A SOMBRA DO CORVO: prólogo
Acordou com o som metálico. A sombra lhe apontou uma bandeja. Com os dedos sujos e trêmulos, alcançou os objetos. Suspirou. Era hora. Não comia há dias. O fedor pútrido da cela lhe enojava. Só tinha uma opção. Da bandeja, pegou a mochila com mantimentos.
A mochila pesava. Abriu com urgência e enfiou logo na boca um punhado de alguma coisa que não sabia o que era. A sombra recolheu a bandeja. O toque frio de um objeto metálico no meio do alimento despertou-o: uma chave. Destrancou a jaula e saiu. Com dificuldade seguiu para o túnel úmido à esquerda.
A cada passo que dava pelo túnel, a jaula improvisada na caverna parecia lhe chamar de volta — liberdade? A descida era íngreme. Os pés afundaram na água quando tudo ficou escuro. Uma pequena abertura emitia luz. Caminhou em sua direção, mas a profundidade aumentou. Foi quando tropeçou em algo sólido, ainda na parte rasa, e caiu na água. A mochila boiou a sua frente levada por uma corrente. Ele então tateou o objeto sólido.
A mochila desapareceu no escuro quando as mãos dele alcançaram uma extensão áspera. O coração disparou quando encontrou cinco dedos gélidos. O esqueleto fardado se agarrava a um pequeno baú de madeira. Engoliu seco e removeu o baú dos dedos.
A pequena arca era leve. Na escuridão, não conseguia enxergá-la. Tentou abri-la, mas parecia trancada. Cogitou procurar a chave no esqueleto. Todo seu corpo tremeu quando um grito diabólico veio do túnel por onde havia fugido. Com lágrimas nos olhos ele escondeu embaixo do morto.
Grito se tornou mais agudo à medida que ele arrastou o cadáver para cima de si. Um barulho alto e repetitivo ecoava pelo túnel em uníssono. Água voou por todos os lados quando a coisa o alcançou. Ele tremia, pelo frio e pelo medo. A voz parecia ser um coro do inferno. A coisa se chocava furiosamente contra a rocha. Repentinamente, um silêncio perturbador. Foi quando sentiu algo subindo pela sua perna. Ele permaneceu imóvel.
Os segundos pareciam se arrastar enquanto o leve formigamento subia suas pernas. A coisa ainda estava lá fora? Então ele gritou. Uma dor lancinante ferroou sua coxa. Imediatamente, o estômago veio-lhe a boca e tudo girava. A consciência lhe esvaía. Foi quando ouviu. Um grito bestial. Farfalhar. Foi arrastado no ar pela força invisível e lançado contra a parede, que ruiu abrindo uma passagem. Sem o baú, correu pela abertura.
Vacilava enquanto fugia. A abertura aos poucos se transformara em um largo túnel. De alguma forma, a criatura parecia não tê-lo seguido. A passagem subia. Por vezes, teve a impressão de ouvir vozes pelas paredes. A umidade diminuía e frestas de luz invadiam o local. Atingiu um salão de pedra de paredes com centenas de aberturas quadradas. Um sarcófago se encontrava no meio. O caminho bifurcava. Ele investigou as paredes.
Um ar gélido e desagradável passava pelas aberturas. Seu corpo inteiro arrepiou. As dimensões não pareciam ter mais que oitenta centímetros. Mesmo com os feixes de luz que iluminavam a câmara, ele mal conseguia ver pela maioria das aberturas. Analisou uma porção delas em vão. Estava prestes a desistir quando ouviu um som baixo e indistinguível de uma delas. Intrigado, alinhou a cabeça ao furo.
Primeiro teve dificuldade de entender o que ouvia. O som ainda era baixo, embaralhado e repetitivo. Sentiu náuseas quando compreendeu. Uma voz sombria e moribunda chegava pela abertura. Parecia alguma espécie de cântico ou oração. Não sabia dizer. Que diabos era esse lugar? Por mais que tentasse, não conseguia discernir quaisquer palavras. Não enxergava nada na abertura. Avaliou que seu corpo cabia ali. Ele se arrastou pela abertura.
Sentiu o gosto de morte na boca no momento em que entrou na abertura. Agora de corpo frio, a perna ferrada latejava com a fricção na rocha. Os minutos se arrastavam enquanto ele esmagava e se desvencilhava de toda sorte de insetos e musgo. Não enxergava nada a sua frente. A passagem abruptamente se tornou íngreme e ele deslizou pelo túnel. Atingiu o chão sob uma pilha de ossos numa câmara mal iluminada. Grades selavam as passagens no entorno e o único caminho era iluminado por archotes. De lá, vinha o lamento que ouvira. Ele pegou um archote e seguiu.
O túnel parecia ter sido construído na rocha eras antes. Uma brisa fria cortava o ar. A perna pulsava e a pele coberta de ferimentos ardia. A tocha em sua mão bruxuleava. Enquanto avançava, percebeu que sua chama enfraquecia — o oxigênio estava diminuindo. O cântico aumentava. A antecâmara que abriu a sua frente era estreita. No canto, um tanque a frente de uma pesada porta de ferro. Notou também um alçapão. Ele abriu o alçapão.
Um ar quente, carregado de um fedor podre, penetrou suas narinas, quase fazendo-o vomitar. Nauseado, ele desceu a escada de mão lentamente. A chama do archote queimava violentamente. Respirar se mostrou uma tarefa difícil. O ambiente era pequeno e não tinha circulação. A câmara terminava em um paredão de vidro translúcido manchado de carmesim. O cheiro fétido vinha de um cadáver estirado de bruços. Ele revirou o corpo.
Sentiu o gosto amargo de vômito quando virou o defunto. Marcas de grampos e costura sugeriam que ele já havia passado por uma autópsia. Tinha profundas lesões e feridas em toda a pele. A boca aberta de maneira grotesca abaixo dos olhos estreitos era o retrato do medo e fúria. Os dedos das mãos em carne viva na altura dos ossos indicavam de onde viera todo aquele sangue no vidro. Notou uma protuberância na pele. Abaixo das costuras no peito, algum objeto se escondia sob a epiderme. O coração disparou quando ouviu um sussurro. Assustado, ele abriu a pele do corpo.
A costura se rompeu com facilidade, revelando a carne podre do indivíduo. Uma mancha negra se fundia aos músculos atrofiados. Teve que se segurar para não vomitar. Fechou os olhos e penetrou os dedos na massa decadente, encontrando um objeto frio. Puxou de uma vez. O apito negro tinha um ar estranho. Era completamente liso, exceto por um número sete, gravado em baixo relevo. Ainda ouvia o sussurro. Ele se aproximou do vidro.
A respiração pesava. Sentia que o oxigênio da sala estava no fim, fornecido apenas pela abertura do alçapão. O archote ia se apagando. A superfície translúcida ia clareando a medida que ele se aproximava. O sussurro ficava nítido. Foi a menos de trinta centímetros que viu. De primeira não entendeu. Levou alguns minutos para distinguir a massa disforme do amontoado de cadáveres do outro lado, todos dilacerados. No centro, uma criança nua apoiava a cabeça entre os joelhos, balançando para frente e para trás. Arrepiou. O teto tinha uma abertura. Ele tentou se comunicar.
Balbuciou febrilmente algumas palavras para a criança macabra que balançava em transe. À princípio, nada aconteceu. Insistiu e gritou. A figura então aquietou. O silencio perturbador fez com que a vontade dele fosse correr dali. Dos lábios da criança, um cântico macabro. Inquieta, a criança gritava as palavras indistinguíveis. Levantou-se, pegou um corpo pelos cabelos e o arrastou em direção ao vidro. Ele se sentia irremediavelmente atraído a ela. Não sabia explicar. Através daquela aura negra, algo parecia chamar seu nome. Ele tentou quebrar o vidro.
Com as forças que ainda lhe restavam, golpeou a base do archote na superfície do vidro. Uma, duas, três vezes. Nada. Na quarta uma rachadura. A fissura se abriu sob a mancha carmesim. A criança de ossos proeminentes e coberta de sangue arrastava lentamente o corpo em sua nudez. O rosto era impassível. Olhos cinzas e vazios. Na quinta vez, aconteceu. Sem manifestar qualquer expressão, a criança arremessou o cadáver. O crânio atingiu o vidro, aumentando a rachadura. Os gritos da criança eram bestiais. Ela se aproximava. A tocha se apagava. Ele quebrou de vez o vidro.
A criança avançava quando ele ergueu o braço para desferir o último golpe. Entendeu tarde demais quem ela era: já atingira o vidro. Os raios da chama da tocha refletiam em todas as direções com os estilhaços, iluminando claramente o rosto frio da garota pálida. Tremeu. No fim do golpe a tocha se apagou. A respiração pesava tanto quanto o coração. Lentamente sufocou sem oxigênio, até que tudo enegreceu. Perdeu a consciência na escuridão da sala fria ao som dos gritos macabros da garota. Mal podia acreditar que sua filha ainda estava “viva”.