Foto: Luciano Pontes/ Fotos Públicas (04/04/2104)

Uma vida de “Imigran

Lucas Schardong
Histórias para se contar
10 min readJun 27, 2016

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O Haiti é um pequeno país que fica localizado na região do Caribe. Apesar do tamanho, 27.750 km² de área total (cerca de 300 vezes menor do que o Brasil), já enfrentou batalhas grandiosas, que estão a altura das ditas grandes nações. O país teve sua independência declarada desde 1803, quando um exército formado por ex-escravos derrotou as poderosas tropas francesas. Foi o segundo país nas Américas a se tornar independente, precedido apenas pelos Estados Unidos da América.

Séculos após esse acontecimento épico, a população poderia ter a esperança de que coisas melhores já estariam em vigor no país. Mas a represália das grandes nações afetou qualquer possibilidade de crescimento. Após diversas tentativas, sem sucesso, de vários presidentes para instaurar um estado organizado que pudesse fazer com que a população saísse da pobreza, um golpe militar foi executado em 1964. A violência era absurda e a liberdade do povo já não existia novamente.

Desde então, a situação política se mostrava cada vez mais conturbada. Com algumas revoluções populares, a ditadura caiu e novos presidentes foram eleitos. Mas pouco tempo depois voltavam os militares ao poder. Em mais de 200 anos de liberdade, cerca de 20 governantes assumiram o poder e 16 deles foram depostos ou assassinados. A essa altura, um bloqueio comercial totalitário imposto pela Organização das Nações Unidas (ONU) já estava em vigor, deixando a economia ainda mais caótica.

Os anos 2000 tiveram como marca a volta de uma eleição democrática. O presidente eleito, Jean-Bertrand Aristide estava sendo acusado de manipular as votações e a constante instabilidade financeira colaborou para mais uma tentativa de despor um presidente. Em 2004, o Conselho de Segurança (CS) criou a Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti, para tentar controlar a situação, já que a ONU considerava o país uma ameaça internacional.

Assim como o país em que nasceu, a vida de Ruth Petit Frere Pierre acontece em batalhas constantes.

Ruth (à esquerda) fala sobre os caminhos que a levaram ao Brasil.

Ela nasceu na capital Haitiana, Porto Príncipe, onde passou a maior parte dos seus 33 anos. Assistiu a intervenção dos militares estrangeiros de perto e também pôde conhecer alguns brasileiros que vieram nas tropas enviadas pelo país. Em 2009, quando tinha 26 anos, se mudou com o marido para o país ao lado, a República Dominicana. Exausta das tentativas de conseguir um emprego digno e condições ideais para viver, ela viu na imigração uma chance melhorar. “No Haiti, nós não tínhamos oportunidades pra trabalhar. Depois, na República Dominicana, eu levava uma vida comum. Trabalhava e voltava pra casa, não fugia muito disso. Fiz um curso de cabeleireira e consegui emprego lá. Mas logo fiquei desempregada e tudo ficou mais difícil para mim e para o meu marido”.

Saindo do seu país de origem, ela não presenciou o terremoto catastrófico que ocorreu em 2010 e assolou o Haiti. O abalo sísmico de 7.0 na escala de magnitude matou mais de 200 mil pessoas e deixou 80% das construções da capital destruídas ou muito danificadas. Depois disso, mais de 40 mil imigrantes haitianos chegaram ao Brasil. A tragédia não atingiu a República Dominicana, país que tem a 9ª maior economia da América Latina, mas a situação ilegal do casal fazia com que eles se preocupassem todos os dias em serem deportados e voltarem para o caos haitiano.

A esperança fora renovada com a percepção de um país que poderia fazer um acolhimento para os dois. O desejo de conseguir um emprego e uma vida tranquila faria com que eles atravessassem uma barreira muito complicada e viessem para o Brasil. O esposo de Ruth veio primeiro, em 2013. Depois de chegar ao Rio Grande do Sul, passou enormes dificuldades pra conseguir um emprego e poder trazer a esposa para São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Nesta época, Ruth já estava grávida e eles queriam que a pequena Ruthissa nascesse no Brasil.

Foi difícil pra ele vir pra cá. Precisou juntar dinheiro pra poder me trazer. Passou dificuldade, passou fome. Se gasta muito pra vir pra cá e se não tem dinheiro fica muito complicado de começar. Eu não quero que minha filha passe as mesmas dificuldades que eu e meu marido passamos. Agora podemos pensar mais no futuro em guardar dinheiro e comprar uma casa no futuro”.

Depois de muita luta, Ruth conseguiu chegar ao Brasil, e logo teve sua filha. Com mais responsabilidades, a dificuldade de encontrar uma condição de vida tranquila ficava mais acentuada. Desempregada e com uma filha bebê, eles dependiam apenas do trabalho do marido. Para piorar ainda mais a situação, a mãe de Ruth, que ainda vive no Haiti, estava com problemas cardíacos e não tinha como pagar o tratamento médico. “Quando a gente tem a possibilidade, a gente gosta de ajudar as pessoas. Se a gente consegue, sempre mandamos alguma coisa pra nossas famílias”.

Foto: Luciano Pontes/ Fotos Públicas (15/01/2014)

Essa história se repete muito em relação aos imigrantes. E não só com os haitianos. Os novos rostos das imigrações tomam a forma de países do Caribe, da África e também da Ásia. Muitos vem com a ideia de que o Brasil é um país acolhedor e que irá mostrar inúmeras oportunidades para todos. Mas muitos chegam aqui e não conseguem emprego, sofrem preconceito seguidos de agressões físicas, têm que submeter a um trabalho em regime de escravidão. Se voltarmos na ditadura de Getúlio, em 1937, vamos entender como o preconceito com os imigrantes começou a se firmar na cultura brasileira.

A partir dessa data, os imigrantes não podiam constituir mais núcleos populacionais. Eles tinham que se tornar invisíveis nos centros urbanos ou nas comunidades rurais constituídas. O Estado Nacional centralizou o controle imigratório e proibiu que eles falassem na língua nativa, constituíssem associações, participassem da política”. A explicação é do pesquisador e especialista em imigrações, Jurandir Zamberlan, que estuda há mas de 10 anos o assunto. Ele acredita que a cultura de “Segurança Nacional” que se criou na ditadura fez com que o imigrante fosse visto como um “potencial subversivo”. Depois da Segunda Guerra Mundial, a autoridade pública chama as Igrejas para acolher os novos imigrantes, ajudar na documentação, no ensino da língua portuguesa, dar atendimento emergencial quando necessário e encaminhar para o trabalho. Somente em 1970 começa a se criar o conceito de uma Comissão de Direitos Humanos e que começaria, bem lentamente, trabalhar no acolhimento dos imigrantes.

Além das pesquisas sobre imigrações, Jurandir é voluntário no Centro Ítalo Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações (Cibai), e que é o braço direito da Paróquia Pessoal de Nossa Senhora do Rosário de Pompéia, coordenada pelos padres scalabrinianos.

A instituição faz um trabalho filantrópico de acolhimento aos imigrantes, ajudando com a documentação exigida, na fala da língua portuguesa, articulação com entidades da sociedade civil e pesquisas sobre imigrações. Jurandir entende que com o passar dos anos, a visão em relação aos imigrantes tem mudado. “Há uma nova consciência de que o imigrante é um cidadão que tem direitos garantidos na legislação nacional e tem direito de beneficiar-se das políticas públicas nos três níveis: federal, estadual e municipal. Papel importante para isso tem sido a mudança de discurso de grande parte da mídia.

Podemos dizer que a sorte de Ruth virou, talvez não por acaso, quando conheceu a coordenadora pedagógica do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI) da Unisinos, Elisabeth Natel. Sabendo das dificuldades enfrentadas durante a transição Haiti — Brasil, Elisabeth se compadeceu da história de Ruth.

Depois de conquistar a confiança da família haitiana ela levou algumas pessoas do Núcleo para os conhecerem. “Nós percebemos todas as dificuldades que eles estavam sofrendo e fizemos um trabalho de acolhimento. Conseguimos um emprego pra Ruth no Restaurante Universitário da Unisinos. A vida pra ela mudou a partir do trabalho. Recentemente eu fui no aniversário de 2 anos da filha e a felicidade da família é imensa. O marido dela veio me agradecer e dizer que eu não sabia o quanto isso mudou a vida deles”.

Ruth (à esquerda) no Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI) da Unisinos

Elisabeth chegou a procurar as autoridades de São Leopoldo, questionando sobre o acolhimento que seria feito com o número cada vez mais crescente de imigrante. “Liguei pra prefeitura pra ver como eles estavam pensando em um acolhimento para os imigrantes. Eles me disseram que eles não tem e não pretendem ter uma ligação com os imigrantes e quem estava chegando aqui eles enviariam pra Caxias do Sul. Aqui na cidade eles não tem apoio e a maior dificuldade é o emprego”.

Ela acredita que a Universidade deveria desempenhar um papel de abraçar a chegada desses novos imigrantes, algo que ajudaria a universalizar a cultura. “Seria importante fazer um setor para acolher os imigrantes enquanto universidade. Mas a parceria com a cidade ainda é muito insólita. A gente espera que com o tempo isso evolua. O Neabi deu um primeiro passo, ajudando a Ruth e outros haitianos. Logo nós vamos fazer um trabalho de ensinar o português pra ela. Isso é só o começo”.

Indo na contramão de São Leopoldo, a capital Porto Alegre, recebeu o Prêmio de Cidade Campeã de Acolhida a Imigrantes e Refugiados. Quando os imigrantes começaram a chegar ao Rio Grande do Sul em maior número, em junho de 2015, o Governador e o Prefeito de Porto Alegre, colocaram todas as suas Secretarias a disposição a fim de realizar um acolhimento decente. Em um levantamento feito pelo Setor da Mobilidade Humana da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) Regional Sul III, que organizado pelo Núcleo de Pesquisa do Cibai, 13.811 imigrantes habitam o Rio Grande do Sul e desses, 1000 estão em Porto Alegre e 80 em São Leopoldo.

A partir de 2015 se deu início a um contato com a União para trazer recursos para o Rio Grande do Sul. O resultado foi um convênio para viabilização do Centro de Referencias e Acolhimento para Imigrantes e Refugiados, onde todos os atendimentos sociais necessários para acolher imigrantes serão disponibilizados. A capacidade de atendimento será de 50 pessoas e o convênio também prevê a contratação de imigrantes para fazer o trabalho de tradução.

O Coordenador de Igualdade Étnico Racial da Secretaria da Justiça e dos Direitos Humanos do RS (SJDH), Sérgio Nunes, acredita que a vinda de imigrantes é algo benéfico para o Estado. “Acredito que os benefícios são muitos. Nosso Estado é na sua totalidade composto por imigrantes das mais diversas etnias, dos mais variados cantos do globo, e isso nunca foi ruim, muito pelo contrário. Temos muito o que aprender mutuamente, e essas experiências de troca só trazem benefícios a todos”.

Nós precisamos dar uma chance para que essas pessoas consigam ter uma vida digna, pois é só isso que procuram. Elas chegam ao nosso País com muitos sonhos e dão de cara com racismo, preconceitos e agora essa crise econômica que atinge todos os que vivem em território Nacional. Temos que ter em mente que essas pessoas não saem de seus países de origem por diversão, eles saem em função de eventos climáticos, das questões sócio econômicas e políticas. Então, façamos o velho exercício que sempre serve em todos os momentos, “nos colocarmos no lugar do outro”.

Ao falar sobre preconceito, Ruth tem uma certa desconfiança na fala, mas afirma que nunca sofreu nada parecido. “Nada de preconceito. Acho que é por que eu estou sempre sorrindo e sou muito carinhosa. As pessoas gostam de mim e eu gosto de viver assim”. Mesmo que ela não tenha sofrido com a discriminação aqui no Brasil, sabemos que é uma exceção e que esse problema ainda existe e é muito grande, não só com os imigrantes, mas também com as pessoas que nasceram no país. Beth acredita que a situação será difícil de ser mudada. “Eu sempre sofri preconceito e discriminação racial. E o que a gente vê com a vinda dos imigrantes é que isso se tá se repetindo mais forte, está mais explícito. Acredito que essa situação de preconceito em São Leopoldo não vai acabar tão cedo”.

O pesquisador Jurandir acredita que o preconceito é algo que está na nossa cultura. “Nós, descendentes de imigrantes, temos uma cultura de xenofobia, racismo e discriminação com o negro, o índio, o caboclo, com o colono, com o diferente (sexo, classe…). A nossa escolarização não forma, apenas informa. Não geramos conceitos de universalidade, mas de indivíduos em busca de espaço, de saber para o ter que viabilize a sobrevivência”.

Foto: Luciano Pontes/ Fotos Públicas (15/01/2014)

Ele critica o fato de que muitas pessoas que tem preconceito com os novos imigrantes, são descendentes de outras imigrações. “Durante a ditadura recente os militares só admitiam o nacionalismo exemplificado pelo bordão Brasil: ame-o ou deixe-o. Para fugir disso um movimento interno surge com o “endeusamento” dos migrantes históricos com festas das etnias (alemã, italiana, etc..), colocados como heróis, vitoriosos, vencedores, mas quando chegaram ao Brasil por que foram confinados a locais inadequados para sua atividade agrícola? Por que foram considerados “mortos de fome”, “quinta coluna”, “potenciais subversivos”? Durante a última guerra mundial aos estrangeiros foi proibida a fala na língua nativa, a expressão de sua cultura, a convivência livre, a formação de associações, a participação política. Hoje defrontamo-nos com os mesmos problemas”.

Pensando no futuro, Ruth tem ambições despretensiosas, mas que para ela, seriam a confirmação de quem fez as escolhas certas. “Quero continuar trabalhando e buscar uma vida melhor. Conseguir estudos pra minha filha e uma casa própria. Eu gosto do Brasil desde sempre. Quando eu era pequena e assistia futebol ficava pensando como seria viver aqui e hoje eu sei como é. Se aqui tá bom pra mim e pra minha família, não vou embora pra outro país, não tem por que fazer isso. De todo meu coração eu gosto do Brasil

Todo mundo gosta de uma vida melhor. A dificuldade vem e a gente enfrenta, mas ninguém gosta de ficar passando dificuldade.

Confira a última parte de “Vidas movidas pelas imigrações”: Uma vida de “échange d’étudiants

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