Correspondência dos acontecimentos

Dri Kimura
Histórias para ler no fim do mundo
6 min readAug 2, 2020
Photo by Bundo Kim on Unsplash

Pinheiros, 18 de maio de 2020

Lucas,

Eu mesma passei a me cobrar responder com ficção aos nossos desafios. Descobri, já no início da nossa jornada, que evitei imaginar a vida toda. Acho que passei muito tempo consumida pela realidade e esse tempo perdido talvez seja como o de noites não dormidas: irrecuperável. Ontem, apesar das orientações do desafio, que iam na direção da simplicidade, me esforcei para escrever uma história que pudesse materializar algumas ideias que enfiei na minha cabeça. Abri o Wonderbook — a edição digital traz as imagens em alta definição compiladas por um link, são os PDFs mais fodões que você já viu e, claro, não chegam aos pés do livro físico que você ficou de fotografar para mim — e tentei correr os olhos passadas as 23 horas do domingo, na busca desesperada por uma ideia de ouro, morrendo de medo que você fosse desistir da nossa jornada, só porque parecia que eu já havia desistido.

Esbarrei até na introdução de um livro do Gabriel García Márquez, nas primeiras 30 páginas disponibilizadas pelo GoogleReads. Por que 12, por que contos e por que peregrinos? No texto, cuja leitura te recomendo, ele fala da intenção de compartilhar um processo criativo interessante com as crianças que desejam se tornar escritoras. Diz que chegou a 64 ideias ao longo de 18 anos, que perdeu um caderno com todas essas anotações, que esta empreitada dos contos o esgotou bem mais que qualquer outro romance que tenha escrito e que ele entendia por que: os esforço de começar era o mesmo, estava tudo ali nos três primeiros parágrafos, prometendo uma boa história ou afundando sem força de vingar. Apesar de neste ponto ter desistido, ainda estiquei acordada até quase duas da manhã, para depois dormir sem saber o que faria.

É cedo demais para escrever cartas sobre escrever. Mas, é definitivamente isto o que me traz, hoje e sem dúvida alguma, leveza. Poxa, é isso de que tanto gosto e que costumava fazer sem me pedirem ao longo de tantos anos. Era este o hábito que ficou adormecido enquanto me convenci de que trabalhava demais para retomar. E acho que isso que estou fazendo com a ficção é impaciência de tentar a sério, de fracassar e de estudar a valer, de ler mais daquilo que um dia espero escrever, de perder a vergonha de lançar textos verdadeiramente experimentais. Vou acrescentar que nossos grandes cânones talvez não pudessem se expor dessa forma por uma questão de barreira tecnológica — não sei se, caso pudesse, o teriam feito.

Ontem, pela primeira vez em quase 10 semanas, saí do meu apartamento. Só para que você saiba por onde andou minha imaginação que não foi longe, todas as minhas tentativas de escrever ficção essa noite mencionavam um apartamento, mudança, personagens inventados com partes de gente de verdade. No máximo ao terceiro parágrafo, tudo ia por água abaixo — ou ficava confessional, ou era simplesmente ruim. Será que é agora o momento oportuno para dizermos que a realidade competiu com a ficção o bastante para finalmente ganhar? Não sei se esta é uma desculpa que inventei, mas acho que é preciso observar e escutar com ao menos o dobro de atenção tudo que realmente acontece, traçar relações e estabelecer significados para só depois imaginar.

O fato é que minhas histórias não têm acontecimentos e isso é ironia da minha não carreira como jornalista. Eu li seu texto do desafio anterior e fiquei pensando nessa anatomia das conversas, nas entrevistas, na escuta. A gente não ouve mesmo o que as pessoas dizem, não é? Eu me lembro de dizerem para mim: ah, dri, minha vida não é tão interessante quanto a tua, não acontece muita coisa. Você vê? As pessoas confundem gente que fala demais com vidas em que muita coisa acontece. É como eu disse, muito entretida com a realidade e suas pequenas questões. Ontem, não foi lá um A-CON-TE-CI-MEN-TO. Há, no entanto, uma indagação. E acho que esse texto é sobre isso. Você vai duvidar, mas é o que há de mais promissor em termos de leveza para mim.

Eu não pretendia atravessar o batente da porta da sala antes dos próximos 5 dias. Comecei a aprontar a mudança ensacando os sapatos, guardando bugigangas fora de uso que eu surpreendentemente consegui acumular no apartamento que frequentei por não mais que 4 meses e, não sei, me preparando psicologicamente? É verdade que essa pandemia significa, para muitos, fome e restrição enquanto, para outros, tédio e ansiedade. Não vou me perder no juízo de valor outra vez, porque acredito que essa é a parte onde pecamos contra a capacidade de considerar as histórias dos outros.

A indagação, portanto, é esse abismo entre as narrativas que estamos cultivando dentro de casa e, para muitas pessoas, no meio da rua, de porta em porta, enfrentando diversos espaços de vida comum. Não por uma história em detrimento de outra, mas pela capacidade que deveríamos ter em assumi-las, assim, polifônicas e simultâneas, entende? Como se fôssemos capazes de interpretar e viver os olhares dos outros, como se o IGTV fosse mesmo repleto de vidas muito dignas, que nos despertassem interesses e colocassem em tudo um significado.

Esbarrei, na porta do elevador, com uma Carol vestida de máscara profissional e paralisada para não acabar reprimida outra vez por ter se aproximado demais de alguém. Fizemos um revezamento esquisito para atravessar o batente e lamentamos que essas coreografias físicas tenham se desdobrado nas relações mais desumanas. Não fomos longe. Enquanto o Igor fazia a primeira leitura do livro de um amigo ainda no Word, fiquei observando umas árvores de galhos pelados que terminavam em pequenas flores cor de rosa com o céu de fundo entre outono e inverno, ao entardecer. Sabe, meu pai sempre me deu tudo cor de rosa, desde as flores que levou ao hospital quando nasci até todo tipo de equipamento digital que fui ter até os 19 anos. Não sei, fiquei esperando por algum sinal tão literário que eu pudesse chamar de acontecimento. Mas, mesmo a vida, quando cai no clichê de uma cena bonita, florida e iluminada com ternura, não é lá de grandes ocasiões.

Segundo a introdução do Gabo de que te falei, tudo se resolve no início, para romances e para contos. Ou a ideia é boa, ou não é. Na semana passada, por outro lado, assisti àquele filme que leva a ilustre Meryl Streep e Nicolas Cage, o oposto de ilustre — não porque não seja bom ator, mas porque tem seus motivos para aceitar fazer todo e qualquer tipo de filme -, dirigido por Spike Jonze e escrito por Charlie Kaufman: Adaptation. Para o argumento irônico do filme, tudo acontece no final. E sim, a pira sobre roteiro vem muito daí, além da minha descoberta recente sobre você levar jeito para o gênero. Minha principal curiosidade aqui é saber o que você pensa disto: precisa mesmo acontecer muita coisa aos olhos de quem escreve?

Voltamos para o apartamento arrancando os sapatos na porta, para ensacar mais uma série de coisas e condenando interruptores, maçanetas, o piso, com medo até de comer. Entramos no banho com as roupas, assistimos ao filme Histórias Cruzadas — você já viu? — e acertamos a entrega das máscaras feitas pela senhora que trabalhou na casa da minha mãe por 20 anos, tendo me ensinado a meia dúzia de receitas e princípios que eu sei sobre a cozinha. Não digo que ela me criou, porque minha mãe era muito presente, mas o papel da Fátima está no centro da minha formação.

Você sabe o que aconteceu entre onze e meia da noite e duas da manhã. Durante todo o percurso, eu me perguntava: por que nada acontece nas minhas histórias? Dormi assim e acordei com feixes de um dia branco, escondido por trás de uma neblina fria e difícil de explicar com o sol de depois. Havia flores cor de rosa por toda parte no quarto que esvaziamos. Pela humidade e prostração, havíamos contraído o pólen dos dias.

Minha carta ao jovem escritor,

com votos para que nossos desafios rendam o mais importante hoje em dia: que nos façamos escrever sobre o nada que tantas vezes acontece.

Dri.

Este foi o quarto desafio que o Lucas me passou: escrever sobre o que me fizesse leve.

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