Outra crônica de morte anunciada

Dri Kimura
Histórias para ler no fim do mundo
6 min readJun 6, 2020
Foto de Nathalie Jolie no Unsplash

_ É chá de romã com cranberry.

_ Então, aceito.

Trouxe duas canecas idênticas ferventes, com a infusão cor de beterraba, e uns biscoitos de canela — como fez tão insistentemente pelos anos que passamos casados, que já eram indissociáveis os aromas de sua figura falando pelos cotovelos ao fundo, perdendo-se entre o ponto da conversa e os inúmeros exemplos. Nenhum dos móveis na sala parece ter mudado de lugar, mas alguém os limpou meticulosamente por debaixo dos pés, perseguindo principalmente as aparências. Podia esperar que o apartamento tivesse se tornado escurecido, ou que ela o houvesse preenchido de gatos e flores de pano, como acontece tão inevitavelmente com o passar dos anos em casas habitadas por senhoras que envelhecem sozinhas. Mas, a janela ampla com vista inteira do cômodo para a Zona Oeste da cidade continua sem cortinas e o carpete de madeira não cedeu a tons diferentes com o sol de três da tarde ao final de cada dia.

_ Vejo que continuou a pintar. _ Um cavalo deformado em aquarela faz coleção, dentro de diferentes molduras, todas caras demais para essas paredes.

_ Bem, eu gosto de tentar não muito a sério.

E por fim aprendeu a fazer pausas longas, como se a essa altura tivesse sabedoria demais para tentar se explicar. Já não desvia olhares, mastigou um biscoito esperando não mais que o próprio tempo, talvez para atribuir alguma expectativa não verbal antes de dizer:

_ É o câncer. Há algumas questões para lidarmos. _ Pareceu rir-se dos milhares de pílulas com ômega 3, lactobacilos, vitaminas B, D, E, das fórmulas homeopáticas e fitoterápicas ainda espalhadas pelas prateleiras da cozinha. Ia morrer aos 63 anos, da doença mal justificada pelos maus hábitos e pelo atraso de diagnóstico. Do maior dos clichês entre cientistas e cineastas sem resposta. Morrer porque já não havia o que pudessem fazer.

Eu teria perdido a cabeça, arremessando contra ela todos os jargões e especialistas que pudesse sacar dos contatos no celular, a teria convencido de que havia agido por impulso e curiosidade exagerados em grandes decisões que a levaram até ali. Estaria pronto para mover os meus próprios mundos para salvar a mulher que fui amar antes dos meus 30 anos e que andei dizendo ser a única aos longo dos 40, até que, aos 50, quando já estavam o Elias criado e nossas aposentadorias resolvidas no país sem previdência, me disse que eu fosse embora, que ela ia ficar.

Passei duas semanas no apartamento do irmão dela. Estávamos certos de que essa seria uma de suas rotinas de cinco meses, como foram tantos namorados, caprichos artísticos e cidades que morou. Incapaz de incorporar o longo prazo da mudança, fechou as paredes com uma família de equinos tortuosos, envergou de peso as duas prateleiras da estante branca de compensado, com livros que se curvaram à mira da janela ensolarada, comprou uma árvore de vaso que pendia sobre a mesa, deitando folhas às nossas xícaras. Não tinha paciência com o que precisasse se repetir muitas vezes para fazer valer. Tornou-se mais alta do que podia me lembrar e sua voz tomou um timbre inesperado, desidratado, de ex-fumante. Não falou comigo a não ser por telefonemas mal planejados, que ela me fazia como quem entrega os problemas a um taxista por falta de oportunidade íntima. Até hoje, porque finalmente resolveu lidar com algumas questões.

_ Quero te entregar algo. _ Estendeu-me um caderno escolar A5, com losangos e textura na capa. Fiz que ia abri-lo.

_ Precisamos levar ao Elias primeiro. _ Pegou a mesma sacola retangular que usava de bolsa 13 anos antes, onde nunca foi capaz de encontrar as chaves, nem a carteira e era preciso separar em bolsas menores os tipos de coisas que trazia dentro.

Nosso filho vivia convencido de que haveria arcos de aventura, poesia e força política conduzindo o ritmo de sua vida. Cresceu junto à geração dos que se auto proclamavam merecedores de grandes acontecimentos e recompensas, imunes à pressa pela autossuficiência e sob o efeito de vitória deixado das lutas registradas pela nossa geração. Muito projetado na mãe, estava cheio de iniciativas engatilhadas para quando o mundo virasse do avesso, todos fossem convocados às ruas ou às rodas intelectuais de pessoas que, na verdade, já não se reuniam há décadas.

O apartamento havia se escurecido junto à conversa lúcida que não imaginamos ter sobre a morte. Ela mesma se levantou apanhando as xícaras e farelos, motivada por uma intenção nata que, como adivinhou mais de vinte anos antes, eu não desenvolveria em nenhuma parte da vida — a de assumir a responsabilidade pela desordem. Uma chuva silenciosa e abundante nos trouxe o pretexto de estender alguns minutos ali. E passamos horas, conformados com esse tempo que nos foi dado para viver juntos a vida que se descobre quando a experiência de saber supera a energia de provar um ponto.

Vi nosso antigo quarto de relance e não notei grandes diferenças. Ainda usa um banco alto de madeira para apoiar dois livros e uma pequena moringa onde a água envelhece até que ela se dê conta de lavar, secar, encher e tomar até quatro goles, porque se empanturra fácil com água. Levantou-se para ir ao banheiro e deixou comigo o caderno, talvez porque sempre teve dificuldades de acreditar na minha malícia.

Aquele hábito de anotar os acontecimentos, especialmente quando já não sentia que podia falar sobre eles, estava justificado por datas e blocos de texto com confissões e descrições de todos os tipos. O caderno vinha de 32 anos para trás, passava por todo o período de gestação do Elias, em uma espécie de diálogo silencioso que ela manteve com o feto, para que ele tivesse consigo, inconscientemente e pela vida toda, a história por trás da ideia de quem pensava ser. Sobre como sua mãe pudera entortar — além dos cavalos pelas paredes, os livros, estantes, plantas ao redor — também seu acontecimento de fundação. Era filho de outro — e nem o caderno sabia de quem.

Saiu do banheiro e me pegou com o caderno e os olhos escancarados. Pude ver o que estava a fazer. Queria agora, com sua morte clichê, suas manias batidas e sua existência tão pouco criativa, deixar-me com alguma reviravolta. Queria pintar-me um de seus cavalos, mais deturpado por falta de habilidade que por movimento surrealista, expressionista, vanguardista. Queria, por tantos anos de silêncio e falta de amor, uma saída triunfal. Que Elias tinha o direito de saber por ela, que nunca fui pai o suficiente para me indignar em saber que não era, de fato, pai.

_ Então, a questão é você, outra vez. Não faça o esforço de se convencer de que faz isso por ele, porque ele já está muito bem com quem se tornou.

_ Você sabe que desisti das discussões com você 30 anos atrás.

Virou-se a pegar a bolsa como fazia assim que nos conhecermos, para apenas ameaçar ir embora e ver até onde me comovia com os gestos plásticos, a atitude exagerada. Desta vez, no entanto, pegou o telefone já em chamada para o Elias e não pude ver por momentos separados como fui segurá-la pelos braços. Costumava bastar, segurava seus punhos com uma única mão. Havia crescido de velha, estava forte justamente por não ter o que perder. Só pude conter-lhe pelo pescoço.

Procurei por ciúme, mas não o senti. Já não me interessava saber de quem poderia ter vindo o Elias. O menino era todo eu, chegou a homem torcendo para o meu time, o que não aprendeu comigo pegou mania dela, mas não havia espaço para outro pai. Sei como podíamos ir longe em nossas discussões, porque éramos viciados no jogo, na argumentação por si. Senti enfraquecer-se entre meus dedos e percebi que já não precisava levar essa, que ela podia ficar com a última história. Quando abri a mão, caiu de um só movimento, desdobrou-se inteira diante dos meus pés. Vi que, como por tantas outras vezes, havíamos ido longe demais.

Esperei que recuperasse a consciência sentado ao lado da estante. O móvel rangia muito discretamente, a despencar por anos, cheio de livros por ler. Na janela, o vidro molhado já trazia ensolarada a paisagem deformada da cidade ao fundo, uma releitura atravessada pelo mau tempo.

_ Alô, mãe? Mãe, tá me ouvindo?

Estava morta.

Desafio 02 — Lucas/Adriana

E o seu desafio do fim de semana é…

O cômodo onde você está agora é ocupado por duas pessoas. Podem ser amigos, um casal, parentes, vizinhos…

O que importa é a situação e o ambiente. Olhe para o cômodo, mergulhe nele e use o que está à vista para criar a cena.

Estão os dois personagens prontos para sair de casa, mas não para de chover. “Quando a chuva passar, saímos”. Era esse o combinado.

Uma pena.

Se não fosse pela chuva, eles não teriam ficado tanto tempo juntos. Se não tivessem passado tanto tempo juntos, um segredo importante não teria sido descoberto. Se o segredo não tivesse sido descoberto, um deles não teria assassinado o outro.

--

--