O manual de usos do labirinto

Dri Kimura
Histórias para ler no fim do mundo
4 min readJun 5, 2020
Foto de beasty. em Unsplash

Não há explicações comprovadas para o fato de você agora estar aqui. Apesar de eu sempre começar por essa informação, os convidados ficam perguntando o motivo de tudo ao menos pelas primeiras cinco semanas. Depois disso, a questão pode voltar, a depender do gênio de cada um e do quanto se lembram de seus próprios valores. Com Edgar não foi diferente.

Outras pessoas ocupam estes corredores, mas dificilmente passam muito tempo juntas. Acho que vão se acostumando com as condições dos primeiros dias. Em pontos diferentes do mapa, elas sempre surgem sozinhas e assim encontram os primeiros bolsões de alimentação, se agarram a mim depois da segunda semana porque a solidão e o encarceramento reforçam um tipo de medo que, na maior parte das culturas daqui afora, se combate com convívio social ou livros.

Edgar já não me pareceu do tipo sociável pela facilidade que teve em conversar sozinho. Ele raramente precisava falar, mas não se inconformou em fazê-lo por si só. Estava terminando uma das refeições embaladas a vácuo, encontrada no saco idêntico que simplesmente conseguia ver se destacar a um dos corredores, da noite para o dia, desde que estivesse caminhando, ao dobrar uma esquina. Encontrou-me logo, porque pulou a fase do desespero violento e mal educado que costuma acometer a maioria. Lia em silêncio, estava confortável em me descobrir as palavras, em português legível, bem espaçado e pragmático.

A arte do labirinto é fazer parecer que tudo abre caminhos para uma saída, quando qualquer percurso ali não faz mais que círculos para lugar nenhum. O maior perigo das curvas é que tanto se pareçam com becos, para que só de muito perto sejam opções descartadas, levando à exaustão progressiva os viajantes. As sombras se assemelham paradoxalmente às clareiras de fim de túnel e a alimentação é abundante para os que não se ocupam de traçar grandes estratégias ou da prevenção exagerada, que já convenceu tantos visitantes a permanecerem sentados, encostados na infinita parede azul, entretidos por tempo o bastante para morrerem muito aos poucos — de fome.

Edgar não era fácil de desorientar e não me deu ouvidos a respeito da suposta besta que habitava entre nós. Eu mesmo nunca a havia visto e somente as pessoas eram registradas, de modo que eu podia saber quando estavam outros no labirinto, mas não via quem eram até me encontrarem, nem quantos podiam ser.

Muitos que me encontraram, mesmo sem me consumir completamente, deixavam-me no piso azul, liso, a continuidade perfeita das paredes. Cansados de carregar consigo um livro que não teriam a paciência de ler e que não lhes poderia servir para sair dali. O papel de um manual seria sempre a manutenção, o passo a passo dos bons usos. Minha função era ter, inclusive, essa escrita enfadonha que não lhes poderia dar grandes ideias, sem saber eu mesmo o que poderia haver para além disso.

Edgar encontrou, aos poucos, no detalhe do sabor de cada pacote, no registro de intensidade da fome que sentia, na umidade que talvez tivesse percebido pelo ar e na claridade do céu — embora fosse sempre a mesma -, acontecimentos e pequenos barulhos. Encontrou um ritmo, um passar, um andar das coisas. Imagens repetidas e simultâneas não chegavam a uma sequência temporal, mas Edgar as conectou por ocorrência e percepção. Minhas palavras sempre idênticas, as refeições que não eram diárias nem semanais, mas simplesmente periódicas, sem que se conhecesse seu período. De alguma forma, ele passou a aprender.

Na seção de curvas e becos, ele soube prever quais eram uns e outros e logo pôde economizar a energia de caminhar até o fim para verificá-los. Os pequenos sons, imaginava que pudessem justificar o boato da besta que ali vivesse. Por isso mesmo, perseguia-os. Sabia que a presença das bestas era sutil como fossem os detalhes mais bonitos, capazes de iluminar o labirinto com rumores da vida lá fora. Conforme da besta se aproximasse, mais evidências teria de alguma realidade caminhada a partir dos sonhos.

Edgar mapeou o labirinto no dia 12 de março de 1997. Não tinha referências de lugares, nenhuma. Mas percebia acontecimentos, costurava as pequenas diferenças e logo era criador da rede complexa e crescente dos fluxos e corredores de que era feito o labirinto.

Essa história faz parte dos desafios que eu o Lucas Waltenberg temos nos feito durante esse período de quarentena. Começamos no dia 26 de abril e todo fim de semana eu lanço um desafio de escrita para ele e ele para mim. Esse foi resultado do desafio da semana.

Desafio 01 — Lucas/Adriana

O seu desafio é um labirinto. Seu personagem já entrou nele e precisa chegar até o final. Você não sabe quem o colocou lá, nem o que tem no final — se é que tem um final.

Você precisa guiar e proteger o seu personagem ao longo do caminho e do que que pode estar escondido em cada curva.

O labirinto pode ser literal ou uma metáfora.

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