Expedição percorreu a Volta Grande do Xingu (PA) para monitorar os impactos de Belo Monte. Foto: Kelly LIma

Os donos do rio

Instituto Socioambiental
Histórias Socioambientais
10 min readSep 21, 2017

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A Canoada Xingu, expedição com 94 pessoas, percorreu a Volta Grande do Xingu (PA) com indígenas e ribeirinhos para verificar as mudanças de Belo Monte e promover alianças entre a comunidade científica, formadores de opinião e as populações locais.

Por Isabel Harari, jornalista do ISA

“Somos os Yudja, os donos do rio Xingu. Por isso que a gente briga, batalha, discute e faz o que for necessário para defender esse rio que pertence a nós”, conta Jailson Juruna, o Caboco,em frente à cachoeira do Jericoá, na Volta Grande do Xingu (PA). É o ponto final da Canoada Xingu, expedição com 94 pessoas, que percorreu a região a fim de monitorar as mudanças provocadas pela hidrelétrica de Belo Monte.

A cachoeira do Jericoá, sagrada para os Yudja — ou Juruna como são conhecidos na região — já não jorra tanta água. Após o barramento do rio por conta da hidrelétrica de Belo Monte, há quase dois anos, a vazão natural do rio deixou de passar na região para encher os reservatórios e operar a casa de força principal da usina.

“O Xingu não é mais o mesmo. Ver essa seca me deixa com o coração partido, mas vamos continuar lutando por ele”, reitera Caboco, liderança da aldeia Mïratu, Terra Indígena Paquiçamba, que fica a menos de 10 quilômetros de Belo Monte.

Desde a instalação da usina, o Rio Xingu sofre impactos que mudaram radicalmente a vida de indígenas e ribeirinhos que ali vivem. Dificuldade em navegar por trechos do rio, desaparecimento de locais de pesca tradicionais, aumento de pragas, diminuição e morte de peixes são alguns dos exemplos mais contundentes.

Jailson “Caboco” Juruna, na região do Jericoá. Foto: Isabel Harari/ISA.

O fechamento das comportas e o barramento definitivo do rio, em novembro de 2015, intensificou essas mudanças.“Trazemos essas pessoas para que elas vejam com os próprios olhos o impacto que Belo Monte deixou. Trazemos essas pessoas para que levem para fora essa realidade, porque a luta ainda não acabou”, completa Caboco.

Na água e na pele

Entre os dias 5 e 9 de setembro 13 canoas tradicionais atravessaram o reservatório de Belo Monte — um imenso lago artificial criado para geração de energia — as corredeiras e pedrais da Volta Grande do Xingu para sentir na pele as transformações provocadas pela hidrelétrica. Foram cinco dias e 110 quilômetros de remada junto com os Juruna e ribeirinhos que, além de denunciar os impactos da usina, mostraram como aprenderam a viver e resistir em um ambiente transformado.

“Remar com os Yudja é uma oportunidade única de conhecer o rio através dos olhos e das mãos de quem é dono do rio. A velocidade do remo, mais devagar, gera uma oportunidade de interação com o rio, floresta e povos em outro ritmo, com muito mais profundidade”, conta Marcelo Salazar, coordenador adjunto do programa Xingu, do Instituto Socioambiental e um dos idealizadores da atividade.

Indígenas e ribeirinhos guiaram a expedição pelo Xingu. Da esquerda para a direita, Elenildo (Nildo), Anderson (Dandi) e Geane. Fotos: Kelly Lima
A Canoada percorreu trechos do Xingu impactados por Belo Monte. À esquerda, canoas passam pelo barramento principal. Fotos: Kelly Lima

A Canoada Xingu é uma atividade realizada pela Associação Indígena Yudja Miratu da Volta Grande do Xingu (Aymix) em parceria com o ISA desde 2014. Busca, além de monitorar as transformações na região, procurar aliados dos povos do Xingu na luta por seus direitos e seus territórios.

A novidade desde ano foi a participação de um grupo de pesquisadores — entre antropólogos, geólogos, biólogos, especialistas em ictiofauna e na qualidade da água. O objetivo é incitar o debate sobre os impactos na região de modo que os conhecimentos tradicionais dos povos sejam considerados em pesquisas de diversas áreas.

“É preciso ampliar as pesquisas sobre os impactos na Volta Grande que têm sido negligenciados nos relatórios técnicos assinados pela empresa empreendedora de Belo Monte, promovendo uma maior sensibilização dos cientistas com relação aos saberes tradicionais destes povos”, comenta Thais Mantovanelli, antropóloga que acompanhou a Canoada.

O professor Ingo Wahnfried, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) se surpreendeu com a diversidade de pessoas que participaram da atividade. Para ele, que é da área de Geociência e especialista em hidrogeologia — o estudo de águas subterrâneas — , a interação com ribeirinhos e indígenas foi “fantástica”. “Quando você ouve as outras pessoas você consegue ter um olhar mais amplo. É isso que falta no Brasil, a sensibilidade de enxergar através do olhar de uma pessoa diferente”.

Abaixo da barragem falta água. Cerca de 80% da vazão natural do rio deixou de passar na região para encher os reservatórios. Fotos: Isabel Harari/ISA e Kelly Lima
Acima sobra água. Foi criado um imenso lago artificial que alagou ilhas e fez com que centenas de famílias ribeirinhas fossem removidas. Com a cheia permanente, a vegetação morreu. Fotos: José Gustavo Martins Rodrigues Torres e Kelly Lima.

Soberania alimentar em risco

O caminho entre a praia que os participantes da Canoada Xingu acamparam e a aldeia Mïratu, está completamente seco. Ney Juruna anda entre os pedrais e mostra os arbustos de sarão, fruta que serve de alimento para os peixes da região. Com o barramento definitivo do rio, este e vários outros trechos da Volta Grande que tinham os regimes de cheia e vazão bem definidos agora ficam permanentemente sem água.

Os frutos do sarão amadurecem e caem no inverno, época de cheia. Com o volume de água baixo eles passaram a cair no seco e os peixes não conseguem se alimentar nem se reproduzir. O pacu, peixe mais consumido pelos Juruna, se alimentava destas frutas.

Ney Juruna, o Pacu, mostra os frutos do Sarão. Fotos: Isabel Harari/ISA

Segundo dados da Norte Energia, apenas entre novembro de 2015 e junho de 2016, morreram quase 20 toneladas de peixes por conta dessas mudanças: duas vezes mais do que os Juruna pescaram em três anos. Isso representa somente uma parte dos peixes que morreram efetivamente, já que o monitoramento da empresa não captura tudo que acontece no rio.

Gilliarde Juruna, cacique da aldeia Mïratu, se preocupa com a queda da produção pesqueira e da qualidade dos peixes. “Se eles [os peixes] estavam morrendo a gente podia morrer também. Paramos de comer o peixe durante um tempo porque ficamos com medo”, conta. [Saiba mais]

Bel Juruna é agente de saúde preocupa-se com a entrada de alimentos da cidade nas comunidades: “chegam alimentos que nos fazem mal”. Em 2015 o consumo de alimentos da cidade representava 25% do consumo total da aldeia, no ano seguinte, após o barramento do rio, esse número subiu para 50%. A porcentagem do pescado, por sua vez, caiu de 56% para 41% no mesmo período.

Gráfico mostra redução do consumo de peixes na dieta dos indigenas

Além de comprometer a segurança alimentar das populações da Volta Grande, a diminuição da qualidade e quantidade do peixe afetou a comercialização na cidade — uma importante fonte de renda para os indígenas e ribeirinhos. “A gente tinha medo de vender o peixe doente”, comenta Caboco.

Seu Babá vive na Ilha da Fazenda, comunidade que também depende do peixe para sobreviver. “Até o sabor do peixe mudou. Os povos da Volta Grande não mandaram fazer essa barragem. A pesca e o peixe fazem parte da nossa cultura, estamos perdendo o nosso peixe e a nossa cultura”, lamenta.

Todos esses dados são sistematizados no monitoramento independente que os Juruna fazem sobre a pesca e o consumo alimentar da aldeia Muratu há 4 anos. Os resultados do monitoramento são publicados no site da própria Associação.

Monitoramento independente é feito pelos indígenas desde 2013. Acesse.

O trabalho é realizado pela Aymix em parceria com a Universidade Federal do Pará (UFPA) e apoio do ISA e foi apresentado pelos Juruna durante a Canoada. O estudo vem sendo realizado por meio da coleta de dados mensais sobre as dinâmicas da pesca e o consumo alimentar das famílias da aldeia. Esses dados são importantes para desenhar a linha base que permite comparar a situação antes do barramento com as transformações que estão acontecendo.

O Projeto Básico Ambiental do Componente Indígena (PBA-CI) iniciou suas atividades de monitoramento somente no segundo semestre de 2014, o que não permitiu o detalhamento necessário sobre o consumo de peixe e a comercialização das principais espécies que caracterizam a atividade pesqueira dos Juruna no período que antecedeu o barramento do rio. O monitoramento feito pelos indígenas, portanto, é o único que contém os dados mais completos que comprovam os impactos de Belo Monte na atividade pesqueira.

“Esse processo de produção de conhecimento conjunto tem um saldo social positivo enorme, que se traduz em ganhos de compreensão e engajamento sobre o que significa a transformação do território e as responsabilidade pela compensação e mitigação das mesmas”, comenta a advogada Biviany Rojas, do ISA, que vem acompanhando o monitoramento desde o início.

Crianças Juruna brincam no Xingu. Fotos: Márcio Seligmann

Estudo de novas possibilidades de renda

Nesta edição da Canoada começou a ser discutida a possibilidade de iniciativas de turismo na região. O professor Victor Lopez coordena o Programa de extensão Gestão e Promoção de Atividades na Natureza e Áreas Protegidas na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e esteve na Volta Grande para pensar no tema junto com os indígenas e ribeirinhos.

“É uma região com potencial gigantesco, tanto pelas belezas naturais quanto pela competência das comunidades que vivem aqui — que são exímios remadores e exímios conhecedores do rio”, comenta Lopez, que conduziu uma exercício inicial de formação de condutores de turismo de aventura para 27 pessoas, entre indígenas e ribeirinhos.

Indígenas e ribeirinhos guiaram a expedição pela Volta Grande. Foto: José Gustavo Martins Rodrigues Torres

Belo Sun, fumaça que ameaça o Xingu

Mesmo com a Licença de Instalação suspensa desde fevereiro deste ano, a mineradora Belo Sun continua sendo uma ameaça para os povos que ali vivem. A empresa promete ser a maior mineradora de ouro a céu aberto do Brasil e retiraria, se fosse implementada, cerca de 600 toneladas de ouro em 12 anos. Ao final da exploração, deixaria duas pilhas gigantes de rejeito de material estéril quimicamente ativo terão, somadas, área de 346 hectares e 504 milhões de toneladas de rochas, sem plano para sua remoção.

“Já sofremos um impacto gigantesco dessa barragem de Belo Monte. Agora Belo Sun quer envenenar o Xingu. Vimos o que aconteceu em Mariana (MG) com o rompimento da barragem”, alerta Caboco.

A mina encontra-se próxima da Vila da Ressaca, comunidade de 300 famílias que depende da roça, pesca e do garimpo artesanal para sobreviver. “Com Belo Sun a nossa vila vai acabar. Mas eu ainda acredito na Justiça, acredito que não vão deixar a Belo Sun entrar aqui”, comenta José Pereira Cunha, o Pirulito, presidente da cooperativa dos mineradores artesanais da Ressaca.

José Pereira Cunha, o Pirulito, com mapa que situa o projeto da mineradora Belo Sun. Foto: Isabel Harari/ISA

“Os empreendedores agem e falam como se a mineradora fosse uma realidade. Mas Belo Sun não é uma realidade, é um projeto, é uma fumaça, ainda depende de financiamento privado, de licenças, de consultas prévias a populações afetadas. A Volta Grande está sob o impacto de Belo Monte, que ainda não foi dimensionado. Sem esses impactos dimensionados não tem condições de ser instalado nenhum novo empreendimento”, atenta Marcelo Salazar.

Qualquer empreendimento adicional na região deve contar com o consentimento livre prévio e informado dos povos indígenas e tradicionais da Volta Grande do Xingu de acordo com a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário.

Os Juruna já construíram e publicaram seu próprio Protocolo de Consulta, documento que reitera o direito à consulta antes que qualquer empreendimento, entre eles a Belo Sun, pretenda se instalar na região.

Participantes da Canoada Xingu. Foto: Kelly Lima
Expedição percorreu a Volta Grande do Rio Xingu. Ao centro, o pequeno Jawá Juruna. Fotos: José Sabino
À esquerda, Arewana, da aldeia Tuba Tuba, Território Indígena do Xingu (MT), que esteve pela primeira vez na Volta Grande do Xingu. Bel e Estandengo ao centro e dona Jandira e seu Agostinho Juruna à direita. Fotos: Isabel Harari
Participantes remaram 110km em canoas tradicionais. Fotos: Kelly Lima
Acampamento no Jericoá. Foto: José Sabino

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