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O mercado onde o trabalho infantil é permitido

Roberto Caloni
Histórias para se contar
11 min readJun 27, 2016

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Conheça o trabalho artístico de crianças e adolescentes que é aceito socialmente

Não é preciso procurar muito para vermos uma criança trabalhando. Não, não estou falando daquela ajuda para organizar a casa em troca de algumas moedas. Falo de trabalho de verdade, com contrato, remuneração e carga horária. Seja em novelas, propagandas ou reality shows, o trabalho infantil artístico é algo que está presente em nossa sociedade.

Caio Pereira em entrevista para o programa Mistura da RBS TV.

Este é o trabalho de Caio Pereira, 17 anos, que desde os cinco anos de idade participa de produções artísticas. Seu primeiro teste foi por indicação de sua prima para um comercial. “Eu ia só figurar, mas como a criança principal não conseguia decorar a fala, eu decorrei e o diretor gostou”, comenta ele.

Como ele gostou de participar e se divertiu durante a gravação, quis continuar trabalhando. Ele pediu para os pais que o incentivaram. “Meus pais sempre quiseram que eu fizesse aquilo que me deixasse feliz. Como isso não trazia nenhum malefício para mim e eu estava gostando, estava feliz, eles me apoiaram”, relembra Caio.

A mãe de Caio, Rose Pereira (42 anos), resolveu perguntar para as mães de outras crianças que estavam no teste como funcionava esse mercado de trabalho. Depois que ela entendeu como funcionavam as agências, pesquisou para ver qual seria a melhor para assessorar seu filho. Pelas reclamações e elogios, Rose optou pela Guri & Guria Casting Infantil de Porto Alegre.

O mercado das Agências

Todo o artista, seja ele cantor, ator ou modelo tem alguém que o ajude com sua carreira, com os pequenos isso não seria diferente. Para a criança entrar no mercado, ela precisa de alguém além de seus pais que a ajude a conseguir trabalhos. A agência Guri & Guria Casting Infantil é uma das mais antigas de Porto Alegre e atua no mercado publicitário desde 1994, agenciando modelos (de zero a 15 anos de idade) em nível estadual e nacional.

Vera Souza diretora da agência Guri & Guria.

Vera Souza, jornalista e publicitária, é uma das diretoras da agência. Ela explica que o primeiro contato é feito pelo site. Os responsáveis pela criança fazem um cadastro com as medidas da criança e fotos. Vera explica que a criança tem que estar dentro da sua “grade” de altura, isto é, a criança precisa estar dentro de um padrão para sua idade. A agência chega a receber 100 solicitações de avaliação por semana.

Além disso, elas também passam por uma avaliação de fotogenia, se a criança apresenta uma boa imagem ao ser fotografado, filmado ou televisado é pré-aprovada. Na avaliação da fotogenia não é visto só os aspectos de beleza da criança, mas também sua desenvoltura, se há brilho nos olhos e o sorriso aberto. “Quando tu vê uma foto de um aniversário de criança, todas elas estão em volta da mesa e tu vê uma, lá atrás, olhando para a câmera e sorrindo. É aquela carinha que nos interessa”, exemplifica Vera.

Após essa pré-seleção, o candidato passa por uma avaliação presencial. Nesta etapa, a agência consegue perceber quem está apto, se o(a) pequeno(a) leva jeito para trabalhar no meio artístico. Depois de todo o processo, as crianças selecionadas realizam o cadastro para o banco de talentos. Quanto mais completo e atualizado o cadastro estiver, mais chances a criança tem de conseguir um teste. “Pedimos para os pais sempre manterem o cadastro atualizado, colocando se a criança fez um novo curso, trocou de escola, cresceu”, esclarece a diretora.

Essa foi a primeira agência de Caio e ele só a deixou, pois passou da idade limite. “O Caio ficou com nós quase 10 anos. No meu escritório tenho fotos dele desde quando começou até os últimos trabalhos que realizou com nós”, relata Vera.

Como funciona o trabalho?

O cliente passa o briefing (informações e instruções) do trabalho, solicitando fotos para uma pré-seleção, após, envia confirmando os selecionados. A agência entra em contato com os pais, enviando um documento com as informações do teste: empresa, responsável pelo elenco, endereço, data e valor do cachê (valor pago pelo serviço).

Caio nas gravações do curta “A cor da Canção” em 2009.

Cada trabalho gera um contrato, com valor e onde será veiculada, que é assinado pelos pais e pela agência. No dia da filmagem, a criança deve comparecer com um responsável no local e hora agendados. Vera ressalta uma das exigências da agência: “Criança nossa não vai ao teste desacompanhada”.

Além dos modelos selecionados para o trabalho, há também os que são escolhidos para ficarem em stand by. Essas crianças ficam de sobreaviso caso uma das selecionadas não possa ou não consiga realizar o trabalho.

Quanto ao cachê ganho pelo trabalho, 30% do valor ficam com a agência e os outros 70% são depositados diretamente em uma conta no nome do ator(a). As crianças que estiverem em stand by recebem 10% do valor do cachê.

A maior preocupação da agência é o bem estar da criança. “O principal é a criança. Ela precisa estar feliz”, destaca Vera. Mas ela comenta que por mais que muitas crianças levem tudo como uma brincadeira, aquilo é trabalho e eles devem garantir que tudo ocorra da melhor maneira.

Legislação brasileira

Trabalho infantil se refere a toda forma de trabalho exercido por crianças e/ou adolescentes abaixo da idade mínima permitida para o trabalho, conforme a legislação de cada país. No Brasil, todo o trabalho realizado por menores de 16 anos é proibido. “No Código Civil Brasileiro menores de 16 anos são considerados incapazes para os atos da vida civil, e trabalhar é um deles”, explica o advogado Guilherme Wunsch. Ou seja, é vedado o trabalho para jovens com menos que essa idade, exceto na condição de menor aprendiz ou de representações artísticas.

Para os jovens artísticos poderem trabalhar, eles precisam de uma autorização concedida pelo estado. “Qualquer tipo de trabalho que irá envolver o uso da imagem da criança precisamos pedir uma autorização para o Juiz da Infância e Juventude”, completa Wunsch. O juiz tem o dever de, na autorização, fixar as condições daquele trabalho.

O juiz pode especificar a carga horária, os turnos que ela poderá trabalhar e quaisquer outros requisitos que achar necessários. O juiz também pode estipular que 50% do valor recebido pelo trabalho seja depositado em uma conta poupança em nome da criança.

“Como ela ainda é uma criança, cabe aos pais administrar essa conta até a mesma completar 18 anos”, explica Wunsch.

Dentre as regras que estabelecem o trabalho infantil artístico, estão: a jornada de trabalho não pode exceder oito horas diárias; os horários que a criança estiver na escola devem ser respeitados; não podem trabalhar a noite; é vedado qualquer trabalho que traga risco ao pequeno(a); para cada novo trabalho deverá haver uma nova autorização assinada pelo juiz.

“Normalmente as autorizações ficam prontas entre 15 a 20 dias”, conta Vera Souza. Ela acrescenta que o mercado gaúcho começou a receber mais trabalhos, pois em nosso estado o processo de autorização do juizado é mais rápido do que em outros estados. “Em São Paulo, leva quase seis meses para conseguir uma autorização para um trabalho. Por causa disso, muitas empresas realizam seus comerciais e fotos aqui em Porto Alegre”, explica.

Vida de Artista

Caio Pereira é ator, modelo, dublador, roteirista e também diretor, sendo o mais jovem diretor a participar do Festival de Gramado com um curta metragem. “Eu tinha nove anos quando tive a ideia de fazer o curta”, menciona ele. Com mais de 10 anos de trabalho, Caio teve inúmeras experiências e comenta que não sabe dizer quantos trabalhos realizou. “Talvez mais de 200”, expõe.

Curta-metragem dirigido por Caio em 2011.

Com um currículo de dar inveja a muito profissionais, Caio relata que leva uma vida normal. Na escola ele nunca teve problemas. “Como sempre estudei na mesma escola, meus colegas estavam acostumados. Por mais que eu aparecesse na TV, eu era só mais um colega que eles tinham”, explica.

Com 12 anos, o jovem artista resolveu que iria fazer stand up, um estilo de espetáculo de humor executado por apenas um comediante, que se apresenta geralmente em pé. Na época, Caio estava trabalhando na mini-série Online do grupo RBS, junto com Cris Pereira, comediante gaúcho muito conhecido por seus espetáculos. Ele mostrou o roteiro do espetáculo para Cris, que fez algumas alterações. “Ele me disse que se o roteiro fosse melhorado e eu treinasse bem, eu abriria o show do Primeiro as Damas”, conta Caio. O Primeiro as Damas é um espetáculo de maior sucesso protagonizado por Cris Pereira.

Com esse incentivo e o apoio dos pais, Caio se dedicou a esse projeto e o inscreveu para participar do programa Qual é o Seu Talento que passava na emissora SBT. Ele passou para a semifinal, mas não ganhou o programa. “Foi muito divertido”, relembra.

Quanto ao dinheiro que ele recebe por seus trabalhos, Caio e seus pais o dividem em três, mas não para ser uma parte para cada um. O valor tem três destinos. O primeiro é uma poupança, para ele ter um dinheiro reserva. O segundo, para uma “bolsa viagem”, que ele explica que é para a família, assim todos podem aproveitar e se divertirem juntos. E o terceiro é para ele gastar no que ele quiser, seja em um novo vídeo game ou jogo. “Esse foi um combinado que sempre tivemos, e até hoje continua”, conta Caio.

O Incentivo determinante dos pais

Para Caio, seu sucesso se deve a grande presença e apoio dos pais. “Meus pais são meus melhores amigos, conto tudo para eles”, relata. Hoje, quando ele está em um set para filmar, ele ainda procura por sua mãe entre a produção e estranha em não ver ela por lá. “Cresci com ela sempre me apoiando, sempre presente, agora estranho um pouco em não ver ela por lá”, conta Caio.

Os pais de Caio, Rose e Fabiano Pereira (42 anos), decidiram colocar ele em uma agência apenas quando um dos dois tivesse tempo para poder acompanhar. “Quando eu consegui tempo de estar com ele nos testes e nas gravações, começamos a dar todo o apoio. Uma criança de seis, sete anos precisa desse apoio, precisa ter os pais presentes”, comenta Rose.

“Uma das coisas que sempre deixamos claro para ele é que por mais que fosse divertido, e parecesse ser uma brincadeira, aquilo era trabalho. Era trabalho do diretor, do produtor, do maquiador e dele também”, conta Rose.

Família reunida em viagem à Disney.

Os pais sempre ressaltaram, que quando ele passasse em algum teste, ele estava assumindo uma responsabilidade e deveria fazer o trabalho. Era uma escolha dele, não dos pais, por mais que eles o apoiassem. Todos os trabalhos que ele realizou sempre foram escolhidos por ele. “Nós nunca o obrigamos a fazer os testes, mas se ele fosse da vontade dele, ele precisava cumprir o que prometeu”, conta ela.

Rose conta que muitas vezes ela foi mãe para outras crianças que estavam fazendo os testes junto com o Caio.“Eu via aquelas crianças sozinhas e acabava ajudando elas”, relata. Ela explica que alguns pais não acompanham seus filhos nos teste, apenas os mandam para o trabalho sem acompanha.r

A mente dos pequenos

Todas as fazes do ser humano são importantes, mas os primeiros anos de vida e a infância são épocas de extrema importância para o desenvolvimento da criança. Não precisamos imaginar muito para perceber que o meio artístico pode ser bem estressante. São vários testes, sessões de fotos, e muitas vezes, as crianças precisam lidar cedo com a derrota.

Para a psicóloga Bibiana Godoi Malgarim, o fundamental para uma criança se desenvolver bem emocionalmente é preciso proporcionar um ambiente seguro, com pessoas que estejam genuinamente interessadas em cuidar do pequeno de maneira afetiva. Ela aponta, que mesmo sendo socialmente aceito pela sociedade, o trabalho infantil artístico não deixa de ser um trabalho.

“Dependerá bastante da figura dos pais, o cuidado com a exposição, intensidade e saúde dessa criança que se envolve com atividades de remuneração antes da idade preconizada socialmente”, explica Bibiana.

Destacando que é importante ficar atento à quaisquer sinais que indiquem mal estar ou sofrimento por parte da criança.

Sobre como as crianças lidam com a fama e o sucesso, Malgarim aponta que não há uma regra para isso. “Certamente a reação da criança dependerá de toda sua história de desenvolvimento assim como, da forma como seus pais ou cuidadores também lidam com o que julgam sucessos ou insucessos”, acrescenta ela.

“Um excesso de expectativas por parte dos pais pode fazer com que eles desconsiderem as possibilidades e interesses do filho, podendo não possibilitar à criança desenvolver-se de maneira singular, não havendo espaço para que ela crie seus próprios sonhos e expectativas”, observa Bibiana. Mas também comenta que é esperado que os pais projetem em seus filhos expectativas de felicidade, sucesso, saúde.

Novos talentos

Incentivados por amigos e familiares, o casal Catiusi Tibolla Rodrigues de Oliveira e Rafael Xavier de Oliveira, ambos com 34 anos, decidiram colocar sua filha Rafaella, de quarto anos, em uma agência para modelos mirins. “Desde bebe nos dizem que ela é muito bonita e poderia participar de propagandas”, conta Catiusi.

Rafaela tem realizado ao menos um trabalho por ano.

O primeiro trabalho de Rafaela foi quando ela tinha nove meses. Desde então a pequena tem realizado ao menos um trabalho por ano. Catiusi conta que agora eles explicam para ela o que esta acontecendo. “Ela gosta e se diverte. As vezes ela não quer participar, mas como no set tem todo um trabalho e cuidado com as crianças, ela se distrai e acaba fazendo”, comenta Catiusi. A pequena também fica feliz por que assim ela sabe que terá dinheiro para poder comprar o que quiser.

O pai Rafael é um pouco mais resistente na hora de coloca-la para fazer um teste, mas depois que vê o resultado do trabalho fica feliz. Os pais sempre acompanham a pequena nos testes e no trabalho. “Sempre estamos presentes”, relata a mãe.

Futuros rumos

“Todos os meus trabalhos eu levava como uma grande brincadeira e quando eu estava com 15 anos pensei: Opa, acho que é com isso que quero trabalhar”. Com essa frase Caio brinca sobre quando começou a decidir sobre futuro.

Com quase 18 anos, e terminando o ensino médio, Caio pretende trabalhar mais com direção e roteiro, que são as áreas as quais lhe despertam mais interesse. “Hoje prefiro estar atrás das câmeras”, comenta ele. Dublagem é outra paixão que ele tem. “A dublagem de jogos aqui na região é bem forte, e é um trabalho que gosto de fazer”, relata.

Grupo da peça Adolescer. Foto: Vinícius Ellwanger

Hoje, ele trabalha na peça Adolescer, um espetáculo que é, indiretamente, uma homenagem aos adolescentes e um alerta aos adultos sobre a prevenção contra o abandono dos jovens.

Um conselho que o rapaz dá para aqueles que querem começar a carreira é: “Não se pode transformar a vida da criança em trabalhos”. Para ele isso deve ser apenas uma atividade a mais, como outras crianças que praticam algum esporte no turno inverso ao da escola.

Como Caio lembra, podemos incentivar, ver e aplaudir esses talentos, mas sem esquecer que por trás disso, elas ainda são crianças, e devemos garantir o direito delas continuarem sendo crianças.

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Roberto Caloni
Histórias para se contar

Estudante de jornalismo na Universidade do Vale do Rio dos Sinos.