O voo

Lucas Waltenberg
Histórias para ler no fim do mundo
7 min readMay 3, 2020
Photo by Femke Ongena on Unsplash

A placa de aluga-se finalmente saiu da janela. Estava lá há alguns meses, sabe-se lá quantos, verde, meio gasta, com “aluga-se” escrito em caixa alta e um número de telefone celular. A janela fechada, de alumínio, com o vidro embaçado, deixava à mostra, como um corpo aberto, as entranhas do apartamento vazio, remendado, com as paredes brancas manchadas e o chão de taco arranhado, sem vida. Dizem que o sol acaba com o taco quando bate nele direto. Fui testemunha silenciosa do quão agressivo os raios de sol foram com a pobre madeira ao longo desses meses. Anos? Não sei mais. Acho que ninguém sabe.

Começou quando pediram que saíssemos das ruas. Oficiais do governo falavam de uma ameaça silenciosa que encostava em você, expulsava o ar do seu peito e matava você em questão de minutos. Demoramos para acreditar. Descobrimos que o ser humano é teimoso por natureza e só levamos a sério quando amigos, colegas, conhecidos e familiares morreram de uma hora para a outra. Sem sobreaviso, sem se despedir, sem nem chegar ao hospital. Tudo por causa de um micro-organismo então desconhecido pela ciência, mas poderia muito bem ter sido fantasmas. Espíritos e assombrações que, invisíveis, entravam em você, roubavam o que havia de mais vivo e levavam embora, deixando o corpo vazio para virar o problema de outra pessoa. Então, nossos mundos viraram nossas casas. Nossos quartos, salas, pequenos metros quadrados de refúgio e conforto em meio ao caos.

Hoje, a placa de aluga-se saiu da janela. Será uma família que vai se mudar? Um casal jovem? Quem sabe um grupo de universitários? Festas, bebidas, pessoas se movimentando de um lado para o outro, dançando, arrumando o apartamento, parando na beira da janela para acender um cigarro, soltando a fumaça lentamente pela boca e pelo nariz, simultaneamente. Plantas penduradas na parede e no chão. Novas cores para diminuir a presença do branco sujo e do marrom gasto. Rosa, vermelho, amarelo, azul, preto. É preciso coragem e força para colorir o mundo de novo.

Em casa, nos acostumamos a ficar sozinhos. Enquanto conseguíamos pedir nossos vinhos, fazer videochamada com os amigos e tomar banhos demorados — na época, diziam que relaxava — até que não era ruim. Nos agarramos às pequenas delícias de ficarmos isolados e seguimos em frente, repetindo frases como “só mais um dia” e “vai passar”, como se fossem mantras. Meditações. Pensamentos positivos que, quanto mais forte pesassem na nossa cabeça, mais perto de se tornar realidade estariam.

Um dia, a luz acabou. Demorou quatro dias para voltar. O que estava na geladeira estragou e o fedor de carne podre ficou mais de uma semana pairando no ar. Na segunda vez que a luz foi embora, foram quase duas semanas sem energia. Duas semanas sem água gelada. Duas semanas sem videochamadas, sem comida conservada, sem banho quente. Duas semanas que o mundo que conhecíamos ficou em suspenso. Quando voltou, o noticiário deu pouca importância a isso. Entendemos que iríamos precisar nos acostumar a esses repentinos apagões de luz. Com o tempo, percebemos que o que estava sendo apagado ia muito além da corrente elétrica.

Antes do mundo acabar, eu tinha uma vida. Acordava cedo, fazia alguma atividade física — bicicleta quando o dia estava bom, academia quando estava ruim — ou aproveitava para voltar a dormir mais um pouco. Não demorava mais do que quinze minutos tomando café da manhã e me arrumava para trabalhar. No escritório, recebia ordens, dava ordens, produzia e, normalmente, tirava um tempo excessivamente longo de almoço e compensava os atrasos com uma ferocidade que me enchia de orgulho. Chegava exausto ao final do dia, mas quase sempre descobria uma segunda fonte de energia que me dava disposição para encontrar amigos, ir a um encontro, conhecer pessoas novas, ler um livro ou cozinhar. Às vezes, a disposição não vinha e eu me jogava no sofá, apertava o controle da televisão para ver qualquer coisa e adormecia ali mesmo. Aprendi o meu ritmo, as minhas vontades e me tornei o adulto que eu gostaria de conhecer se fosse outra pessoa.

Moro num quarto e sala, de tamanho excelente para uma pessoa, mas excessivamente pequeno quando ele se torna o seu lugar de lazer, descanso, atividade física e trabalho. Quando pediram que parássemos de frequentar lugares públicos, migramos nossos encontros sociais para as nossas casas. Encontramos amigos, cozinhamos, vimos filmes juntos. Até que o trajeto entre uma casa e outra passou a representar um perigo real. Não demorou para que as empresas para a qual trabalhávamos pediram que passássemos a trabalhar de casa. Claro, eram atividades que eram possíveis de serem desempenhadas de casa. Era uma forma de proteção. Menos gente na rua, menos chance de ser pego pelos fantasmas. Com o tempo, deixou de ser uma forma de proteção para ser uma maneira mais cômoda de demitir as pessoas. Muita gente perdeu o emprego. Perdi o meu. Não recebia ordens, nem dava ordens em mais ninguém. Deixou de importar quanto tempo levava o meu almoço. No início, tinha dificuldade em preencher meus dias. De uma rotina excessivamente ocupada para tempo livre demais. Rapidamente, me adaptei, e então as pessoas começaram a morrer.

Primeiro, o pai de um amigo, meio distante, meio próximo. Um baque, mas esperado. Depois, um colega de trabalho. Um tio. Minha mãe. Os números aumentavam a cada dia. Na televisão, víamos gráficos atrás de gráficos mostrando a evolução, como se tivéssemos uma meta para bater. Uma meta que nunca chegava, parecia um processo sem fim. Só nos restava nos acostumar.

Um dia, alguns meses trás, um desses fantasmas chegou perto demais. Sempre achei que os fantasmas não existiam de verdade, mas quando precisei ir à rua comprar pasta de dente — a minha tinha acabado de acabar e não atentei a tempo para comprar com antecedência e pedir para entregar — senti um golpe no peito me tirando o ar. Já tinha saído da farmácia, sacola com a pasta de dente e alguns chocolates, e, na porta do prédio, um fantasma me pegou. No início achei que tinha tropeçado tamanho o susto. Parei sobressaltado e senti algo entrar no meu corpo. Boca e narinas tomadas por uma corrente de ar que se movia para dentro de mim. Fiquei cheio e, de repente, a corrente começou a sair na direção oposta. Senti as pernas tremerem e precisei me apoiar na grade do portão. Tapei a boca e o nariz, abri com a chave fui cambaleando até o elevador, me esgueirando pela parede. Consegui apertar o botão, cheguei na porta de casa e entrei. Estava a salvo. Recuperei o ar e o que quer que o fantasma havia roubado de mim e me senti seguro novamente. Foi a última vez que saí.

Desse dia em diante, tive dias tranquilos e dias mais agitados. Quando a internet e e eletricidade funcionavam consegui ver amigos. Nos dias de apagão, lia, chorava, rabiscava — primeiro os papéis e, quando esses acabaram, passei a escrever nas paredes. Passei muito tempo imaginando quando sairíamos desse estado tenebroso e iríamos vivenciar o mundo fora das paredes das nossas casas. O sol batendo no rosto. Ou a chuva. O que viesse primeiro. Passei muito tempo fugindo do sol e, então, passei a desejar que o sol escaldante de verão ao meio-dia torrasse a minha pele. Queria andar sem rumo pela rua, só por andar. Só por poder, por querer.

Demoramos a perceber o que mundo havia acabado. Os fantasmas foram o nosso processo de reboot. Quem entendeu, terá a chance de vivenciar esse novo mundo que se descortina frente ao vidro embaçado das nossas janelas.

A placa de aluga-se saiu do apartamento que dá vista da minha janela e outras cores vão passar a morar lá.

Da rua, ainda sobe o cheiro podre de todas as pessoas que morreram, mas já não há mais lixo acumulado nas esquinas, nem galhos e folhas caídos pela calçada. Uma ou outra pessoa passa andando, meio às pressas, mas com ar desafiador. Aposto que pensam “esse mundo agora é meu. Eu dou as ordens.” Mas os fantasmas chegaram perto demais. Sabíamos que eles existiam, mas faltava evidência.

Esse novo mundo precisa de outras cores, até que venha a próxima leva de fantasmas. Sei que eles vêm.

Por ora, é preciso abrir a janela. Daqui, subo no parapeito e balanço as pernas para o lado de fora. Quero voar. Posso voar. Sei que posso. Nesse mundo, posso voar. O apartamento que estava para alugar já tem outras cores. Outras pessoas. Um casal. Ela está grávida. Mais vida. Que bom!

Fico de pé no parapeito e estou pronto para voar. Dou o primeiro passo para fora do apartamento. Como é boa a sensação de flutuar. Olho para trás. Meu corpo, já enegrecido, seco, com os olhos saltados e contorcido ficou no mundo antigo.

Em quanto tempo será que consigo chegar naquela nuvem lá longe?

Rio de Janeiro, 26 de abril de 2020

Essa história faz parte dos desafios que eu e Adriana Kimura temos nos feito durante esse período de quarentena. Começamos no dia 26 de abril e todo fim de semana eu lanço um desafio de escrita para ela e ela para mim. Esse foi resultado do desafio dessa semana.

Desafio 01 — Adriana/Lucas

Se quiser, pegue uma taça de vinho e leve para o seu quarto.

Bom, pensei em você ir até a janela do seu quarto, olhar através dela, bem no centro, para frente. O que você vê?

A partir disso, quero que escreva sobre esse personagem que olha através da sua janela, sobre o que ele vê, o que faz e como se sente em algum momento — a gente não sabe daqui quanto tempo — ao descobrirmos que o “novo normal” chegou e já podemos retomar as nossas vidas públicas.

Um conto ficcional do primeiro dia que a gente possa considerar depois disso tudo.

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Lucas Waltenberg
Histórias para ler no fim do mundo

Especialista em conteúdo digital e storytelling, professor de comunicação e viciado em descobrir músicas que traduzem estados de espírito.