Trabalho

Rita Serra (A costureira)
histórias da serra
4 min readMay 3, 2021
Tribulum (https://en.wikipedia.org/wiki/Threshing_board)

Nada é mais absurdo, horroroso, mal compreendido, que o conceito de trabalho e o que conta como trabalho hoje em dia.

Haver um dia do trabalhador consegue ser, no contexto atual, pior e mais doloroso do que qualquer outro dia que já foi inventado.

A próprio etimologia da palavra trabalho não ajuda. Tripalium, instrumento de tortura. Mas tortura porquê?

E como é que um instrumento de tortura vira virtude?

E como é que uma virtude é desvirtuada?

E como é que essa suposta virtude de se ser torturado acaba por colapsar por completo na pandemia?

E como é que nos tornamos na sociedade que menos trabalha de todo o sempre, de todos os tempos?

E como é que o trabalho fica fundido e confundido com todas as atividades humanas?

Sempre que intrigou como é que umas coisas contam como trabalho e outras não.

Por exemplo, as atividades mais fundamentais da história, recolher ou preparar alimentos, foram em várias épocas entregues a crianças.

Penso que seria absurdo entendê-las como a tortura do trabalho infantil.

Penso que, quando as crianças eram responsáveis por pisar, virar e rebolar bolotas com os pés para que não embolorassem, ou quando eu ia em pequena pisar uvas no lagar com toda a família, não as estávamos a abusar ou explorar.

Penso que esta noção de entregar as atividades mais críticas à sobrevivência da humanidade aos mais jovens e mais vulneráveis se baseava no facto da produção de bens mais essenciais à sobrevivência consistirem em tecnologias triviais, tão triviais que podiam ser entregues e deixadas a cabo dos seres mais vulneráveis e menos qualificados.

Penso ainda que o ideal seria que este trabalho não consistisse na actividade fundamental a cujo o propósito estava orientado, mas fosse sim, ele mesmo, uma espécie de feixo (bundle) de efeitos, como as rodas dum carro de burros que esmagam e pisam a palha e o estrume pelo caminho.

Penso que tudo o que diz respeito à segurança e bem-estar da humanidade tinha de ser tornado trivial.

É absolutamente impossível pensar um verdadeiro comunismo que não seja desta forma.

Como diz David Graeber no seu livro sobre a dívida: o comunismo de base é feito de ações diárias tão triviais que não entram nas contas e nem chegam a constituir dívida por serem obrigações tão básicas como “passa-me o sal” numa mesa de comensais.

Como diz Kropotkin: o nosso primeiro impulso é ajudar e temos de ser treinados socialmente a não o fazer, quando somos confrontados com alguém em grande necessidade — uma necessidade tão grande que excede a contabilidade humana, como um bebé a afogar-se numa piscina — desde que seja algo que na verdade, está ao alcance de cada um fazê-lo.

Penso que é um total absurdo hoje em dia, com a tecnologia disponível que me permite estar aqui no meu sofá com portátil nas pernas a escrever este texto e a ouvir música, não estarmos cheios de trivialidades ao nosso redor.

Porque calcular é humano, e não podemos deixar humanos encarregues das contas.

As únicas formas de escapar ao cálculo são as trivialidades, as incomensurabilidades, e os bodes expiatórios. Lamentavelmente, pendemos muito para a terceira solução, e cada vez menos às duas primeiras.

As trivialidades são o que é pequeno demais para as contas. “Passa-me o sal”. “Quanto é?” A pergunta era de si absurda. Depois a resposta “com piada” passou a ser “são 5 euros”. Mas na verdade, passar o sal, segurar a porta, passar uma caneta, mesmo com piadas parvas, continuam a ser triviais, e por isso é que a piada é parva. Não cumprir com estes pedidos, com estes “rituais”, é quase uma marca de aliens — demonstram que a pessoa em causa está alienada dos outros socialmente. Por isso é que as pessoas autistas que podem ter mais dificuldade em perceber e atender estes pedidos são consideradas tão mal educadas. É precisamente porque são níveis de cooperação tão básicos — como diz Graeber, comunismo de base — que não cumprir com estas expectativas é quase automaticamente patologizado, ou alienante.

Passar o sal é trabalho? Podemos pensar que sim, se entendermos que o trabalho é igual a qualquer atividade humana ou a esforço físico. Certamente, passar o sal numa mesa dá trabalho. Temos de interromper o que estávamos a fazer, como por exemplo, comer. Implica mover o braço e às vezes, até, levantar o rabo da cadeira. Pode até ser uma tarefa de género, se for habitual que a mulher passe o sal mesmo que esteja na outra ponta da mesa.

Quando é que passar o sal passa a ser trabalho?

Fácil. Passa a ser trabalho sempre que a mesa já não é de comensais. Já não estão todos a almoçar. Um ou uma pode estar na posição de servir os demais. Então, essa pessoa, para ter essas tarefas atribuídas de forma diferenciada, está a trabalhar.

Claro que pode receber ou não por isso.

Pode receber se for contratada para o efeito — uma hospedeira ou hospedeiro.

Pode não receber se for escravo ou escrava, e pode receber ou não se for a anfitriã ou anfitrião da casa que serve os seus comensais.

Escravos e anfitriãos podem juntar-se nas atividades não remuneradas sem dificuldade.

O que é o trabalho?

Desta primeira exploração, chegamos ao óbvio, tão óbvio que até dói:

O que conta como trabalho só pode ser entendido à luz das interações e contextos sociais. Sigam-me para mais desenvolvimentos. Só vai ficar pior. Spoiler dos próximos capítulos: o trabalho à luz das ciências cognitivas.

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