer que nós fiquemos. É resistência. É a quebra do ciclo e a abertura de novos horizontes, de perspectivas para nós.”

Ele ainda incentiva pessoas não-binárias a participarem e frisa que no movimento “pode falar de suas vivências, dores, alegrias… porque o slam é marginal, é de rua, é do nosso povo.”

Confira o que rolou na última edição do Slam do Conhecimento, com as apresentações de Jazz e Thay.(https://www.youtube.com/watch?v=90LnxVKJETY)

Além das poesias, Jazz tem um zine intitulado “Na chamada gritaram: ‘Jazz’, e eu respondo: Presente!”. Também faz parte do Coletivo Nagô, que promove a exaltação do povo preto, desde 2020. E seu método criativo ocorre de modo intimista.

“Meu processo de criação é eu sentir necessidade de falar sobre algo. Seja após ler uma notícia, ou ter alguma crise, porque uso a poesia como cura também, então às vezes eu preciso falar sobre alguma coisa que está me afetando. Mas às vezes só quero escrever uma coisa legal, mais pra cima, então escuto meus jazz’s, assisto alguns dos meus filmes favoritos e pego o caderno.”

No último ano do ensino médio, ele sonha cursar cinema e levar às telas as vivências narradas em rimas.

Dentro do Slam, tem como inspirações Gabz, Nega Preto e Bixarte e fora dele, Billie Holiday, Louis Armstrong e John Coltrane são algumas de suas referências. Quanto à cena musical brasileira, Jazz revela que admira Linn da Quebrada, Urias e Monna Brutal. O poeta compreende a importância de artistas que fogem da heterocisnormatividade ocuparem lugares antes destinados apenas ao padrão imposto pela branquitude patriarcal.

“Vamos ocupar cada vez mais cada espaço que nos for permitido. E se não permitirem, a gente entra assim mesmo!”.

Esse pensamento crítico exemplifica que a resistência do Slam está, antes de tudo, alicerçada em uma luta política, étnico-racial e de gênero pela inclusão dos minorizados.

HISTÓRICO

O movimento, que chegou ao Brasil em 2008 por intermédio da artista Roberta Estrela D’Alva, ganhou a adesão de inúmeros poetas marginais. Seguindo algumas regras básicas, as batalhas abrangem variados assuntos e sentimentos. Com início em São Paulo, tendo como um dos precursores o Slam da Guilhermina, a poesia falada ganha cada vez mais notoriedade e estima-se que há mais de 150 comunidades de Slam’s espalhadas pelo país. Atentos a nossa pluralidade, alguns grupos desenvolveram espaços destinados a públicos específicos, como o Slam das Minas, onde apenas mulheres batalham; Slam do Corpo, para surdos, ouvintes e intérpretes e Slam da Marginália, para travestis, trans não-bináries e identidades dissidentes.

Em Mossoró-RN, existe o projeto de extensão universitária Slam do Conhecimento, resultado da parceria entre Departamento de Psicologia da FCRN e Departamento de História da UERN. A iniciativa promove campeonatos interescolares com estudantes da rede pública de todo Brasil e têm seis extensionistas que se articulam em uma atuação horizontalizada. Coordenado por Jéssica Pascoalino Pinheiro, professora e psicóloga, o projeto iniciou suas atividades em outubro do ano passado com encontros virtuais. Em virtude da pandemia do Covid-19, as atividades estão sendo desenvolvidas de modo virtual e até o momento, o grupo promoveu dois slam’s e oito oficinas de arte, educação e vivência. Os voluntários do projeto são os estudantes Caiubi Nogueira, Débora Nunes, Denise Costa, Pedro Victor, Valdir Gabriel e Emilly Alves.

O último campeonato aconteceu em 12 de junho e teve como uma das campeãs a poeta Thay. Thayssa Silva de Andrade, ou “Thay”, tem 16 anos e mora em São Paulo, capital. Cursando o segundo ano do ensino médio, deseja ser escritora e conta com o apoio dos pais e do irmão para trilhar esse caminho. A partir de um trabalho escolar sobre o Slam, e devido o gosto pela escrita, começou a se interessar pelo movimento. Sua primeira batalha ocorreu ano passado, no Slam Interescolar de São Paulo, mas conhece a proposta há mais tempo.

“Conheci em 2018, na minha antiga escola, quando o Poeta Márcio Ricardo fez uma palestra para os alunos. Ele falou sobre o Slam e recitou algumas poesias dele.”

Thay participou de 4 competições, todas virtuais, visto o cenário atual. Autora de 13 poesias, diz que não escreve todos os dias mas que prefere compor durante a madrugada.

“Normalmente escrevo de madrugada, porque é o horário onde surgem várias ideias. Escrevo no bloco de notas do celular, vou juntando vários versos até formar uma poesia completa. Nos meus textos eu tento passar a verdade, e mostrar para o público a importância do assunto que estou trazendo na poesia.”

Para ela, além de uma expressão artística, o Slam também dá voz aqueles que não estão sendo ouvidos e serve para que as pessoas consigam “expressar suas ideias para sociedade em forma de poesia”.

Além de uma fonte de conhecimento, o movimento aborda questões que escancaram a disparidade social brasileira. Em seus escritos, Thay fala de racismo, homofobia, machismo e outras pautas cruciais para desconstrução da mentalidade preconceituosa da nossa população.

“Dependendo da poesia, a pessoa pode mostrar opiniões com argumentos sobre a sociedade e suas questões, ajudando outros que antes não sabiam ou não tinham conhecimento, a entender e poder ajudar nessas causas.”

Também cita a importância dos campeonatos interescolares, “É muito importante, porque dá voz aos alunos de escola pública, que antes não tinham essa oportunidade. O Slam do Conhecimento abre várias portas para jovens como eu.”

Dentro do movimento, ela tem como referências o Slam da Guilhermina, primeiro que conheceu pela internet, e “o Poeta Márcio Ricardo me inspira muito, e foi ele, junto com meu professor de projeto de vida, que me ajudou e incentivou bastante na minha primeira batalha”.

Além do reconhecimento, o Slam impulsiona o sonho de ser escritora e ajuda a espalhar suas composições pelas redes e tablados da vida. Presos a um governo que desdenha da produção artística de seu povo, jovens como Thay e Jazz, utilizam a poesia para reivindicar um sistema mais justo e democrático. Ultrapassando as limitações sociais, apresentam ao mundo um novo jeito de entender e conviver com a pluralidade que torna cada indivíduo único.

Considerando a violência contra a mulher e nosso papel na sociedade, a poeta também destaca a importância de estarmos envolvidas em iniciativas como essa. “Slam com mulheres têm bastante representatividade. A voz feminina dá força para diversas outras mulheres que não tiveram a oportunidade de se expressar, e mostra que nenhuma está sozinha na luta contra o machismo e a misoginia”. O movimento lhe faz ter esperanças de que dias melhores virão e por isso, ela incentiva todas a participarem.

“O Slam vai te acolher, e o que um dia você não conseguiu falar, com poesia você vai conseguir 100 vezes mais. Eu, sendo mulher e poeta, não me arrependo de participar dos campeonatos”.

Rompendo com a ideia preconceituosa que tenta restringir manifestações artísticas aos palcos da elite, a poesia falada conquista cada vez mais destaque na cultura nacional. Fonte de informação, espaço de resistência, ferramenta pedagógica, “válvula de escape” e tantos outros adjetivos visam definir o impacto político-social do movimento. Em uma geração que carece do mínimo, e precisa tomar as ruas para manter o básico, o Slam comprova que a comunidade também produz arte e conhecimento. Jovens que se reúnem para trocar vivências e percepções de mundo na luta por uma sociedade mais equivalente. Artistas que se articulam na construção de um sistema pensado para pluralidade de vozes, corpos, identidades e saberes.

Esta reportagem foi produzida numa parceria da Agência HiperLAB/UERN com o projeto Slam do Conhecimento.

A Agência HiperLAB/UERN é uma ação do Laboratório de Narrativa Hipermídia (HiperLAB), projeto de extensão do curso de Jornalismo da UERN, coordenado pelo professor Esdras Marchezan.

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O HiperLAB UERN é o Laboratório de Narrativas Multimídia do curso de Jornalismo da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).