Os policiais militares estão preparados para as ruas?

Júlia Soares
Histórias para se contar
8 min readDec 9, 2016
Crédito: Rodrigo Ziebell/SSP/Divulgação

Ao longo de 2016, fomos confrontados diariamente com famílias perdendo pais, mães, irmãos, amigos. A mãe assassinada na porta da escola quando foi buscar o filho; o menino morto na saída do colégio; o empresário morto por engano no estacionamento de um grande hipermercado de Porto Alegre; a execução de um suspeito por um policial na frente do Hospital Cristo Redentor, também na Capital gaúcha. Moradores das regiões centrais das cidades estão sentindo na pele o que pessoas das zonas periféricas sempre souberam: a violência está logo ali.

Nos seis primeiros meses deste ano o Rio Grande do Sul registrou 1.276 homicídios dolosos, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública. O colapso é tamanho que, em junho deste ano, o então titular da pasta, Wantuir Jacini, lançou o Plano Estadual de Segurança Pública. A iniciativa previa investimentos da ordem dos R$ 166 milhões para contratação de novos policiais — já aprovados em concurso -, retomada do pagamento de horas extras e diárias e uma reestruturação do sistema penitenciário. De lá para cá, Jacini exonerou-se do cargo (sendo substituído por César Schirmer, ex-prefeito de Santa Maria), 136 agentes da Força Nacional de Segurança passaram a atuar no Estado, e outros 26 novos policiais e peritos chegaram ao Estado para auxiliar nas investigações de homicídios.

Quais seriam as causas dos problemas da segurança pública no Rio Grande do Sul? É claro que as dificuldades financeiras atravessadas pelo Estado são de grande influência na aparente ineficiência das forças militares de segurança. As exigências feitas aos futuros brigadianos são suficientes? O preparo oferecido a estes policiais está de acordo com a realidade que enfrentarão nas ruas? São perguntas como essa que a reportagem tentará responder.

A Formação da Brigada Militar

No dia 16 de novembro de 2016, a Brigada Militar iniciou o treinamento de 1,3 mil novos soldados. Destes, 1.040 atuarão no policiamento ostensivo. Na cerimônia, ocorrida na Academia de Polícia Militar, em Porto Alegre, o comandante-geral da BM, Alfeu Freitas Moreira, afirmou que esses alunos teriam aulas de técnica policial militar, uso de arma de fogo, decisão de tiro, abordagem policial e preenchimento de documentação operacional antecipadas pelo Departamento de Ensino da Brigada Militar. Segundo ele, em cerca de três meses, esses novos policiais já terão condições de atuar na rua.

Para ser candidato ao cargo de soldado na Brigada Militar, alguns dos requisitos são: ser brasileiro; ter obtido aprovação nos exames intelectual, físico, psicológico e de saúde; ter até 25 anos de idade; ter altura mínima de 1,65 m para candidatos do sexo masculino e 1,60 m para candidatas do sexo feminino, possuir Ensino Médio (2º Grau) completo ou equivalente. Após a aprovação no concurso, o candidato passa por testes físicos e exame psicotécnico para poder iniciar o curso de formação da BM.

Segundo o coronel Ricardo Fraga Cardoso, diretor do Departamento de Ensino da Brigada Militar, o foco “é proporcionar as plenas condições técnicas para o policial poder prestar um serviço de qualidade e eficiência para a sociedade gaúcha, recebendo uma gama de conhecimentos para poder atuar nas atividades de polícia ostensiva, buscando a preservação da ordem pública e a paz social”.

O Curso Básico de Formação Policial Militar contempla cerca de 50 disciplinas, com a carga horário total de 1.600 horas-aula. Algumas das atividades oferecidas no são História da BM, Sociologia da Violência e da Criminalidade e Abordagem Sociopsicológica da Violência, Ética e Cidadania, Relações Humanas, Uso Diferenciado da Força e da Arma de Fogo, Decisão de Tiro, Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Penal Militar, Direito Processual Penal Militar, Polícia Ostensiva (doutrina e técnica), Polícia Comunitária, Estágios Supervisionados, Mediação de Conflitos e Suporte Básico da Vida em Urgências e Emergências. Para o coronel, não haveria a necessidade de o candidato ter uma formação anterior em segurança pública pois, quando entram na BM, recebem uma capacitação direcionada para esta área .

Segundo o especialista em Segurança Pública, Marcos Rolim, tanto o tempo de formação, que leva entre seis meses e um ano, quanto os conteúdos aprendidos pelos alunos da BM não são suficientes para preparar os soldados. De acordo com ele, uma das formas de se elevar o nível de ensino é realizar uma modernização dos conteúdos oferecidos na escola de formação de soldados. “Primeiro porque o tipo de capacitação é muito superficial, onde se dá muito mais importância para disciplina de conteúdo operacional e jurídico, mas o tema mesmo de formação em segurança pública não acontece, porque os instrutores não têm essa qualificação”, argumenta.

Para Rolim, o ideal seria que se exigisse dos candidatos formações mínimas. “Não pensamos em segurança pública a partir do conhecimento em segurança pública. Ensinamos a disparar armas, atirar bombas, a obedecer. Não ensinamos os soldados a pensar em segurança pública”.

Uma das alternativas possíveis, segundo ele, é que se crie uma tradição brasileira em formação em segurança pública, com cursos de formação para essa área. No Brasil já existem alguns bacharelados em Segurança Pública, mas em sua grande maioria são voltados a pessoas que já atuam na área. A Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, foi a primeira instituição de ensino superior a contar com o bacharelado em Segurança Pública para todos os candidatos em suas grade curricular, em 2012. Mais recentemente, a PUC do Rio Grande do Sul anunciou que passará a oferecer essa opção de formação superior a partir de 2017. Para Rolim, a exigência prévia de um bacharelado seria uma enorme revolução na formação dos policias no Brasil. “É preciso ter um policial mais bem formado, com uma visão mais ampla a respeito dos desafios que envolvem a segurança pública”, opina. Segundo ele, essa mudança na exigência prévia de formação “abalaria todos os alicerces” a partir dos quais o policiamento é baseado no Brasil hoje.

A rigor nós temos no Brasil um perfil de policial militar que é recrutado levando em conta, por exemplo, condições físicas como a altura. Isso corresponde a um perfil antigo de policial, que deveria ser forte fisicamente e profundamente disciplinado, para que fosse bem mandado e cumprisse ordens. Não é possível que continuemos pensando o perfil do policial moderno a partir disso.
Marcos Rolim, especialista em segurança pública

Já Ricardo Balestreri, ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, acredita que o nível de exigência acadêmica não resolve todos os problemas. “O maior drama da formação policial no Brasil é o drama da formação moral. E isso não é feito na academia, a universidade não tem estofo para garantir essa formação moral, ela trabalha a formação intelectual”, reflete.

Particularmente, eu acho que o nível de exigência acadêmica não resolve todos os problemas. O maior drama da formação policial no Brasil é o drama da formação moral. E isso não é feito na academia, a universidade não tem estofo para garantir essa formação moral, ela trabalha a formação intelectual. É claro que eleva o patamar o sujeito ter um diploma universitário, mas não garante que ele tenha uma conduta correta.

Para Balestreri, os currículos das academias de polícias no Brasil formalmente podem ser considerados bons, tendo, inclusive, uma carga expressiva de direitos humanos. “O problema que nós encontramos é no chamado currículo oculto, que são as práticas de bastidores da formação policial. Veremos que há muito bullying presente, eventualmente também podemos verificar tortura contra os policiais. Aqui cometemos um paradoxo pedagógico ao pedir que eles respeitem e promovam os direitos humanos, mas não respeitando e não promovendo os direitos humanos deles”.

Em entrevista à Agência Pública, o ex-soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro Rodrigo Nogueira Batista, de 33 anos, condenado a 18 anos por furto qualificado, extorsão mediante sequestro e atentado violento ao pudor e a 12 anos e 8 meses no Tribunal do Júri por tentativa de homicídio triplamente qualificado, fala sobre como, naquele Estado, os policiais militares são treinados para agir como carrascos desde os primeiros momentos de treinamento. Segundo ele, “o processo de perversão começa no início da formação”.

Dentro do CFAP (Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças da Polícia Militar), a cultura dos instrutores não é formar policiais. É formar combatentes. E aí é que tá o problema: você formar um combatente para trabalhar numa coisa tão complexa quanto o aspecto social que ele vai ser inserido. Um dia o policial tá trabalhando com um mendigo, no outro com um juiz, no outro com um assassino, no outro com um estuprador. Para você preparar um combatente para trabalhar nesse contexto, é muito delicado. Demora muito. Se isso não for muito bem feito você acaba criando monstros — ex-soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro Rodrigo Nogueira Batista, 33 anos.

Bolsa Formação e a educação continuada para policias militares

Durante o segundo mandato do ex-presidente Lula, a Secretaria Nacional de Segurança Pública, sob a batuta de Ricardo Balestreri, implantou o Programa Nacional de Segurança com Cidadania, o Pronasci. Segundo Balestreri, o grande foco de trabalho foi a qualificação do capital humano das forças de segurança. Uma das ações do Pronasci era o Bolsa Formação, que visava investir no aprimoramento da capacitação de policiais civis, agentes penitenciários, bombeiros, policiais militares e peritos. O projeto oferecia um acréscimo aos salários dos militares de até R$ 400,00 para agentes que recebiam salário de até R$ 1,4 mil para que eles participassem de cursos de aperfeiçoamento. O programa tinha o objetivo de investir R$ 6,7 bilhões até o fim de 2012. No entanto, de acordo com dados do Portal da Transparência, extraídos em Outubro de 2016, o governo federal investiu pouco mais de R$ 3,1 bilhões no programa.

Balestreri lembra, no entanto, de sucessos dos primeiros anos de atividade do Bolsa Formação. “Criamos 77 cursos de graduação latu sensu gratuitos para policiais, bombeiros e guardas municipais. Criamos também um programa EaD que, com três anos e meio de atividade, atingiu em torno de três milhões de matrículas. O Bolsa Formação surgiu como uma forma de estímulo aos estudos que funcionou muito bem, dada a adesão massiva de policiais, guardas e bombeiros”, destaca.

“A bolsa foi fundamental num processo de operadores de segurança muito mal pagos no Brasil, sem tempo para se dedicar aos estudos. Ela entra como um fator estimulante aos estudos, mas também como elevação dos ganhos policiais. Isso, de certa maneira, forçou os Estados e prefeituras a melhorarem os rendimentos da sua força de segurança”, lembra.

Everton Machado Nunes, soldado da Brigada Militar de Esteio há 10 anos e instrutor do Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (PROERD) há seis, fez sete cursos financiados pelo Bolsa Formação. Everton trabalha nas salas de aula durante o ano letivo da escolas. A partir de dezembro, quando é feita a última formatura do programa, ele atua na sala de operações da BM. Seus quatro primeiros anos na Brigada Militar foram na rua.

Segundo ele, os ensinamentos dos cursos de especialização do Bolsa Formação lhe foram de grande valia, e pode aplicar na prática, no exercício do policiamento ostensivo. “Principalmente no policiamento comunitário, policiamento escolar, Maria da Penha e Direitos Humanos, pois assim nós conseguimos agregar o conhecimento das leis existentes ao que vemos no dia a dia. Toda ocorrência é diferente. Estes cursos foram extremamente importantes pois nos dão um norte, nos ajudam durante a jornada de trabalho. Como o governo já não auxilia mais, poucos brigadianos fazem cursos de especialização por conta própria, a maioria para na primeira formação. Se ainda houvesse um auxílio financeiro certamente mais policiais teriam mais preparo para estar na ruas”, explica.

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