A última mulher que andou na linha, o trem passou por cima

Gabriella Feola
Histórias Safadas
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6 min readNov 3, 2022

Eu nasci assim, Gabriella. Cravo e canela? Me perguntavam. Eu murmurava um não de olhos revirados.

Seja no cenário de Ilheus dos anos 1950 ou na São Paulo dos anos 1990, não é simples nascer Gabriela numa sociedade em que escapulir de casa para dormir com o dentista resulta em morte, ostracismo, castigo, maldição.

Mulheres eram divididas entre as Marias virgens e as madalenas, as nascidas para casar ou, para fuder.

De criança, havia um magnetismo sem nome que me fazia cantar Geni, Capitu e Pagu. Me fascinavam as putas mais que as princesas. Todas as tarde eu não podia perder o dilema da Rubi, la descarada, dividida entre dois homens, sem poder escolher entre o amor e o conforto.

Mujer de nadie, mujer de todos, mujer que mata
Mujer que duele, mujer que entrega y que arrebata

A pedagogia de bem e mal era clara:

Escolha o amor puro e incondicional, enfrente os sofrimentos, faça sacrifícios, escolha pela resignação e aguarde sua recompensa celestial. E não se demore. Tentar dividir-se entre as opções resultaria no trágico destino de Rubi: a solidão, a multilação, a perversão.

Na adolescência, para dançar conforme a música da moral, eu me fazia de dificil. Contrariava minhas vontades sem saber quando parar de oferecer resistência.

Mesmo interpretando a Maria do Bairro, eu não chegava perto de ser lida como a garota para namorar. Não por ser imoral (naquela época ainda não era esse o motivo), mas porque me faltava algo. Uma timidez, uma fragilidade, um tom de dúvida, de insegurança, uma beleza de porcelana, um pouco mais de silêncio talvez… Sobrava um mandar, uma boca suja.

Talvez porque aos 15, na igreja, era eu quem ensinava marmanjo de 25 anos a usar uma furadeira, me tornei como um dos amigos, era a garota "brother", no masculino. Não haveria de ser a princesa por quem alguém se apaixona.

Eu dizia que na próxima encarnação queria nascer homem. Não por disforia, mas para ser quem toma iniciativa, quem fica solteiro, quem mora sozinho sem encalhar. Nas minhas próprias fantasias eu não cabia no lugar de namorada. Eu haveria de ser A Outra ou não seria nada.

Era uma dor estranha: me faltava algo que era mais importante pros outros do que pra mim. O problema era que, ao não poder oferecer esse elemento de mulher direita, o mundo me negaria a recompensa do sacrifício, me negaria o amor.

Quando minha performance parecia dar certo…

Quando um principezinho me oferecia serenatas e um namorico a fogo lento, eu sai correndo. Não era eu, não era pra mim. “Ele é um menino de ouro, você não vai encontrar outro igual…”, me diziam.

E então eu renunciava ao prêmio que me soava como prisão e escolhia a consequência de ser punida, de não encontrar outro alguém que me valorizasse… Era o coração dele ou o meu. “Fala pra ele que sou eu que não presto”.

Eu era quase feliz. Gostava de estar solta entre os meus amigos. As felicidades conviviam com a culpa, o desencaixe e o medo da solidão. Essa era a cruz que me cabia. E eu a aceitava.

Eu rejeitava os sonhos de namoro e casamento. Já em 2008 tentava defender essa coisa que hoje chamamos de não-monogamia, mas na época era um ficar sem compromisso. Me diziam: "Escuta quem tem mais experiência que você… quando você encontrar alguém, que você gostar de verdade, quando você se apaixonar, você vai ver que vai ser diferente."

Eu me apaixonava e mais cedo ou mais tarde eu desejava outros corpos, aventuras, multidões. Nada me assustava mais do que a ideia de nunca mais beijar outra pessoa pela primeira vez; do que perder para sempre o sabor de descobrir as cócegas, os arrepios e os pontos fracos de alguém novo.

Eu esperava aos 18, 20, 22, 24 anos, a tal da paixão disciplinadora que tardava a chegar.

Quando eu conheci Lola, eu vi nela o que poderia ser de mim.

Contando 43 anos, ela também esperou décadas pelo amor que a aquietasse, que tirasse dela os desejos, os impulsos de traição. Esse homem chegou com requintes de crueldade e controle. Pouco tempo depois, Lola descobriu um cancer em estágio avançado e, com resignação, dizia que a enfermidade seria o justo pagamento por seus supostos pecados.

Com a Lola eu aprendi que a culpa era uma armadilha traiçoeira. Com teóricos de gênero eu aprendi que a subversão era um caminho justo e revolucionário. Mas um amor verdadeiro me pedia por cuidados nessa época. E esses sentimentos me prendiam aos sacrifícios.

Então eu soube da história da Bete.

Uma alegre e exuberante senhora que eu conhecia desde de criança e nunca a tinha visto acompanhada de um homem que não fosse o filho. Aos 65 anos, eu supunha que fosse viúva ou divorciada, mas ela me contou que seguia casada e morando com sua paixão de juventude. Há mais de 30 anos ele tinha se tornado recluso, e Bete dava-lhe cuidados a conta gotas, administrando seus sacrificios e suas vontade para conservar uma espécie de mausoléu de uma paixão morta que deixou saudades.

Nessas mulheres eu via a projeção do meu futuro: o amor disciplinador não entregou um conto de fadas a Lola, mas a prendeu eu uma prisão, num martirio; o sacrificio não salvou a paixão de Bete, não trouxe recompensas celestiais, apenas a manteve presa a um cadáver.

Eu não haveria de ser mais especial, nem meu amor seria mais forte… Decidi largar os sacrifícios e me libertar daquele que chegara mais perto de ser meu “amor da vida” . Me preparei para estar sozinha, para viver livremente — sem me culpar, nem esperar — a vida de quem não serve para romances.

E foi assim que começou minha mais orgulhosa história de amor(es).

A pequenas mordiscadas provei que, se não existe pecado do lado de baixo do equador (vide a impunidade dos fazedores de fortuna as custas do sofrer alheio), também não haveria castigo para uma safada tão inofensiva quanto eu.

Aos poucos eu laceei os relacionamentos rumo a uma não monogamia cada vez mais cheia de possibilidades. Nenhum castigo chegava.

Num dia bem simbólico, passei a noite com um rapaz que me serviu e se satisfez fazendo as minhas vontades a noite toda. Acordei sendo massageadas e, ao olhar meu celular, tinha um “bom dia” com “eu te amo” enviado por outro. Nua — e com outro amaciando minhas coxas — prontamente respondi que tambem o amava.

Lembrei da Gabriela Cravo e Canela, da Rubi, de todos os filmes, de todas as séries… Não haveria quem torcesse pelo bem de tamanha safada e poucos acreditariam na sinceridade desse amor declarado recíproco. A uma personagem assim estaria a beira de aprender uma lição.

Naturalmente eu segui meus dias sabendo que poderia receber um merecido castigo.

Mas nenhum veio, nem virá. Se existe Deus ele não está preocupado com as minhas perversões. Hoje eu não estou mais preocupada com o céu ou com o inferno, só com os relevos da terra.

Frios na barriga, antecipação, algumas decepções, outras conversas dificeis. Entre altos e baixos, se essa era a cruz que me cabia e não seria cruz alguma pois não era sacrifício, era o caminho da minha felicidade que tinha ladeiras e pedregulhos, como todos os outros. Era a dor e a delícia de ser quem se é.

Depois de adulta, ninguem mais me pergunta se sou cravo e canela.

Me negam a oportunidade de encher a boca respondendo com orgulho que sim, a própria.

Tentar ser a mulher que se espera de nós não é só algo que não contempla a mim, que nasci assim, Gabriella. A mulher que se espera de nós é algo inatingível. Faça todos os esforços que conseguir e no menor tropeção, no momento que falhar em algum dos aspectos — como mãe, como esposa, como objeto de beleza, como exemplo de moralidade — te atiraram pedras como na Geni, chamar-te-ão de Madalena e não haverá Cristo para te defender.

Aquelas que correspondendo a moral, não atenderem a sensualidade exigida, são descartadas porque não servem. E as que atenderem a sedução esquecendo-se da moral, o mesmo. Tentando performar com tamanha retidão tudo o que delas é pedido, há quem perca a si mesmas e há quem perca a sanidade.

Não há melhor forma de dizer, se não que A última mulher que andou na linha, o trem passou por cima.

"Deixou de ser esposa, deixou de ser mulher

Deixou de ser hetero, deixou de ser mulher

Não quis ser mãe, deixou de ser mulher

Eu não mais atuo como advogada de defesa dessa mitologia. Agora se me acusam de não ser e agir como mulher, concordo: é isso mesmo, não tem mais mulher aqui, chegou tarde, agora sou ex mulher"

  • Geni Nuñez, 2022

[Findo esse texto deixando-o aberto, como as outras coisas da minha vida.

Faço votos de que nós, as fora da linha, possamos reescrever nossas histórias e construir novos contexto, assim como o remake de Rubi, livrando-nos de pagar pecados inventados por outros e que não nos cabem.]

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Gabriella Feola
Histórias Safadas

Jornalista meio empreendedora, autora do livro Amulherar-se, cursa mestrado na Universidade de São Paulo, estudando Comunicação e Educação da sexualidade.