Era uma vez e não era uma vez

Dri Kimura
Histórias para ler no fim do mundo
6 min readAug 2, 2020
Photo by Annie Spratt on Unsplash

Era uma vez e não era uma vez o Tigre, gato de Olga que havia se descoberto morto depois de desaparecido por dias. O animal desfilou pelas muretas da cobertura do 92 o quanto pôde, até despencar do nono andar e ser encontrado pelo porteiro, no parquinho. Devia ter morrido no ato, sem chance de sofrer a mais ou por antecedência — foi o que disse o homem que abria o portão com bom dia, qual fosse o horário. Era um tipo que procurava dizer sempre o que provavelmente as pessoas mais gostariam de ouvir.

Olga teria argumentado quanto à sabedoria inesgotável dos instintos naturais de Tigre, ainda que Ester lhe tivessem dito repetidas vezes que o mais prudente seria instalar as telas e trancas, que ela não se importava, que não mudariam os ares do apartamento só por isso. O quarto de cima era uma torre reservada, onde Ester criava jóias de arame e pedras azuis, terrosas, verdes e em tons de ocre. Havia uma piscina de 3000 litros entre samambaias, avencas e alecrim, o fundo preenchido de lodo, tudo de um verde militar, um pântano sintético que abraçava todas as paredes externas, sumindo com os vasos das plantas e as pedras mineiras.

A cobertura tinha um aspecto selvagem, de muitas vidas conjugadas à própria sorte. As batatas brotavam na fruteira, entre pêras e cenouras, poucos dias depois de chegarem do sacolão. Cortavam a cebola apoiada na pedra da pia e, em vez de mosquitos, o cheiro atraía abelhas cada vez mais gordas e peludas. Apenas Tigre é que havia chegado já um gato doméstico. Como se as medidas de segurança fossem premissa no seu DNA, morreu ainda antes de colidir com o solo do parquinho, talvez de susto, por medo do que estava para acontecer.

Joana passava as tarde no quarto de um metro quadrado anexado à cozinha, lendo em uma cama fora de padrão projetada para que dormisse apenas uma pessoa muito cansada, sem dar pela falta de uma janela. No apartamento vizinho viviam outras quatro garotas fanáticas por frituras e cigarros de filtro branco, de modo que um aroma característico percorria todo o andar armazenando-se especialmente no metro fechado de Joana.

Ficou imaginando qual seria o tipo de tristeza que teria a oferecer por um gato que previsivelmente morre na primeira de supostas sete vidas, ao espatifar-se contra o chão. Parecia atrasada e pragmática demais para tantos rituais que Ester havia preparado tentando dar conta de noticiar a Olga o falecimento sem dor e energético de Tigre. Acabou se parecendo com uma grande cerimônia religiosa, um feriado santo mensal que Ester fazia questão de celebrar mesmo quando Olga é quem passou a confortá-la, dizendo que era preciso seguirem em frente, uma vez que a morte era apenas uma passagem de um estado para outro.

A escada caracol dava em um cômodo secreto, visualizado a partir do chão, com pinturas e penduricalhos de todos os tamanhos, o quarto de Ester ao lado oposto de um banheiro em que nenhum encanamento funcionava. A pia havia se tornado um cesto de cosméticos veganos em embalagens rústicas e diversos ramos de folhas secas no bidê eram a fase final de um ateliê para buquês de noiva, que haviam rendido freelas expressivos nos últimos meses, ainda que para a falida instituição do casamento em véu e grinalda.

Vendiam arranjos, jóias e organizavam sessões de criação com jovens que se pensavam artistas reunidos entre o pântano da piscina e o banheiro interditado da cobertura, testando giz pastel e esculturas de barro, folhas de aquarela, cigarros de camomila e maconha, revezando conversas sobre partes específicas da história da América Latina, marketing digital e as diversas cidades em que já haviam morado.

Ester foi a primeira a perder o sono. Menos de uma semana depois da morte de Tigre, acordou coberta de pontos vermelhos na pele, com uma coceira que durou por três semanas, levando não apenas a própria Ester, mas também Olga e alguns vizinhos à loucura. O ceticismo de Joana, por outro lado, revelou o pequeno quarto surpreendentemente repelente, como se ali, por falta de incômodo da moradora, a praga não tivesse por que se manifestar.

Elas arrancaram todos os lençóis, arrastaram móveis, espalharam pesticidas, água sanitária e naftalina pelos dois andares do apartamento. Olga sentia-se perseguida pela ameaça invisível mesmo fora do apartamento. Logo, foram perdendo a capacidade de dormir e a habilidade de pensar em outros assuntos.

A cobertura era uma herança de uma tia de Ester que nunca havia se casado e que matinha o endereço fixo apenas pela sugestão de permancência. A notícia da praga logo foi assumida como mau agouro pelos residentes e um evento levou a outro em uma sequência veloz: haviam de derrubar o prédio e exterminar os escombros. Os percevejos se espalharam no verão e não houve tecnologia, sanidade, explicação científica. Nada pôde contê-los ou a eles resistir.

Quando Ester recebeu o comunicado pela decisão da associação dos moradores de colocar o prédio abaixo, trancou-se no quarto da cobertura e passou dias sem ser vista por qualquer pessoa, até mesmo por Olga. Do andar de baixo, Joana podia ouvir alguns ruídos entre o ateliê e a piscina. Por vezes, subiu as escadas em caracol sem convite e pensou ter Ester com suas roupas de mangas largas se confundindo com as plantas aquáticas e toda sorte de musgos que cobriam a parte externa da cobertura, já não sendo possível dizer se havia ali alguma água da piscina ou piso por onde se pudesse caminhar.

Na missão de empacotar todas as peças de cerâmica e plantas envasadas, Olga bateu à porta de Ester oferecendo ajuda para preparar o andar de cima. Passaram-se meses sem que a praga desse trégua e cada objeto na cobertura permanecia onde estava desde o aviso. Como Ester não respondeu por dias seguidos, mandaram chamar pelo porteiro que havia encontrado Tigre, para que pusesse a porta abaixo. Em atitude demasiado paciente, o homem trouxe algumas ferramentas e desmontou a porta enquanto Olga andava da piscina ao bidê, entre flores e folhas que agora se reuniam entre as dos buquês e o pântano mais vívido que nunca. Joana havia subido apenas para dizer que tudo aquilo já era exagero, que talvez Ester precisasse de mais alguns dias para se despedir do apartamento da tia e que deviam ser mais compreensivas.

Quando finalmente abriram a porta, encontraram o mesmo ar de abandono, algumas peças das jóias de pedra estavam sobre a mesa e umas pequenas argolas derramadas pelo tapete de crochê faziam crer que quem havia saído do quarto voltava logo. Naquele momento, no entanto, estava vazio. Ester não havia saído do apartamento, mas não estava lá. Olga tentava alcançar novos pontos vermelhos nas costas para coçar e formulava novas hipóteses do paradeiro de Ester quando Joana gritou de onde estava: olha só quem está de volta! — e quem ficou realmente surpreso foi o homem que havia desmontado a porta. Era, sem dúvida, Tigre nas mãos de Joana, de patas arreganhadas e implorando que o colocassem no chão.

Este foi o terceiro desafio que Lucas me propôs.

Pronta? O seu desafio do fim de semana vem com uma citação de “Mulheres que correm com os lobos”.

“‘Era uma vez, e não era uma vez…’. Essa frase paradoxal tem a intenção de alertar a alma do ouvinte para o fato de a história ter lugar no mundo entre os mundos, onde nada é o que parecer ser à primeira vista.”

Sua história do fim de semana deve começar com “Era uma vez, e não era uma vez…”. O mundo entre os mundos você é quem cria.

A história continua… Quem sabe (:

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