O trabalho dos actores

Rita Serra (A costureira)
histórias da serra
4 min readMay 9, 2021

Acabei de ver um filme maravilhoso, o Era uma vez em Hollywood, do Quentin Tarantino. Perfeito para demonstrar o malabarismo entre os três tipos de trabalho definidos anteriormente, A, B e C.

Só precisamos de ver duas personagens no filme: o DiCaprio e o Brad Pitt.

O DiCaprio é um actor. Como tal, vive de forma precária. Mesmo assim, é pago para fazer de conta que as coisas são reais, mas a fingir. A diferença é crítica: o a fingir tem de ser mais espectacular do que o real, só que a fingir que é a sério, mas sem ser.

Fingir bem é por isso uma arte de inteira ficção.

Não passa pela cabeça de ninguém pôr as pessoas a fazer delas mesmas.

Não se vai buscar um pedreiro para fazer de pedreiro, a não ser que seja um figurante.

Se tanto, pode entrar, sei lá, como consultor.

Porque fingir um papel é mais ou menos como o problema dos patos terem dentes: não é real. Então, também não deviam estar a cantar.

Por isso é que ser actor é um trabalho, e ser real não é.

Ser actor pode ser mais do que isto? Claro. Mas isso fica para outro lugar.

Neste lugar, este estereótipo de actor serve perfeitamente.

Porque é o DiCaprio: torturado pela ansiedade da sua carreira e da precariedade (spoiler alert: é aqui que põem agora os cientistas e investigadores, na mesma categoria que as pessoas artistas. Porque afinal, a ciência é um espectáculo, pelo menos a que se faz “no público”, seja lá o que for isso — fora das empresas).

DiCaprio procura sobreviver como pode, e tenta ser bom actor. Esforça-se, sendo que ele mesmo sabe que o sucesso ou não é uma roleta russa.

Percebe-se também que mesmo que lhe corra bem, é um pobretanas que gasta todo o seu dinheiro em valorizar-se — manter a aparência de valor, na esperança que um dia fale com os seus vizinhos e consiga trabalho porque está na colina de Hollywood.

Enfim, DiCaprio é um trabalhador da categoria C — trabalha para outros, mesmo sendo que esse outro somos nós no final — afinal, é a nossa cultura a ser produzida. Mas é paga a 0,75 o bilhete de entrada. Vá lá, se fores actor talvez consigas um desconto ou te deixem entrar à pala, como fazem à Sharon Tate. Há quem faça muito dinheiro em Hollywood. Mas não são eles, os actores, pelo menos, não estes. Estes são pobretanas a gastar todo o dinheiro em parecerem ricos.

Brad Pitt é um duplo. Portanto, não é actor. A profissão dele é um pouco diferente. Está lá para quando as coisas são demasiado reais para os actores, e eles podem magoar-se a sério. Brad Pitt lida com a realidade. Talvez por isso não seja pago. Não consegue trabalho de duplo. Ri-se de Bruce Lee quando este está a discursar sobre o que é um combate, precisamente por não ser um combate a sério. Brad Pitt conhece a diferença entre a realidade e a ficção. Mas Bruce Lee não, ou faz de conta que não, e desafia-o para um combate. E perde, claramente. Mas quem é despedido é Brad Pitt. Isto não é um concurso de quem sabe combater melhor. Isto é sobre combater melhor a fingir. Por não conseguir perceber esta diferença, Brad Pitt não consegue trabalhar por conta de outros. Não consegue trabalhar na categoria C.

Brad Pitt é o faz-tudo de DiCaprio, que é o “ganha-pão”. É o que o conduz, porque este é incapaz de conduzir — se conduzir fazia parte do trabalho A, DiCaprio perdeu esta capacidade por estar sempre alcoolizado — e além disso, arranja tudo em casa. Vive numa roulotte com uma cadela porreira. Quando ele não pode cuidar da cadela no modo A, a cadela vai para um Hotel de Cães no modo C.

Quando DiCaprio arranja uma mulher, despede Brad Pitt pois não consegue sustentá-lo, mas são amigos. Emborracham-se juntos. E Brad Pitt não faz a menor ideia do que irá fazer. Nem deve ter subsídio de desemprego nem nada. Era amigo dum precário. Porque era “menos do que uma mulher”.

Brad Pitt era um trabalhador por conta de B. E cruza-se duas vezes com gente que não trabalha nada. Hippies que poderíamos duvidar se faziam, pelo menos, trabalho A e B, mas mal. Não parecem cuidar bem de si próprios, nem de nenhum tipo de “nós”. Ao mesmo tempo, integram um outro tipo de nós, que não é outros, mas um “eles”. Integram uma psicose alternativa, um culto, uma seita, que é como chamamos a quem não pensa como nós, mas que pensa como parte doutro colectivo.

Esse outro colectivo é psicopático e ressabiado com as desigualdades. Parecem narcisistas encobertos, que só querem atacar B/C. A questão é que não são capazes de distinguir entre B e C. Para eles, é tudo outros.

Brad Pitt é o maior. Quando é despedido, vai para o hospital e ainda pensa no amigo — não fiques lá hoje, eu estou bem não vou morrer, passa lá amanhã e leva-me bagels.

“És um bom amigo”, diz DiCaprio.

“Tento ser”, diz Brad Pitt.

Mas para esta relação, menos do que mulher, nem há união de facto.

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