O fim das mulheres

Rita Serra (A costureira)
histórias da serra
3 min readJun 2, 2021
Steve Silberman, Nazi poster depicting the cost of health care for disabled folks as a burden on German workers and promoting euthanasia.

Meti-me num assunto que nem sequer era o meu. Nem sei bem como é que vim aqui parar. Retrospectivamente e em esforço, penso que fui atraída por encontrar alguns homens saudosistas do amor romântico, por um pensamento sobre o cuidado e as mulheres, sobre os espaços comuns se tornarem insuportáveis, sobre equidade entre homens e mulheres e a parentalidade e o cuidado. Sem dar por mim, estava a ler coisas sobre a manosfera, sobre incels, MGTOW, black pills e red pills. Nada disto me captura muita atenção (mas devia, são movimentos extremamente perigosos, que parecem saídos da figurinha triste do Tom Cruise no filme Magnolia). O que me capturou a imaginação foi o fim das mulheres.

Basicamente, veio-me a seguinte ideia à cabeça: se as mulheres não nascem, mas tornam-se, podem ser culturalmente extintas, mesmo que continuem a nascer. O atentado cultural contra as mulheres vem de diversas origens. Basicamente, ser mulher no capitalismo tornou-se insuportável. É um papel impossível de cumprir. É insuportável de formas novas. Não é insuportável por ser fisicamente custoso — isso sempre o foi. É insuportável porque não há absolutamente nenhuma estrutura de recompensa. Há um atentado constante por parte da imaginação capitalista de ser um papel subalterno. E o capitalismo é o único amigo das mulheres: o que lhes permite sair da subalternidade, trabalhando.

Claro que para sair da subalternidade, além de se trabalhar, não se pode ter dependentes a cargo. É uma injustiça impossível. E também é impossível acreditar no amor que cada vez mais se afigura como uma ficção perigosa que só serviu sempre para nos enganar, para papar tolas, um açúcar, engodo, um isco. Mas se isto sempre foi assim, pelo menos havia alguma recompensa noutros lados — a recompensa moral, a recompensa religiosa, a recompensa, nem que fosse, milenarista no além.

Mas agora, essas recompensas estão esfarrapadas. Só sobra a sensação de idiota e sucker. De ir voluntariamente para um poço de desgraças. Porque à luz do capitalismo, ser mulher é uma irracionalidade.

Quem se surpreende que o ataque cultural às mulheres pretenda extinguir esta figura por inteiro?

Infelizmente, o que surge não é o queer. Não é a emancipação dos géneros. O que surge é a misoginia, o ataque físico às mulheres, a culpabilização de já não quererem cumprir aquele papel. Faz-me lembrar aquele saudosismo do “já ninguém quer voltar à terra”, como se esquecessem, ou apagassem, o insuportável que foi ficar lá. Insuportável, acima de tudo, socialmente.

Os que as querem matar agarram-se àquela figura cultural que eles mesmo extinguiram, como um caçador se queixa da falta de caça e de vida silvestre.

Já não há mais peixe no mar.

O peixe recusa-se a ser pescado.

Mais vale ser vegan.

Mais vale ser incel.

Mais vale ser MGTOW.

Claro que resgatar as mulheres como figura extinta requer não cavaleiros andantes, mas muito trabalho de desfazer as condições que tornam ser mulher insuportável.

Podem achar que a existência cultural das mulheres só às mulheres diz respeito.

Mas podemos verdadeiramente imaginar, e gostar, dum mundo que não é queer, mas unigénero? Em que o único género que sobra é a produção cultural de ser homem?

Será que os homens gostam desta produção cultural do que é ser “eles”?

Se não gostarem, há caminhos muito interessantes de salvação conjunta.

De re-invenção conjunta.

De outras roupas para o masculino e o feminino, e mais além. Para sexos culturais que ainda não foram inventados. Ou reconhecidos. Ou nomeados.

As roupas dos homens e das mulheres estão velhas, dizem-nos. Pior, estão rotas.

Mas há boas costureiras e costureiros a operar.

Infelizmente há um contexto que só favorece uma roupa. E essa roupa é agressiva. É uma roupa que nunca sai, porque estar despido não é uma opção.

É um chapéu.

Já dizia Lobo Antunes nos Manuais dos Inquisidores:

“Faço tudo o que elas querem mas nunca tiro o chapéu da cabeça para que se saiba quem é patrão”

Talvez esse seja o problema. Não saber, ou não poder, tirar o chapéu.

--

--