Jean Bosco Kakozi se preparando para mais uma aula do PPG da Univesidade do Vale dos Sinos (Unisinos)

Uma vida de “échange d’étudiants

Lucas Schardong
Histórias para se contar
6 min readJun 27, 2016

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Muitas vezes o destino dos imigrantes é um caminho sem volta. Ao deixar sua terra e seus laços para trás, eles não têm condições de voltar para casa ou nem cogitam sonhar com essa possibilidade. Hoje em dia essa situação mudou um pouco, para melhor. É possível planejar a viagem, passar um tempo necessário para aproveitar todas as oportunidades e quando o imigrante estiver bem estabilizado, viabilizar a volta para a casa.

Um intercambista pode também ser considerado um imigrante. Ele faz o movimento de deixar o seu país para buscar algo melhor. Geralmente a pessoa que pratica o intercâmbio fica anos fora do seu país. Depois de se formar no curso escolhido ou absorver o conhecimento desejado, o estudante retorna para sua casa com uma bagagem muito maior do que quando chegou. Além de toda sabedoria que o ensino proporciona, a cultura do outro país também se torna um elemento importante na vida do intercambista.

A vida de Jean Bosco Kakozi Kashindi é marcada por muitos intercâmbios. Ele nasceu na da República do Congo, um país que conquistou sua independência da França há apenas 56 anos. A terra natal de Jean tem como base de sua economia a exploração de minérios e petróleo, mas não consegue se estabelecer financeiramente. As constantes guerras civis também são um agravante dentro deste contexto social. Kakozi, como é comumente chamado, se graduou em Filosofia e Ciência Humanas na terra onde nasceu e viajou para o país ao lado, a República Democrática do Congo, para fazer uma especialização em Religião.

Kakozi em uma palestra no Instituto Nacional de Antropologia e História na Cidade do México.

Sedento pela busca de conhecimento, ele realizou um mestrado em Estudos Latino-americanos na Cidade do México, onde morou por 2 anos e diz ter as melhores lembranças dessas viagens. “No México eu fui como intercambista e depois vivi praticamente como um imigrante. Lá estudei em uma universidade pública, então vi pessoas de diferentes culturas e lugares. Tinha bastante companheirismo, amizade e aproximação. Todos eram sempre muito curiosos sobre a minha cultura e como eu enxergava o país deles. Foi a experiência mais legal como intercambista”.

Depois de concluir o mestrado, ele retornou para a África, mas não voltou para a sua casa. Jean partiu para Joanesburgo, na África do Sul, onde defendeu a tese de doutorado em Filosofia e Ciências Humanas. Com o pensamento de que a troca de culturas é algo muito importante, foi no país de Nelson Mandela que ele percebeu que os terrores ocasionados pelo regime do Apartheid ainda influenciam na cultura daquela sociedade. A luta contra esse regime foi pautada na igualdade racial, mas infelizmente a desigualdade ainda mantêm algumas raízes não podadas. “É importante essa troca pra as sociedades, já que somos cada vez mais internacionais. As diferenças culturais e de acolhimento se devem pelos processos sócio-históricos de cada continente e país. Na África do Sul os brancos e os negros vivem em mundos distintos, por causa dos séculos de segregação que aconteceram no país”.

Hoje, com 38 anos, e depois de passar por todos esses países, Kakozi veio para o Brasil e está fazendo um estágio de pós-doutorado no PPG de Direito na Unisinos, no Núcleo de Direitos Humanos. “Essa vida de intercambista é muito legal. É uma escolha que fiz pra mim. Todas essas viagens são uma aprendizagem das culturas, das maneiras de como outras pessoas vivem, das línguas. Conhecer outras culturas ajuda a valorizar a minha própria cultura”.

Com bastante experiência em viagens internacionais, Jean fala português com fluência, algo que ele mesmo não admite. Ainda assim, se diverte com algumas misturas de palavras que faz do espanhol com o português. Ele entende que a linguagem é uma ferramenta muito importante de expressão de cultura e que as amizades que fez são o que demonstram confirmação de uma troca de culturas. “Algo que fica muito marcado pra mim são os contatos que faço. Quando consigo manter um contato com as pessoas depois disso, vejo que a minha presença deixou algo marcado no país”.

Kakozi na entrada da casa de Nelson Mandela, em Joanesburgo, África do Sul.

Jean afirma que fazer essa troca de experiências beneficia as duas partes. Ele acredita que isso serve para ampliar o conhecimento, tanto dos intercambistas, quanto da universidade e das pessoas que a frequentam. Ele acredita que se formam laços humanos que talvez não tenham um impacto a curto prazo, mas sim a médio e longo prazo. Apesar disso, ele não consegue enxergar aqui no Brasil uma procura muito grande por essa troca de conhecimentos. “Já tinha vindo aqui em 2009 e 2014 e conheci vários lugares, como Bahia e São Paulo. As primeiras impressões como intercambista é de que as pessoas aqui são mais reservadas. Me dá a impressão de distanciamento ou formalidade”.

A assistente social e professora do curso de Serviço Social da Unisinos, Marilene Maia, explica que essa falta de envolvimento com o intercambista se deve a falta de um conhecimento prévio da cultura deles e a rotina de muitos estudantes. “Não há conhecimentos prévios para sensibilizar uma troca cultural. Tu só te interessa por algo que tu conhece. O aluno da Unisinos, a gente sabe que ele vem pra aula, acaba e vai embora. Ele não explora o espaço acadêmico e acaba apenas convivendo com os colegas da sala de aula.”

Ela foi designada para acompanhar de forma mais próxima a inserção de um grupo de 90 intercambistas angolanos que estavam chegando na universidade. Para tentar promover esse câmbio cultural, foi organizado uma série de encontros mensais, onde com vários povos que estavam fazendo intercâmbio, deveriam explicar sua cultura para os outros. A abertura foi feita por brasileiros e o resultado não foi agradável. “O que se viu foi que os colegas brasileiros não tinham interesse em perceber as culturas de outros países, seja eles quais forem. Num primeiro momento, não conseguimos despertar o interesse deles. Esperamos que pro próximo semestre, consigamos melhorar essa relação”.

Marilene acredita que a importância de fomentar essa busca por conhecer outras culturas é papel fundamental da universidade. “É a missão da universidade. Na sua perspectiva de construção de conhecimento a partir dos grandes processos de vida e relação. Quanto mais dentro da própria universidade tu estabelece essa relação de universo, mais potência tu tem”.

Sua observação em relação aos imigrantes segue na mesma linha de tentar promover esse tipo de relação. “Nós podemos evoluir muito com essa nova realidade com a presença de imigrantes, mas se nos dispusermos a fazer isso. O problema é que nós temos uma cultura dominante que é discriminatória, que é do reforço da desigualdade. O sistema que a gente vive, capitalista, determina isso. As expressões de violência são reproduzidas por quem sofreu uma violência. Devemos romper a matriz, com a lógica originaria das relações é fundamental”.

Em seu trabalho de pós-graduação, Jean Bosco Kakozi empenha-se em mudar a diferenciação da visão dos homens de achar que uns são mais dignos ou merecedores que os outros. Ele procura desconstruir essa lógica moderna de dominação e de exclusão do diferente. Ele entende que o status de intercambista é diferente para se observar como funciona a discriminação. Para Kakozi, a universidade é mais acostumada com a universalidade, mas, paradoxalmente, muitas universidades são formadas pela maioria branca e com maiores recursos financeiros.

“Acredito que a falta de memória histórica e de solidariedade é o motivador. Por isso que a construção das culturas dos países é importante para mim. Isso nos dá os princípios. O ser humano tem que reconhecer de onde vem para saber pra onde ir.

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