Intolerância racial
no futebol: além
das quatro linhas

Jornalismo :: Unisinos
Histórias para se contar
18 min readNov 27, 2014

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Desde o início do século XX, racismo nos campos brasileiros é
reflexo do comportamento da sociedade fora dos estádios

Por Guilherme Rovadoschi e Leonardo Vieceli

O Estádio Olímpico completaria 12 anos de vida em setembro de 1966. Sete meses antes da data festiva, uma partida também mereceria festejos por parte da torcida gremista. Na noite de 16 de fevereiro, o Grêmio enfrentaria o selecionado da União Soviética. Seria apenas um amistoso. Seria só mais um jogo se, embaixo das traves da goleira adversária, não estivesse o lendário arqueiro Lev Yashin, o Aranha Negra. Três anos antes, em 1963, Yashin recebeu a Bola de Ouro da revista “France Football” e, consequentemente, foi eleito o melhor jogador da Europa.

Apelidado de Aranha Negra em razão da cor de seu uniforme, ele é, até hoje, o único goleiro a receber tal premiação. Entretanto, naquela noite de verão gaúcho, o jovem Alcindo Martha de Freitas, à época com 21 anos, não se intimidou com o adversário. Filho de mãe bugre e pai “pelo-duro”, o centroavante anotou os dois gols da vitória gremista. O último deles, uma pintura. Uma jogada que insiste em permanecer na memória do ex-jogador, assim como o velho Olímpico teima em continuar de pé na Azenha.

“Peguei a bola no meio-campo e driblei uns três ou quatro. Quase entrei com bola e tudo. Eu era jovem, não sabia quem era Aranha Negra ou ‘Aranha Azul’. O meu negócio era jogar futebol”, relembra.

Com a camiseta do Grêmio, ninguém fez mais gols do que Alcindo (Foto: Reprodução)

A atuação brilhante de Alcindo na ocasião era um prenúncio do que viria nas próximas temporadas. Em duas passagens pela equipe gremista, o Bugre Xucro — como foi apelidado — marcou 231 gols. Graças à marca, tornou-se o maior artilheiro da história tricolor.

Embora guarde belas memórias do passado, Alcindo relembra os obstáculos que enfrentou em razão da cor de sua pele. Por telefone, o ex-centroavante, hoje com 69 anos, revela que já foi alvo de manifestações racistas. Dono de fala tranquila — interrompida apenas uma vez pelos latidos dos seus cinco cães — , ele diz que ouviu de adversários xingamentos como “macaco”.

Quase 50 anos depois do “jogo-chave” na carreira de Alcindo, muita coisa mudou no Grêmio. O clube conquistou o Brasil, a América e o mundo. Além disso, a equipe não manda mais os jogos na Azenha. Atual casa gremista, a Arena situa-se no bairro Humaitá. E foi justamente na Zona Norte de Porto Alegre que o Grêmio reencontrou, no fim do último mês de agosto, outro adversário cujo goleiro atende pelo apelido de Aranha. Mas, ao contrário do que ocorreu em 1966, esse episódio não trouxe alegria à torcida. Válido pela Copa do Brasil, o confronto entre o clube gaúcho e o Santos escancarou um problema social do país.

Nos minutos finais da partida, Mario Lúcio Duarte Costa, o Aranha santista, foi até o árbitro Wilton Pereira Sampaio demonstrando sinais de irritação. E denunciou a postura de torcedores gremistas que estavam na arquibancada atrás de uma das goleiras: o atleta foi alvo de manifestações racistas.

“Xingar, pegar no pé, é normal. Agora, me chamaram de ‘preto fedido, seu preto, cambada de preto’. Estava me segurando. Quando começou o corinho com sons de macaco, eu até pedi para o câmera filmar. Eu fiquei puto. Quem joga aqui sabe: sempre tem racista no meio deles. Está dado o recado, agora é ficar esperto para a próxima”.
Aranha, em entrevista após o jogo válido pela Copa do Brasil

Apesar de ter vivido situações semelhantes à de Aranha, Alcindo acredita que o goleiro do Santos exagerou em alguns momentos ao comentar o que presenciou na Arena. Para o artilheiro gremista, o racismo é um problema que “não morrerá nunca no Brasil”. “Todos nós temos um pezinho na África. Eu sou preto e tenho orgulho da minha raça. A sociedade precisa ter consciência de que somos um povo só. É só a pele que é diferente”, pontua o Bugre Xucro.

Aranha, mais uma vítima do mesmo problema (Foto: Divulgação/Santos)

Cores, vitórias e derrotas

Para encontrar parte das raízes do preconceito racial no futebol brasileiro, não é preciso deixar o Rio Grande do Sul. Contudo, é necessário encarnar o espírito de Marty McFly – personagem do filme De volta ao futuro – e retornar ao passado. Mais precisamente, ao final dos anos 1910.

À época, a Liga Nacional de Football Portoalegrense iniciava as atividades na capital gaúcha. Entretanto, não foi com esse nome que a organização ficou conhecida. Formada principalmente por jogadores negros, que eram proibidos de integrar equipes de atletas brancos, a Liga da Canela Preta foi uma resposta ao pensamento racista que imperava pelos campos – e ruas – do município.

Doutor em História e pesquisador da UFRGS, José Antônio dos Santos, 49 anos, afirma que as pesquisas sobre o desenvolvimento do futebol em Porto Alegre ainda são “incipientes”. Em relação à Liga da Canela Preta, o professor afirma que o “apelido” da competição foi criado possivelmente após ela ser extinta, na década de 1930, ou durante os últimos suspiros da organização.

“A palavra ‘Nacional’ está presente no nome porque os negros eram reconhecidos como ‘nacionais’ à época”, menciona. A mesma alcunha, por outro lado, não era utilizada para denominar descendentes de imigrantes europeus.

Professor pesquisou a respeito da Liga da Canela Preta (Foto: Guilherme Rovadoschi)

Santos também ressalta que a participação da população negra no futebol da capital gaúcha é perceptível desde os primeiros gols marcados na cidade. “O futebol chegou a Porto Alegre em 7 de setembro de 1903, quando houve uma apresentação do Sport Club Rio Grande no Parque da Redenção. Foi a primeira partida noticiada. A população negra participou de alguma forma, como, por exemplo, assistindo ao jogo”, explica.

Tesourinha, símbolo contra o racismo (Foto: Reprodução de Internet)

Vinte anos após o fim da Liga da Canela Preta, também no Rio Grande do Sul, Osmar Fores Barcelos, o Tesourinha, ganhou notoriedade como símbolo do combate à intolerância racial. Em 1952, o jogador se tornou o primeiro negro a atuar com a camiseta do Grêmio, formado cinco décadas antes, em 15 de setembro de 1903.

Tal feito, aliado à qualidade do atleta com a bola nos pés, levou o professor de Jornalismo da Unisinos Sérgio Endler, 59 anos, a escrever o livro Tesourinha em 1984. Na obra, o jornalista descreve-o como o “melhor ponta-direita gaúcho de todos os tempos, o Craque Melhoral”.

“A maior contribuição do Tesourinha ao futebol gaúcho foi o seu futebol extraclasse. Todos que o viram jogar falam isso”, resume o professor.

Sérgio Endler eternizou em palavras o talento de Tesourinha (Foto: Leonardo Vieceli)

Endler também comenta que o título de “Craque Melhoral” surgiu em uma votação de abrangência nacional. Em 1948, três anos depois de os brasileiros voltarem às urnas para escolher o presidente, o medicamento Melhoral lançou um concurso para premiar, ao invés de um candidato político, um jogador brasileiro. Em janeiro de 1949, o resultado foi apresentado: Tesourinha alcançou a marca de 3,8 milhões de votos. “A fama de craque ultrapassava fronteiras”, sublinha o jornalista.

Antes de vestir azul, preto e branco, Tesourinha se destacou pelo maior rival gremista, o Internacional. No colorado, ele fez parte da memorável equipe do Rolo Compressor, que venceu oito títulos estaduais em nove anos, de 1940 a 1948. Entre outras razões, a superioridade vermelha estava atrelada à presença de jogadores negros – e talentosos – como Tesourinha, postura adotada pelo Inter desde 1928.

Tesourinha em prosa e verso (Foto: Leonardo Vieceli)

No Vasco, em 1951, o craque gaúcho integrou o primeiro time do Rio de Janeiro que venceu um Campeonato Carioca no Estádio Jornalista Mário Filho, o Maracanã. No entanto, a relação entre Tesourinha e o clube cruz-maltino ultrapassou os limites dos gramados.

A exemplo do jogador, o Vasco também é um dos marcos do combate ao racismo no futebol brasileiro. “Quando Tesourinha sai do Inter, considerado o Clube do Povo, ele vai para o Vasco, que também é modelo de acolhimento de jogadores afrodescendentes”, destaca Endler, referindo-se à atitude que o Gigante da Colina tomou em 1924.

À época, o clube carioca recusou o pedido da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA) para que 12 atletas negros fossem excluídos da time. Na ocasião, a equipe tentou impedir, feito um marcador implacável, a vitória do preconceito dentro dos campos.

O gol que calou o Maracanã: três culpados, uma só cor

(Foto: Reprodução)

Um ano antes de o Vasco de Tesourinha vencer no Maracanã, o local foi palco de uma das maiores decepções do futebol brasileiro. Na final da Copa do Mundo de 1950, o chute disparado pelo uruguaio Alcides Ghiggia frustrou 200 mil torcedores que esperavam pela vitória da Seleção Canarinho.

Movido pela ânsia de escolher os culpados pela derrota, o país elegeu três vilões: o goleiro Barbosa, o lateral-esquerdo Bigode e o zagueiro Juvenal. Três vice-campeões. Três negros. “Basta lembrar que a derrota do Brasil em 1950, no campeonato mundial de futebol, provocou um recrudescimento do racismo. Culpou-se o prêto pelo desastre de 16 de julho”, escreveu justamente o jornalista Mário Filho, na segunda edição do livro O Negro no Futebol Brasileiro.

Além de vencer o Brasil dentro de campo, a equipe uruguaia foi precursora no combate à discriminação racial. Em Futebol ao sol e à sombra, Eduardo Galeano salienta que, nos idos de 1916, o Uruguai era o único país do mundo que contava com jogadores negros em sua seleção nacional. Aliás, foi da Celeste Olímpica que surgiu o primeiro ídolo internacional do futebol. E ele era negro.

Conforme Galeano, José Leandro Andrade encantou a Europa durante a Olimpíada de 24. Tamanha qualidade do atleta rendeu elogios da imprensa francesa, que apelidou o uruguaio de “A Maravilha Negra”.

Pó de arroz para driblar exigências

Ao longo da história do futebol brasileiro, o racismo também teve espaço garantido fora de campo. E isso ficou nítido no início do século passado. Conforme Mário Filho, no Rio de Janeiro, enquanto que a elite da população assistia aos jogos acomodada em arquibancadas, os populares permaneciam no setor da “geral”. Lá, torcedores negros dividiam espaço para ver os seus times.

O Fluminense, uma das tradicionais equipes cariocas, foi fundado em 1902 para ser um clube elitizado. Uma instituição voltada àqueles que frequentavam as arquibancadas. E não a “geral”.

Carlos Alberto, o pó de arroz (Foto: Reprodução)

Para atuar no clube das Laranjeiras, era preciso ser branco. Ou, então, encontrar uma maneira de driblar as exigências. Foi isso que o mulato Carlos Alberto tentou fazer em 1914. À época, o jogador enchia a rosto de pó de arroz para disfarçar a cor da pele. Mário Filho conta que, prontamente, as torcidas adversárias utilizaram a situação para provocar os integrantes do clube de elite. Pó de arroz virou ofensa contra os tricolores.

De acordo com o historiador José Antônio dos Santos, a intolerância nos estádios reflete o pensamento que se perpetuou no país em décadas e atingiu personagens como Carlos Alberto e o goleiro Aranha. “O racismo no Brasil é diário e aparece em situações de conflito. O estádio é um espaço de confronto esportivo. Se o preconceito no futebol não for considerado parte da sociedade, não será tratado nunca”, comenta.

Remuneração ainda é desigual

Ronaldinho Gaúcho, um dos três negros entre os 20 mais bem pagos da Série A do Campeonato Brasileiro (Foto: Divulgação/Atlético-MG)

Se a discriminação de outrora ainda existe, com algumas diferenças, o que mudou drasticamente - e incorporou várias cifras - foi a remuneração dos grandes jogadores.

Para se ter uma ideia, conforme texto do jornalista David Coimbra, Tesourinha assinou o seu primeiro contrato, no Rolo Compressor, por um salário mínimo. E, como reforço, recebia meio quilo de carne e dois litros de leite.

Atualmente, se negros, brancos e pardos têm as mesmas atribuições dentro do campo, fora dele a recompensa ainda é desigual.

Segundo dados divulgados pela Pluri Consultoria, dos 20 maiores salários anuais do futebol brasileiro em 2013, apenas três eram de atletas negros.

Há um ano, apenas Ronaldinho Gaúcho, então jogador do Atlético-MG; Clarence Seedorf, atuando pelo Botafogo; e Dedé, zagueiro campeão nacional pelo Cruzeiro, figuravam na lista dos mais bem pagos.

A diferença salarial também aparece entre todos os demais trabalhadores do país. Em sua última pesquisa sobre o tema, no início de 2014, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou que trabalhadores de cor negra ou parda ganharam, em média, muito menos do que os indivíduos de cor branca em 2013.

Os dados salientaram uma realidade cruel: um trabalhador negro no Brasil ganha, em média, pouco mais da metade — 57,4% — do rendimento recebido pelos trabalhadores de cor branca. Em termos de comparação, a média salarial dos trabalhadores negros é de R$ 1.374,79, enquanto que a média dos trabalhadores brancos chega a R$ 2.396,74.

Futebol em segundo plano

Paulo César Tinga e Márcio Chagas da Silva foram personagens centrais de duas histórias envolvendo atos racistas em 2014. Tinga, jogador experiente, tarimbado e dono de carreira vitoriosa e ilibada, passou por um dos momentos mais difíceis de sua trajetória.

No dia 12 de fevereiro, durante partida de seu time, o Cruzeiro, contra o Real Garcilaso, no Peru, pela Taça Libertadores da América, o atleta foi ofendido pela torcida rival através de gestos obscenos e imitações de “macaco” que se proliferaram pelas arquibancadas de Huancayo.

Márcio Chagas da Silva e Tinga em coletiva com o Ministro do Esporte, Aldo Rebelo (Foto: Divulgação)

“Eu queria não ganhar todos os títulos da minha carreira
e ganhar o título contra o preconceito contra esses atos racistas.
Trocaria por um mundo com igualdade entre todas as raças e classes”.
Paulo César Tinga, logo após a partida entre Cruzeiro e Real Garcilaso

A cada toque na bola feito por Tinga, os insultos se repetiam, em alto e bom som. O jogador ficou abalado. Saiu de campo ao final da partida se sentindo derrotado. Mal sabia que ali iniciou mais uma batalha do bem contra o mal. E o mal não tinha cor. Tinha nome: racismo.

Os protestos contra o ato ocorreram em toda a imprensa. Jogadores, dirigentes e jornalistas abordaram o tema e cobraram medidas. A solução imposta pela Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) foi a abertura de uma investigação, infundada até hoje, e a cobrança de uma multa no valor de 12.000 dólares, aproximadamente R$ 27.890, além de uma advertência pelo episódio.

O ex-árbitro de futebol, e agora comentarista de arbitragem da RBS TV, Márcio Chagas da Silva viveu um episódio parecido em solo gaúcho. Apitando a partida válida pela 12ª rodada do Campeonato Gaúcho, entre Esportivo e Veranópolis, em março deste ano, Márcio afirmou ter sido vítima de xingamentos racistas desde a chegada ao estádio Montanha dos Vinhedos, em Bento Gonçalves.

“Infelizmente, esse tipo de atitude por parte de alguns torcedores
infelizes está voltando à tona. Não posso generalizar, porque
foram só alguns que se manifestaram de forma racista”.
Márcio Chagas da Silva, em entrevista ao programa “Sala de Redação”,
da Rádio Gaúcha

Durante a partida, Márcio relatou ouvir expressões como “macaco”, “seu lugar é na selva” e “volte para o circo”. Após o apito final, a surpresa. No estacionamento privativo da arbitragem, o árbitro encontrou o seu carro com fissuras na lataria e bananas sobre o capô. O ocorrido foi frisado na súmula entregue à Federação Gaúcha de Futebol (FGF) no dia seguinte ao jogo.

Depois do caso de racismo, ex-árbitro tornou-se comentarista (Foto: Reprodução/RBS TV)

Antes dos casos de Márcio Chagas e Tinga, o administrador de empresas Marcelo Carvalho, 41 anos, já havia presenciado outras tantas situações preconceituosas. “Sempre compartilhei postagens sobre o assunto em redes sociais”, conta. Porém, as injúrias ao jogador e ao árbitro fizeram com que ele agisse.

No primeiro semestre deste ano, Carvalho criou o Observatório da Discriminação Racial no Futebol. Na plataforma, o administrador publica artigos e entrevistas que tentam auxiliar na compreensão das dimensões do problema.

Em 2014, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol já contabilizou, até a publicação desta reportagem, 19 casos de racismo nos estádios do país e outros seis envolvendo atletas brasileiros no exterior.

Ao lembrar das ofensas a Márcio Chagas, Carvalho - sentado à sombra em um parque de Porto Alegre - demonstra ainda mais descontentamento com um ponto. Para o administrador, a direção do clube serrano tentou apresentar outra cena, contrária à que o árbitro relatou na ocasião. “Houve uma inversão de valores. Disseram que o Márcio teria forjado uma situação”, critica.

Brancos na faculdade, negros nos campos e palcos

Refletir a respeito das consequências do racismo, não só no futebol, é algo cujas raízes remetem ao período entre a infância e a juventude de Carvalho. À época, ele morava com a família na Cohab, comunidade da Zona Sul da capital gaúcha. A partir da 5ª série do Ensino Fundamental, quando começou a estudar em escolas particulares, o jovem deparou-se com perspectivas opostas.

Na sala de aula, ao conversar com os colegas sobre o futuro no mercado de trabalho, as preferências do grupo convergiam para carreiras em áreas como a da Medicina e a da Engenharia. Ao voltar para casa, a situação era outra. Bem diferente. Na Cohab, onde a maior parte da população é negra, Carvalho e os seus amigos cogitavam duas opções: jogar futebol ou virar pagodeiro.

“Eu pensei: ‘por que isso?’ Dentro da escola católica, por exemplo, a Umbanda era uma religião taxada como algo do demônio. Quem determinou isso? Aí comecei a pesquisar. E vi que a História no Brasil é contada por quem venceu”, aponta.

Carvalho utiliza a internet para falar sobre racismo (Foto: Leonardo Vieceli)

Na visão de Carvalho, não há nenhuma grande campanha no país que consiga, de fato, impactar sobre os efeitos do racismo. No futebol, o administrador acredita que há uma forma de enfrentar o preconceito. “Tem que tocar no bolso dos clubes. O futebol nos dá a possibilidade de coibir o racismo”, pensa.

O professor Sérgio Endler, a exemplo de Carvalho, não vê punições capazes de trazer avanços à questão das injúrias praticadas nos estádios. Para o jornalista, atualmente existem apenas medidas paliativas. “São emergenciais. Não dão conta, pois o futebol expressa o racismo que existe na sociedade brasileira como um todo”, frisa.

Democracia em cores: preto e branco

Ninguém vestiu mais a camisa do Sport Club Corinthians Paulista do que ele. Em 806 jogos defendendo a equipe do Parque São Jorge, Wladimir, imortalizado como lateral-esquerdo do clube, é um dos principais símbolos negros do futebol brasileiro após Pelé.

O jogador foi um dos líderes do movimento “Democracia Corinthiana”, juntamente com Sócrates, Zenon e Casagrande. Nunca a política — e os atos sociais — foram tão presentes na rotina de um clube de futebol como naquele instante.

Comício em favor do voto direto em 1984: a democracia não era só dentro de campo (Foto: Reprodução)

Para entender o movimento, é preciso voltar aos idos de 1981. A ditadura militar se fazia presente, e a censura ainda era a principal forma de repressão no país. Quem queria ter voz e vez, por vezes, se calava. Entretanto, em um ato social e político, foi instaurada a democracia dentro do vestiário corintiano.

O período foi marcado como uma “autogestão”, na qual decisões importantes do clube como regras de concentração, liberdade para expressar opiniões em público em nome da equipe e futuras contratações eram definidas por voto dos jogadores, dirigentes e treinador com peso igualitário. Esse ato foi considerado revolucionário, não só no meio futebolístico, como também para o momento político nacional.

Segundo Wladimir, em entrevista por telefone, a ação envolvia muito mais do que apenas decisões em campo. “Era um movimento político, estratégico. Sabíamos que existia uma mobilização a partir disso. Acho que o movimento das Diretas — que ocorreu em 1984 — surgiu porque a população enxergou um princípio de vontade em nós. Fomos a chama, o fio condutor”, relembra.

Sobre o racismo em sua época de jogador, Wladimir, hoje com 60 anos, é taxativo: “Não lembro de nenhum ato racista em campo. Ou talvez ele existia de maneira mais encoberta. O futebol era menos elitizado do que hoje em dia. O povão ia no estádio, era diferente. A geral era genuinamente povão. Deve ser por isso que pipocam tantos casos de racismo, o futebol embranqueceu”, declara o eterno ídolo da camisa 4 do Timão.

“Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”
Lema da Democracia Corinthiana

Wladimir: luta dentro e fora dos gramados (Foto: Reprodução)

Wladimir ainda cita que os recentes casos de racismo no futebol brasileiro trazem, segundo ele, “o sentimento do ódio mais pré-histórico que é o preconceito”. A solução, para o líder desse movimento democrático tão importante, seria a maior conscientização de todos que fazem o esporte. “Os dirigentes têm medo de se envolver. Têm que peitar. Se o atleta comete racismo, têm que demitir. Se for o torcedor, é preciso identificar. Não dá pra tirar ninguém pra Cristo, mas é preciso que sejamos firmes no combate ao racismo”, avalia, ao encerrar a conversa.

A Canela Preta ainda vive

Se a luta de Wladimir e companhia era por mudanças sociais que englobassem todo o país, atualmente existe um grupo em Porto Alegre que batalha para manter viva a memória de quem promoveu transformações no futebol da capital gaúcha. Mesmo com o sol forte, que paira no final da manhã sobre o Campo do Piriquito, na Vila Nova, integrantes de 12 equipes de várzea reúnem-se para celebrar a importância da cultura negra e da Liga Nacional de Football Portoalegrense. São eles que preservam as raízes da Liga da Canela Preta.

Ao longo de um dia, enquanto seis jogos são disputados no gramado em que Ronaldinho Gaúcho deu os primeiros chutes de sua vida, a música e os churrascos dão o tom ao evento do lado de fora do campo. É em meio a esse ambiente que o Grupo Canela Preta promove confraternizações anuais, sempre na Semana Nacional da Consciência Negra.

Por meio da confraternização entre equipes, Liga da Canela Preta não cai no esquecimento (Foto: Guilherme Rovadoschi)

Evandoir Carvalho dos Santos, um dos organizadores da festa, explica que há mais equipes interessadas em integrar o grupo. Criado em 2007, o Canela Preta ultrapassou os limites de Porto Alegre e já conta, por exemplo, com um time de Montenegro, cidade a 60 quilômetros da Capital.

Durante o evento, um homem alto chama a atenção por conversar bastante, dar dicas e explicações ao público. O primeiro sobrenome dele, Assis, indica o seu parentesco. Técnico em Segurança do Trabalho, Marcelo de Assis Machado é primo de Ronaldinho Gaúcho.

Além de auxiliar na organização do encontro, ele representa a família no gramado: Machado atua como meio-campo, mas, com a bola nos pés, não lembra o talento do primo que conquistou o mundo a dribles. “Vou jogar uma bolinha. Também sou filho de Deus”, afirma, sorrindo, antes de iniciar o jogo de sua equipe, a SER Assis, que cuida do Campo do Piriquito.

A cada ano, um clube diferente do Grupo Canela Preta é responsável pela realização das comemorações. Pelo fato de ser um evento que celebra a aceitação no futebol, as portas ficam abertas a qualquer interessado que deseja participar. Não importa a cor da pele, a classe social ou o talento com a bola. O importante é somar de alguma maneira.

Prova de aceitação é a presença do camisa 7 da SER Assis. Centroavante à moda antiga, com 1m98cm, ele pisa no gramado no início do segundo tempo do confronto com o Gloriense. Os ponteiros do relógio já marcam quase 11 horas, e o calor aumenta. Vez ou outra, o vento chega para refrescar.

Fortunati: a importância de falar sobre a discriminação racial (Foto: Guilherme Rovadoschi)

O atleta, branco e com cavanhaque e cabelos grisalhos, não é destaque pelo futebol. Em 30 minutos, toca 10 vezes na bola e não cria muitas dificuldades à defesa adversária — vale ressaltar que ele não recebeu nenhum grande passe para tentar marcar. O centroavante se destaca, na verdade, pela importância de seu cargo à população porto-alegrense. “É mais fácil governar do que marcar gols”, diz o prefeito José Fortunati, 59 anos.

O lado atlético do gestor público não é um aspecto que costuma estampar as manchetes de jornais. Porém, aos sábados, Fortunati deixa de lado as roupas formais e calça as chuteiras para brincar com os amigos da SER Assis.

Sem esconder o sorriso, o prefeito elogia a realização do evento promovido pelo Grupo Canela Preta. Dentre os atrativos do encontro, ele ressalta o clima de confraternização entre os participantes e o intuito de propor a igualdade racial. Amigo de Paulo César Tinga, Fortunati conta que, quando se encontram, o jogador relata situações em que é vítima de racismo, como a que ocorreu no Peru.

“Temos, sim, que debater esse assunto, porque acontece no dia a dia. A grande questão é criar políticas públicas para buscar a integração racial e o respeito mútuo. O torneio é uma forma de manter viva a chama da igualdade e da convivência”, avalia Fortunati.

Elisete elogia as atividades do Grupo Canela Preta (Foto: Guilherme Rovadoschi)

Além do prefeito, a secretária adjunta do Povo Negro de Porto Alegre, Elisete Alves Moretto, demonstra satisfação com as comemorações do Grupo Canela Preta. Na secretaria municipal, ela se envolve diariamente na luta por uma sociedade livre de preconceitos, algo que também é notável no Campo do Piriquito.

À beira do gramado, Elisete enaltece que a organização das 12 equipes contribui para que o passado, ainda vivo, não desapareça. “Cerca de 20% da população de Porto Alegre é formada por negros e pardos. Essa parcela ainda é vista como subalterna”, comenta.

Ao Grupo Canela Preta, a qualidade do futebol apresentado em campo não é um tão fator relevante. À organização, o que importa é lembrar quem estufou o peito e bateu o pé frente à injustiça. Ao grupo, cabe manter acesa a chama vitoriosa de atletas como Alcindo e Wladimir. E, acima de tudo, mostrar que o negro tem voz para enfrentar os problemas sociais de um país que convive sob uma nuvem de intolerância.

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