Marcas na pele

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Histórias para se contar
12 min readAug 3, 2017

Uma arte milenar, existente desde os tempos mais primórdios. Assim podem ser definidas as tatuagens, que, cada vez mais, ganham popularidade na sociedade. Antes ocultados, mas, agora, amplamente difundidos, os desenhos pelo corpo foram responsáveis por polêmicas entre gerações. Porém, atualmente, os profissionais dessa área são procurados por todos os estilos de pessoas. Os motivos para fazer um tattoo são infinitos — desde uma recordação de um momento importante, até mesmo um sonho aleatório. As interpretações são individuais e a maioria das histórias tem um significado especial.

A missão de auxiliar as pessoas na hora de escolher o que querem eternizar em seu corpo também não é tarefa fácil. Por isso, para Michéli Branco, que é atendente de um estúdio de tatuagens, trabalhar na área pode ser algo do destino. Inclusive, a sua própria vida passa pelas marcas na pele — e não é à toa que ela já perdeu as contas de quantas tatuagens tem, pois emenda uma na outra.

“Gosto muito de tatuar coisas que fazem parte da minha vida, da minha história. Tenho a única foto da minha mãe pequena, que é em preto e branco, marcada nas minhas costas. Tenho coisas que fazem parte de mim assim”, explica.

Michéli tem vida ligada a tatuagem: trabalho, casamento e tattoos (foto: Diovana Dorneles)

A jovem de 34 anos é casada com um tatuador, mas não costuma fazer desenhos com o marido. “Já fiz tattoos com ele, mas também faço com outras pessoas. Até faz tempo que meu marido não me tatua”, comenta, rindo.

Crescimento no país

N o Brasil, foi apenas a partir da década de 1990 que começaram a surgir os estúdios especializados. Estes locais contribuíram para a profissionalização desta arte, agregando mais qualidade tanto aos desenhos quanto ao ofício. E, aos poucos, a tatuagem passou a conquistar a aceitação social. A sua expansão chegou ao ponto de alcançar os mais distintos grupos, com as mais diversas idades, e, nesse aumento, deixou de ser identificada como marca de marginalidade, mas, sim, como obra artística.

Foi justamente neste período, há mais de duas décadas, que um grande tatuador surgiu no Rio Grande do Sul. Valdir Salaberry Netto, mais conhecido pelo último sobrenome, é uma das referências no Estado. Mas, apesar de trabalhar na área há mais tempo, faz apenas dez anos que Netto abriu seu estúdio. Antes, se formou em enfermagem e teve outros empregos, mas nunca deixou a tatuagem de lado. Sua paixão pelo ofício é tanta que, há sete anos, organiza um dos principais eventos do sul do país, o Tattoo Show RS.

Netto garante que hoje existe um glamour no meio da tatuagem (foto: Diovana Dorneles)

“Entrei neste ramo em uma época que tinha muito tatuador. Porém, era uma coisa mais fechada, porque não era tão difundido. Não tinha essa mídia pesada, esse glamour todo. Era um pouco mais difícil ter acesso a materiais e tudo. Mas eu nem comecei em loja, comecei tatuando amigos, fui ter loja há 10 anos”, ressalta o organizador do evento.

Netto atende desde jovens a idosos; da primeira tatuagem ao último espaço que sobra para desenhar na pele de uma pessoa. Também aplica todos os estilos, mas tem preferência por dois: aquarela — representações de efeitos de manchas leves, respingos e com fusões de cores; e realismo.

Na avaliação do experiente tatuador, “pintar coisas na pele dos outros” é uma arte. O talento, para ele, pode ser desenvolvido, mas não deixa de ser um instinto. “É só uma forma artística de tu passar para a pele qualquer outro estilo de pintura, desenho, artes plásticas”, detalha Netto.

Valdir Salaberry Netto é tatuador há 20 anos e organiza o Tattoo Show

A resposta para isso, no entanto, pode estar na origem da tatuagem, que surgiu no Egito e no Japão. Antigamente — assim como é feito hoje em dia — as pessoas marcavam coisas pessoais em si. Expressões de tribos e simbologias, por exemplo, também eram levadas para a pele.

Método antigo de tatuagem na ásia (reprodução do Youtube)
Tatuagem nos dias atuais

Não é “só tatuar”

E quando a paixão é um hobby? Josiane Morais Carvalho, a Josy Tattoo, era estudante de Engenharia. Mas, há dez anos, após sua primeira tatuagem — que, diga-se de passagem, foi ela mesma fez -, uma velha paixão foi despertada e mudou o rumo de sua vida.

“Foi amor à primeira vista. Quando eu era criança, eu pintava, mas nunca nada relacionado à tatuagem. Mas, quando eu fiz a tattoo, veio tudo aquilo de volta, aflorou de novo. Aí eu decidi aprender”, recorda-se.

“Pedi para o ‘Bagé’ [marido de Josy, que é tatuador] me ensinar, mas ele não quis. Disse que, para aprender, eu teria que me tatuar. Então, um dia que ele saiu, montei todo o material e me tatuei”, revela.

Mesmo com a primeira experiência não tendo ficado das melhores, foi o início de tudo. Porém, foi somente após quatro anos trabalhando na área que a profissional buscou especialização. O aprofundamento nos conceitos, geralmente, é feito em cursos, feiras ou workshops.

Atualmente, um dos estilos mais populares entre os tatuadores é o Full collor. O modo é utilizado para que as cores fiquem ainda mais vivas, com variações entre as tonalidades — um pouco diferente de segmentos próximos como o aquarela e o colorido realista. Segundo a própria tradução simples do inglês para o português diz, trata-se de uma técnica de “cor cheia”. Mas, apesar de representar uma tendência muito procurada por mulheres, ela não limita-se ao público feminino, conforme explica Josy.

“Eu tatuo o público masculino com este estilo também. Procuro mostrar que é possível fazer, na pele de um homem, um Full color que não fique feminino”, ressalta.

Assim como cada tatuado, os artistas também consideram cada desenho especial. Por isso, o estilo demanda tempo e, para que o resultado atinja as expectativas, é preciso dedicar algumas boas horas e curtos intervalos de descanso — tanto por parte do criador, quanto da criatura.

Josy tenta mostrar que tatuagens full collor não é um estilo feminino (foto: Diovana Dorneles)

“A que eu estou fazendo agora, comecei ontem às 11h da manhã e terminamos às 11h da noite, com uma parada para almoçar e tomar café. Hoje, eu ainda tenho umas três ou quatro horas ainda, porque é um trabalho grande e em um local que é muito sensível (costela)”, relata.

Para a profissional, cada tattoo é única e tem seu próprio tempo para ser desenvolvida. “O tempo varia para cada trabalho, porque, às vezes, a pessoa tem mais sensibilidade, às vezes a pessoa mexe mais. Então, a gente tem que ir com mais cautela para não agredir demais o cliente”, finaliza.

O valor de cada tatuagem do estilo Full collor depende de alguns fatores. Pequenas variam entre R$ 300 e 600. Já algumas maiores, e com mais complexidade, podem ultrapassar R$ 1.000.

Discriminação ainda é uma realidade

Tanto pessoas tatuadas, quanto os próprios tatuadores, são de alvo de preconceito. Apesar de a sociedade já ter evoluído neste quesito, ainda há comunidades que não são tão abertas ao assunto e julgam os indivíduos que têm seus corpos marcados.

Quem admite ter sentido não só as dores das tattoos, mas também do preconceito externo é Pâmela Chaiders Anattele. Ela é a única profissional do ramo em Cruzeiro do Sul, cidade do Vale do Taquari. Segundo o CENSO do IBGE de 2010, o município tem 12.310 moradores, com quase 40% dessas pessoas morando em território rural.

“Já perdi emprego por causa das minhas tatuagens. Alegaram que não é legal para a imagem da empresa ter uma pessoa tatuada. Mas eu nem dou bola, decidi ser tatuadora há um ano e já fiz mais de 1.000 tattoos”, desabafa.

Pâmela relata preconceito contra tatuadores Cruzeiro do Sul (foto: Diovana Dorneles)

Infelizmente, o preconceito contra tatuados é percebido em vários locais — desde cidades pequenas até grandes metrópoles. Diversas categorias de trabalhadores também foram atingidas diretamente por normas contrárias à tatuagem. Durante anos, no Brasil, era proibido que pessoas com marcas artificiais no corpo pudessem realizar concursos do governo. Por conta disso, profissionais qualificados perderam a oportunidade de fazer parte do serviço público.

A derrubada deste veto ocorreu em 2016. Em decisão tomada em 17 de agosto daquele ano, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucional a proibição de candidatos com tatuagens a cargos públicos, estabelecida em leis e editais. Os casos eram frequentes em concursos, principalmente para áreas de segurança. Segundo o ministro que foi o relator do processo, Luiz Fux, o fato de alguém ser tatuado não o impede de exercer um cargo público.

“Um policial não se torna melhor ou pior em suas funções apenas por ter tatuagem”, afirmou, na decisão.

Em seu voto, o magistrado explicou, no entanto, que tatuagens que prejudiquem a boa ordem e a disciplina — sejam racistas, preconceituosas, extremistas ou que atentem contra a instituição — devem ser coibidas. Ele salientou, ainda, que um policial não pode ostentar sinais corporais que signifiquem apologias ao crime ou exaltem organizações criminosas. Entretanto, não pode ter seu ingresso barrado simplesmente por ter feito por uma tatuagem.

Já as Forças Armadas, por exemplo, vetam o ingresso de pessoas com tatuagens que tenham significado relacionado à violação da lei e da ordem, pois entendem que não são compatíveis com a função militar.

Ficar na clandestinidade é coisa do passado

S e a realidade dos dias de hoje parece melhor, vale destacar que, antigamente, já foi bem pior. Dono de um ateliê de arte em Curitiba, no Paraná, desde o final da década de 1990, Luís Lopes já vivenciou diversas fases deste preconceito.

“Tenho o ateliê desde 1998–1999. Na época, só trabalhava na clandestinidade, porque não existia tantas normas como existem hoje. Com o advento do vírus HIV, das doenças infectocontagiosas, houve uma necessidade de os Órgãos Públicos e diferentes áreas da Saúde se preocuparem mais. Houve uma fiscalização maior tanto com a tatuagem, quanto salões de beleza, estéticas, e locais que realizassem micro ou pequenas cirurgias. Porque, assim, você evita doenças seríssimas como Hepatite C, Hepatite A, AIDS, e todas as outras doenças transmissíveis pelo sangue”, afirma.

Mas Luís é bem claro. Não tem um estúdio, e, sim, um ateliê. Ele enfatizou isso apontando para uma escultura posicionada à esquerda de onde recebia a reportagem.

“O ateliê de artes trabalha uma proposta estética que não tem uma preocupação de prestar um serviço à alguém. O ateliê vende objetos de criação, de única tiragem, de exclusividade; a tatuagem está mais ligada à necessidade de consumo. O cliente chega, fala o que quer, e, aí, o artista pode fazer autoralmente o trabalho. Então, ele constrói a proposta estética para apresentar ao consumidor”, pontua Luís, que esconde a sua idade e também não permite fotos — nem dele, nem do ateliê.

Na opinião do profissional, outra importante função do artista é expor ao cliente que tatuagem é um processo artístico definitivo, e que a sua remoção é um processo caro e nada fácil. Porém, o tatuador acredita que é muito mais comum as pessoas se arrependerem de imediato, em algumas horas, do que décadas depois de ter feito o desenho.

“Esses dias, veio uma mulher aqui que tinha escrito nos seus pés: ‘Aos meus pés’. Quando acordou, no dia seguinte do porre, viu aquilo, como estava toda poderosa ao homenagear o namorado”, conta o profissional. “Ela chegou no estúdio e pediu para tirar, mas não dava. O máximo que podíamos fazer é desenhar outra por cima”, acrescenta.

No entanto, era preciso que cicatrizasse antes, pois, se tatuasse logo por cima, ficaria, segundo Luís, um relevo. “No fim, colocamos uma composição gráfica de flores, que não remetia a nenhuma situação especial, era só uma forma decorativa. Ela ficou satisfeita, mas imagina se ela faz: ‘Aos meus pés’, bêbada, no pescoço”, pondera. Por conta de situações como essa, o proprietário do estúdio acredita que deva haver um cuidado maior tanto por parte das pessoas, como da Vigilância Pública, especialmente em casos de estúdios de tatuagens anexos a bares.

Todo esta preocupação faz parte da filosofia de trabalho do profissional, que debate cada tattoo com o cliente antes de realizá-la. O proprietário do ateliê também faz os esboços dos desenhos e garante que todas as ideias de tatuagens são, primeiramente, transportadas para o papel. Afinal, as pessoas precisam saber exatamente o que será eternizado em sua pele.

Na hora da despedida, Luís Lopes revelou ter 52 anos e afirmou estar inserido nesse universo há quase três décadas.

No Brasil, qualquer pessoa maior de idade pode fazer uma tatuagem. Desde anônimos, até celebridades. Inclusive, de acordo com especialistas, os artistas impulsionam o restante da população a fazer o mesmo. Inúmeros famosos já protagonizaram episódios de marcas que chamaram a atenção. Mas é importante lembrar, também, das substituições — principalmente após frustrações amorosas.

Conquistas na pele

N o Rio Grande do Sul, dentro das possibilidades culturais do Estado, algumas personalidades com influência junto à população são os jogadores de futebol. E eles também são adeptos das tattoos.

Miller Bolaños, equatoriano, natural de Esmeraldas, é um deles. Ele foi revelado no Barcelona de Guayaquil, passou pela LDU de Quito, Chivas dos Estados Unidos, Emelec do Equador e está, desde fevereiro de 2016, no Grêmio. Já foi pego no antidoping por uso de cocaína, mas, hoje, brilha como pentacampeão da Copa do Brasil e pela seleção de seu país. Com uma história de dificuldades na vida, o atleta de 27 anos encontrou, nas tatuagens, uma forma de marcar suas conquistas no corpo, com o objetivo de simbolizar o seu esforço.

Jogador já fez tatuagem em referencia ao seu filho de três anos

“Fiz tatuagem por tudo que aconteceu na minha vida. A ideia de tatuar as taças surgiu em 2013. Prometi tatuar todas as taças que ganhar. Tenho 25 tatuagens e as mais importantes são as dos meus dois filhos”, argumenta o equatoriano ainda em um portunhol.

Copa do Brasil, conquistada em dezembro de 2016, já está na pele do equatoriano
Algumas das 25 tatuagens na pele do atleta

Quem fala um português quase que fluente — e está há bem mais tempo pelas “bandas” gaúchas — é Andrés Nicolás D’Alessandro. O argentino, de 36 anos, oriundo da capital Buenos Aires, será lembrado pelo torcida colorada para sempre. Símbolo de uma década muito vitoriosa do Inter, o jogador está prestes a fechar dez anos de Beira-Rio. Não bastasse todos os títulos que conquistou com a camisa colorada — mais de uma dezena — D’Alessandro também é fissurado em tatuagens.

Algumas tattoos do argentino colorado
D’Alessandro em tatuagem sobre passagem pelo Inter (Foto: Vertigem Tatoo Shop/Divulgação)

Marcar a pele além da identidade

D a mesma forma que existe preconceito, também há um estereótipo pré-definido no universo das tatuagens. O senso-comum acredita que apenas as pessoas jovens e saudáveis têm desejo de fazer marcas em seus corpos. Mas e com o passar dos anos? Também é possível ter uma tattoo! Aos 66 anos, Suzana Maria Berlitz Baldwin, aposentada, moradora de São Leopoldo, é um exemplo disso. Ela teve a ideia “de uma hora para outra” e realizou o desejo de ter uma marca em sua pele.

Suzana curtindo férias (foto: arquivo pessoal)

“Fui na contadora e encontrei uma moça toda tatuada nos braços. Achei lindo! Disse isso a ela, mas não sabia se tinha idade para isso. Ela me incentivou e deu o contato do tatuador. Falei com a minha filha para ir comigo”, explicou Suzana.

E o tradicional ditado “um é pouco, dois é bom, três é demais” foi a tônica da primeira ida da aposentada ao estúdio. Ela optou pela dose dupla, mas a inspiração foi especial.

Primeira tatuagem de Suzana foi feita aos 66 anos (foto: arquivo pessoal)

“Minha filha tinha comentado que podíamos fazer algo de mãe e filha, então fizemos uma juntas também”, acrescenta.

Suzana fez a mesma tattoo que a filha, Lisarb (foto: arquivo pessoal)

Para Suzana, assim como para a maioria dos profissionais da área, o assunto deve ser encarado como arte. Mas a simpática senhora de 66 anos relata que nem sempre foi fácil lidar com este tema.

“Na minha idade, eu já nem ligo para o que os outros vão pensar. As pessoas mais jovens, com cabeça mais aberta, adoraram e elogiaram a atitude, principalmente, por causa da minha idade. Mas tenho certeza que alguns parentes, principalmente os da minha faixa-etária, vão fazer comentários. Ainda é muito recente, mas alguns comentários no Facebook como ‘não acredito que tu fez’, me soam como uma certa crítica”, comenta.

Apesar de hoje não parecer, Suzana conta que, antigamente, a questão de gênero também era levada em conta. “Era uma coisa mais masculina. Mas o próprio tatuador me disse que, hoje, ele aplica mais em mulheres do que em homens.” Ao final do bate-papo, a aposentada, ainda sob efeito de todos os cuidados iniciais com suas duas primeiras tatuagens, chega a brincar com a possibilidade de voltar em breve a um estúdio.

“Não sei. É meio dolorido, mas, se der na telha, eu vou. Acho que não tem idade para ser feliz e fazer o que queremos”, finaliza rindo, mostrando o quanto é possível ser feliz superando qualquer tipo de preconceito ou opinião alheia.

O importante não é o que está marcado no corpo, nem o que a sociedade observa, mas, sim, estar bem consigo mesmo.

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