Belo Monte, o que fizeram de nós?
O barramento do Rio Xingu completa um ano e, durante a terceira Canoada Bye Bye Xingu, indígenas e ribeirinhos relatam os impactos da obra na região da Volta Grande
Por Isabel Harari, jornalista do ISA
“Viver hoje do Rio Xingu é impossível, não tenho chance nenhuma. As pessoas viviam bem, e hoje vegetam, não é vida digna”, comenta Raimunda Gomes da Silva ao passar pelos pedrais da Volta Grande, após o barramento do rio. Quase um ano após o fechamento das comportas para a criação do lago artificial que vai gerar a energia da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, as populações indígenas e ribeirinhas sentem e denunciam os impactos em seus modos de vida: dificuldade em navegar por trechos do rio, desaparecimento de locais de pesca tradicionais, aumento de pragas, diminuição e morte de peixes.
O fechamento das comportas, em novembro de 2015, intensificou as mudanças provocadas pela usina. “O maior problema é a falta d’água. Pra baixo falta e pra cima sobra. A sobra de cima não presta e a debaixo faz falta pra vida. Muita água pra cima mas toda comprometida, com problemas, com resíduos, com morte dos peixes, morte de árvores que foram submersas. E pra baixo precisando de água, tem um pouco ainda, mas não é o suficiente. A gente precisa da água pra sobreviver. O rio me adotou como filha e eu o adotei como pai, por isso vou continuar lutando por ele e pelas suas águas”, diz Raimunda.
O que está acontecendo na Volta Grande
Trecho de aproximadamente 100 km na margem esquerda do Xingu, essa curva de rio banha duas Terras Indígenas, Arara da Volta Grande e Paquiçamba. É ainda a casa de centenas de famílias ribeirinhas que dependem do rio para viver. Desde o início das obras da usina, a região e seus habitantes enfrentam intensas transformações, e a partir de novembro de 2015, com o barramento definitivo do rio, os impactos começaram a ser fortemente sentidos.
“Eles estão começando a aparecer agora. Ninguém sabe direito o que vai acontecer. Eu venho lutando contra Belo Monte, e não é porque a obra está pronta que eu vou parar de lutar. Pelo contrário, agora é que a luta começou”, alerta Gilliard Juruna, cacique da aldeia Miratu, na TI Paquiçamba, que fica a menos de 9 km do barramento.
Essa região é considerada área de influência direta da hidrelétrica de Belo Monte, e com o fechamento das comportas e a interrupção do fluxo do rio, até 80% do volume de água é desviada do leito natural por um canal artificial, de aproximadamente vinte quilômetros de comprimento até um lago artificial. No final desse lago, há a casa de força principal de Belo Monte e a água volta para o Xingu.
Esse volume de água desviado deixa de passar por aproximadamente 100 km da Volta Grande, considerada um “trecho de vazão reduzida”, alterando o ciclo hidrológico da bacia e o delicado equilíbrio da fauna e flora locais. “Com a barragem de Belo Monte o rio morreu, pelo menos da forma como ele era. Continua aqui mas não é do mesmo jeito”, explica Marcelo Salazar, do ISA, que há dez anos mora na região e acompanhou todo o processo de licenciamento e implementação da usina.
Sem rio e sem peixe
A pesca é a principal atividade para a subsistência dos Juruna, conforme Atlas dos Impactos da UHE Belo Monte sobre a pesca. Segundo dados dos dois anos inciais do monitoramento independente dos Juruna, da produção total de 4.469 kg de pescado, 98% é para alimentação e 2% para comercialização. Em síntese, do recurso alimentar consumido, o peixe representa 55% das refeições.
O peixe também é uma importante alternativa de geração de renda para as populações da Volta Grande, incluindo a pesca ornamental realizada pelos Juruna. A dificuldade ou a impossibilidade de chegar em áreas de pesca vem preocupando a população. “A gente levava uma hora pra chegar nos locais de pesca, e agora demoramos o dobro. Tem local que a gente não tem mais acesso, porque a água diminuiu muito e não dá mais pra passar”, relata Natanael Juruna.
O Projeto Básico Ambiental do Componente Indígena (PBA-CI) iniciou suas atividades de monitoramento somente no segundo semestre de 2014, o que não permitiu o detalhamento necessário sobre o consumo de peixe e a comercialização das principais espécies que caracterizam a atividade pesqueira dos indígenas Juruna na Volta Grande, no período que antecedeu o barramento do rio.
Pesca comprometida
Desde a implementação da hidrelétrica, os indígenas da aldeia Miratu contam que importantes pontos de pesca foram extintos ou comprometidos com o início da construção de Belo Monte e que os peixes estão morrendo ou doentes. Em 2013, a Associação Indígena Yudjá Miratu da Volta Grande do Xingu (Aymix), em parceria com o ISA e a Universidade Federal do Pará (UFPA), passou a fazer um monitoramento independente na região. O estudo é realizado pelos pesquisadores indígenas e envolve um levantamento mensal sobre as dinâmicas da pesca e consumo alimentar das famílias da aldeia. Esses dados são importantes para desenhar a linha base para comparar a situação antes do barramento com as transformações que irão ocorrer.
De acordo com o Atlas da pesca importantes áreas de pesca foram extintas ou comprometidas com o início da construção de Belo Monte, em decorrência de impactos como iluminação artificial dos canteiros de obra, uso de explosivos, lançamento de ensecadeiras (barramento provisório do rio), assoreamento de cursos d’água e aterramento de áreas do rio. Com o barramento definitivo do rio, em novembro de 2015, novos impactos vem se configurando e tendem a se agravar decorrentes da diminuição da vazão do rio e de conflitos por áreas de pesca, já que muitos pescadores que perderam suas áreas em Altamira e outras regiões estão avançando para pescar na Terra Indígena, gerando pressão no território.
A captura dos peixes está intimamente ligada aos ciclos de cheia e vazão do rio. Tanto o pacu como a matrinxã, por exemplo, se alimentam de frutos provenientes das áreas alagadas e não terão tais ambientes disponíveis com a alteração da vazão do rio. “Nós somos pescadores e estamos muito preocupados, vivemos do rio e não sabemos mais como vamos tirar o nosso sustento”, conta Manoel da Silva, que vive na Ilha da Fazenda, comunidade próxima ao barramento.
Tanto os impactos da fase construtiva quanto os que se configuram a partir do desvio do rio, apontam para um contexto de grandes mudanças nos padrões da atividade pesqueira e nos modos de vida das populações indígenas e ribeirinhas.
“Sem peixe nós não sobreviveremos. O nosso povo sempre viveu do peixe nesta região. Eu fico triste quando ouço que o peixe vai acabar. Nós vivemos do peixe, do rio, por isso somos os Yudja [outro nome para designar Juruna], que quer dizer “os donos do rio”, e nós sempre sobrevivemos do rio, que pra nós é tudo. Enquanto existir o Xingu nós estamos lutando. Vamos até o fim. Quando ele morrer a gente morre junto”, diz Gilliard.
16 toneladas de peixes mortos
Depois de desviar definitivamente o Rio Xingu e realizar o primeiro teste de geração de energia da hidrelétrica de Belo Monte (PA), a empresa concessionária Norte Energia foi responsabilizada pela morte de 16 toneladas de peixes em um espaço de três meses — entre novembro de 2015 e fevereiro deste ano. O Ibama aplicou uma multa de R$ 35,3 milhões, a maior desde a implantação da usina, pois constatou que a morte dos peixes foi causada por problemas na operação dos vertedouros do Sítio Pimental e do Canal de Derivação, que provocaram “turbilhonamento excessivo da água”.
Pragas
Ribeirinhos e indígenas relatam que a quantidade de carapanãs, como eles chamam o mosquito, aumentou vertiginosamente desde a instalação da usina. Com isso, seus hábitos — pesca, coleta de produtos florestais, roça — ficam comprometidos pois os insetos impossibilitam que essas atividades sejam realizadas tranquilamente.
“A gente ia pras praias, passava a semana pescando… os meninos até pararam de jogar bola, não dá mais pra tomar banho no rio. Não temos mais a liberdade que a gente tinha antes”, relata Bel Juruna.
Ela se preocupa com a alta quantidade de veneno que as comunidades usam todos os dias: “Agora a gente tem que viver andando com bomba de veneno, tendo que respirar veneno, mas é a única forma que temos de ficar um pouco livre dos insetos, mesmo dentro da própria casa. Pode intoxicar as crianças, as pessoas, e os problemas do veneno não aparecem na hora. Mas e como é que vamos fazer?”.
Transposição
Além da alteração do fluxo das águas do Xingu, em determinado trecho do rio é preciso descer da embarcação e utilizar o transporte da Norte Energia para seguir viagem. O mecanismo de transposição terrestre de barcos fica ao lado do Sítio Pimental, canteiro de obra onde está sendo erguida a casa de força secundária da usina. “A gente ficou totalmente arrasado porque é um transtorno passar por aquela transposição, a nossa embarcação ter que passar por ali. Isso no nosso rio, que a gente tinha total liberdade de ir e vir”, aponta Bel.
Funcionários da Norte Energia aplicam um questionário nos que atravessam o trecho: nome, sobrenome, telefone, endereço, o que se leva na embarcação e, segundo Bel, até a renda. “O que tem a ver perguntar a nossa renda? Agora a gente tem que dar satisfação do quanto a gente ganha pra Norte Energia? É só pra humilhar mesmo”, desabafa. Com o barramento definitivo do Xingu, em novembro de 2015, esse é o único meio fluvial de chegar até as comunidades da Volta Grande.
Falta de diálogo
A condicionante 2.22 da Licença de Instalação da obra, obrigava a Norte Energia a discutir, um ano antes de fechar o rio, as propostas de monitoramento, mitigação e compensação dos impactos durante a fase de testes junto às comunidades afetadas, tanto indígenas como ribeirinhas. Até o momento, entretanto, o empreendedor apresentou essas informações apenas ao Ibama, órgão licenciador, e as comunidades indígenas e ribeirinhas seguem alijadas do processo de monitoramento e da definição de medidas de mitigação e compensação.
Os monitoramentos realizados pela empresa para os componentes ecológicos e sociais da Volta Grande foram desenhados sem diálogo com as comunidades afetadas e não há espaço para internalizar, no processo de licenciamento, as percepções de impactos e participação efetiva das populações. “O ambiente mudou muito. A navegação ficou difícil, o peixe está morrendo… e nós ficamos sem saber o que tá acontecendo. Nós exigimos saber o que está acontecendo. Vamos continuar brigando pelos nossos direitos, principalmente para que a Norte Energia nos diga o que está acontecendo com o nosso rio”, alerta Gilliard.
O monitoramento da qualidade da água, por exemplo, é realizado por empresas contratadas pela Norte Energia que coletam informações sobre componentes monitoradoss, mas as amostras são enviadas para análises integrais em laboratórios fora da região. Os Juruna solicitaram a inclusão de pontos relevantes para a aldeia Miratu nesse monitoramento, como locais de pesca tradicional. Alguns indígenas participam da coleta de informações junto às empresas terceirizadas apenas como monitores, coletores de dados, mas não tiveram acesso aos resultados até agora e não dialogam sobre as conclusões do monitoramento.
Canoada
A Canoada Bye Bye Xingu, uma ação ativista realizada pela Associação Indígena Yudja Miratu da Volta Grande do Xingu (Aymix) e pelo ISA, busca monitorar e chamar a atenção para os problemas que os povos e comunidades do Xingu enfrentam desde a instalação da usina. O evento tem como prerrogativa o fortalecimento da rede de apoio às populações da Volta Grande e aprofundar o entendimento sobre os impactos de Belo Monte em todas as esferas da vida dessas comunidades por pesquisadores, jornalistas, empresários e pessoas interessadas em conhecer de perto os impactos de uma grande obra na Amazônia, o rio Xingu e seus povos.
Realizada entre 5 e 9 de setembro, a 3a edição da Canoada se deu após o fechamento das comportas do Xingu, e as mudanças no cenário são impactantes. Com a seca do rio, a travessia de 112 quilômetros se tornou mais difícil e a paisagem deslumbrante se mistura com cenas de ilhas alagadas, desmatadas e peixes doentes.
“É uma experiência sentir junto com os indígenas e ribeirinhos as consequências da instalação da usina, as belezas e as dores da região. Quem participa da canoada e ouve as populações afetadas, sente as picadas de carapanã, vê os peixes e árvores morrendo, volta convencido de que o modelo de desenvolvimento para o país não pode ser o de construção de barragens como Belo Monte”, afirma Marcelo Salazar, do ISA.
A canoada é também uma experiência que ajuda os índios a refletir sobre outras alternativas socioeconômicas para as comunidades que dependiam do comércio do pescado, tão impactado com a instalação de Belo Monte, para sobreviver. Exímios navegadores, os indígenas e ribeirinhos têm a possibilidade de gerar renda com esse tipo de atividade usando seus profundos conhecimentos do rio, como guias, alugando suas canoas e infraestrutura, contando sobre o contexto local, além da venda de produtos de roça e artesanato.
Consenso pra quem? A briga pela água
O Rio Xingu, em época de chuvas, chegava a ter médias históricas de mais de 20 mil m3 por segundo de água passando em seu leito. Após Belo Monte, a Volta Grande não contará com mais do que 8000 m3/s Como o pulso de enchente e vazante será profundamente alterado, o nível da água não será suficiente para manter a nutrição das ilhas, nem para que a fauna aquática tenha acesso às áreas inundáveis, prejudicando sua reprodução e, por consequência, os modos de vida das populações que dependem do rio para viver.
Nos próximos anos, a Norte Energia fará uma série de testes para determinar qual é a quantidade de água a ser liberada para a geração de energia e o montante que será destinado para a Volta Grande. Ou seja, até 2019, ano em que todas as turbinas vão estar funcionando, a concessionária vai “abrir e fechar a torneira” da barragem, atendendo as disposições estabelecidas pela Agência Nacional de Águas (ANA) e pelo Ibama para a vazão mínima necessessária para cada mês do ano.
“Estamos com medo, com medo de qualquer hora eles liberarem um nível grande de água, sem considerar a vida das pessoas que estão aqui. Eles não pensam na gente, só no empreendimento”, desabafa Bel. A luta agora, para os Juruna, é pela garantia da água na Volta Grande — essencial para a subsistência das comunidades.“Temos medo de não poder mais morar aqui”, diz Bel.
“O que está sendo experimentado é qual é a vazão mínima para manter a vida no local. E que vida essa vazão mínima consegue manter? É um grande experimento humano e com a natureza, de testar a vida da natureza e do homem que vive naquela região pra ver se vai dar certo. É um laboratório macabro que tá sendo feito com essas pessoas que vivem na região”, alerta Marcelo Salazar, do ISA.
A luta continua
Mesmo depois de 26 ações do Ministério Público Federal na Justiça atestarem sua inviabilidade, a hidrelétrica de Belo Monte segue seu curso. “Rapaz, os impactos tão aparecendo agora. Os idosos na nossa aldeia entram quase em depressão, acham que vai acabar tudo. Viveram a vida inteira sem esse monstro de Belo Monte, sempre sobreviveram livres.
A gente precisa lutar pra minimizar esses impactos e pra que eles [Norte Energia] nos digam o que vai ser da gente”, alerta Gilliard. Natanael faz coro: “Pra nós essa luta não vai acabar tão cedo. A luta pode ter acabado pras construtoras, mas pra nós não”.
Raimunda Gomes da Silva foi uma das pessoas removidas compulsoriamente de suas casas, nas ilhas da Volta Grande do Xingu. Ela e seu marido, seu João, tiravam sua subsistência da pesca e dos produtos da roça em suas comunidades. Em agosto de 2015 sua casa foi queimada e a ilha, assim como outras na região, foi parcialmente alagada pelo reservatório artificial construído para a geração de energia de Belo Monte.
Hoje dona Raimunda vive em uma casa no bairro Airton Senna II, em Altamira e faz planos para sua nova morada, que chama de “Terra Prometida”. O terreno, adquirido com a indenização da Norte Energia fica a 350 metros do rio, para ela, bem distante.
“Mas é no rio”, diz ela. “Eu vou estar lá, de frente, olhando… Não vou ver ele sorrindo nem correndo livre, pelo contrário, vou ver ele agonizando, mas quero que ele veja que eu não o esqueci”.
Mineradora é nova ameaça para a Volta Grande
A maior mina de exploração de ouro a céu aberto no Brasil pode ser instalada ao lado de Belo Monte, agravando ainda mais a situação no Xingu. Belo Sun, empresa canadense responsável pelo projeto “Volta Grande”, vem realizando pesquisas na região desde 2008 com a intenção de explorar recursos minerários. Ainda não há previsão para o início da instalação da mina, embora o projeto já possua uma Licença Prévia emitida pela Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Pará.
A mina encontra-se no município de Senador José Porfírio, próximo da Vila da Ressaca, comunidade de 300 famílias que depende da roça, pesca e do garimpo artesanal para sobreviver. Sea obra for consolidada, as 300 famílias terão que ser reassentadas.
O empreendimento fica a 9,5 km de distância da Terra Indígena (TI) Paquiçamba e 13,7 km da TI Arara da Volta Grande do Xingu — regiões já bastante alteradas pela instalação de Belo Monte. Em 2014, a Justiça Federal suspendeu o licenciamento ambiental do projeto de mineração até que a Belo Sun entregasse os estudos de impactos sobre as populações indígenas. A empresa conseguiu derrubar a decisão, mas os índios querem ser consultados sobre o empreendimento antes que o licenciamento avance. Também foi determinada uma atualização do Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima), com uma revisão dos estudos que contemple a sinergia e acumulação de impactos com Belo Monte, que não foram considerados nos estudos anteriores.
Em 12 anos, a estimativa é que serão extraídas 600 toneladas de ouro. Ao final da exploração, a iniciativa prevê deixar duas pilhas gigantes de material estéril, quimicamente ativo, que somadas terão área de 346 hectares e 504 milhões de toneladas de rochas, sem previsão para sua remoção.
“Não podemos deixar Belo Sun, acontecer, principalmente depois de Belo Monte. Ribeirinhos e indígenas estão preocupados, mas nós vamos continuar lutando”, afirma Manoel da Silva, que vive na Ilha da Fazenda , a 800 metros da mina.