Trabalho é para outros

Rita Serra (A costureira)
histórias da serra
2 min readMay 7, 2021
Exercício do primeiro ano de escola. https://www.pinterest.pt/pin/764767580442488617/

Espero ter deixado claro que trabalhar nada tem a ver com actividades humanas. Para entendermos o que é o trabalho como actividade humana, teríamos de seguir outra via, para perceber o que é o descanso para um ser e o que é o trabalho de se manter vivo. Quem trabalhou este tema foi Terrence Deacon no livro Incomplete Nature, no campo das ciências cognitivas e da ontologia do ser.

Mas este entendimento de trabalho — aquele esforço necessário para nos mantermos vivos — não é o entendimento de trabalho actual.

Trabalho é uma coisa que se faz para outros.

Aliás, esta é a regra número 1 do trabalho: se for para nós, não é trabalho, é outra coisa.

As actividades que fazemos para nos mantermos vivos são para nós — a nós dizem respeito.

Não são lazer.

Lazer é outra coisa.

São trabalhos domésticos.

Tarefas domésticas.

Arrumar a casa.

Cultivar-nos.

Cultivar.

Educar.

Cuidar.

Todas estas coisas só vão contar como trabalho se não forem feitas para nós, no decorrer das nossas ações.

Se eu limpar a casa de outra, é trabalho.

Se eu cuidar de outra que não da minha esfera de relacionamentos substantivos — amizade ou família — é trabalho.

Se eu cuidar do terreno de outro, é trabalho.

Se eu educar outra, é trabalho.

Claro que há coisas que eu faço para outras e não são trabalho.

Sempre que escrevo não é trabalho porque sou eu que estou a escrever o que quero escrever.

Se vem de mim para o mundo, não é trabalho.

Trabalho tem de vir de outros.

Tenho de escrever para outros, para os propósitos de outros.

Trabalho implica tornar-nos uma ferramenta de outros.

Estar ao serviço de outros.

Estar ao serviço de outros que não nos são “nada” — não são família nem amigos.

Podemos estabelecer relações com pessoas que são nossas trabalhadoras, desde que saibamos distinguir trabalho de cognac.

Emprestarmo-nos ao serviço de outros que não nos são nada é o desafio do trabalho.

Digo já: não sei trabalhar.

Não consigo trabalhar.

Sou incapaz de trabalhar.

Talvez o trabalho seja totalmente impossível para pessoas com PDA — pathological demand avoidance, que têm uma enorme alergia a exigências externas e internas.

Talvez a escola tenha falhado completamente comigo a ensinar-me a trabalhar.

E na escola, aprende-se a trabalhar desde pequenino.

Sempre que nos indicam: “circule ou pinte as figuras onde aparece a letra B” isto nada tem a ver com a nossa vida.

Não é uma coisa que eu quero fazer.

Posso querer fazer outras coisas naquele desenho e saber na mesma onde fica a letra B.

Fazer aquele exercício é por definição, um trabalho.

O trabalho é por definição, contra-natura.

(Sigam-me para posts ainda mais desmotivacionais)

--

--