“Tá lá o corpo estendido no chão”

Mariana Costa
historietas
Published in
4 min readJan 5, 2018

O corpo é meu. Bem, acho que é meu, pareceu por alguns instantes que era. Não tenho mais tanta certeza agora que estou olhando diretamente para ele. De relance era muito parecido com um corpo que deveria ser meu. Deve ser o meu, só pode. É que meus óculos estão fracos, preciso ir ao médico para ver como anda meu grau, estou a cada dia que passa com mais dificuldade para enxergar, coisas da idade. Mas se bem que olhando assim mais de perto, não parece tanto com o meu. Será que é? Não tenho mais certeza de nada, pode ser que seja, mas não vejo muita gente se importar com ele, as pessoas passam por cima e eu continuo com a dúvida se é meu ou não. Vai ver é, mas eu também não me importo, ele estava ficando muito deteriorado, minha mente continua afiada, mas o corpo pereceu muito na última década, não foi tratado como deveria, nem ao médico eu fui nesses últimos anos. Pra que ir ao médico? Quanto mais a gente vai, mais doença eles acham, é por isso que estou com esses óculos velhos, quase sem enxergar, vai que eu chego no médico e ele descobre glaucoma, catarata, descolamento de retina e o que mais existir, além de câncer, eles sempre acham câncer, até em cachorro eles dão jeito de achar câncer. Eu que não piso num consultório tão cedo. Mas, olha, acho que não é meu aquele corpo não. Não pode ser, eu me alimento bem, só bebo de vez em quando, larguei o cigarro, faço caminhada 3 vezes na semana, já fiz yoga, spinning, pole dance, hidroginástica, crossfit, segui todas as modas de saúde, dieta da lua, dieta sem laticínio, dieta da proteína, ravena, abandonei a carne vermelha, depois abandonei todas as carnes, não como açúcar há anos, nem adoçante, deusmelivre porque tudo dá câncer e eu morro de medo de câncer, preciso ir ao médico fazer uns exames. Se bem que eu tô reconhecendo e acho que é meu sim. Quase 100% de certeza, mas esses óculos não deixam chegar à certeza absoluta, preciso chegar mais perto e tocar. Deve ser meu, só pode ser, impossível eu não reconhecer meu próprio corpo caído naquela calçada que fica bem perto da minha casa, só pode ser meu, é meu sim, não é possível que seja de outra pessoa, olha aquela calça que comprei na loja de uma amiga de uma prima distante, é minha, deve ser minha, é muito parecida, o corpo é meu, só pode ser. Mas chegando assim mais perto, não parece tanto, a calça tá surrada demais e eu evito passar por essa rua, porque tá cheia de pedinte, esse povo é capaz de matar a gente por nada, por causa de um celular, de uns trocados, de uma joia falsa, eles querem tudo da gente, pedem o tempo todo, imagina se fosse dar dinheiro pra todo mundo que pede, imagina… esse povo mata por nada pra trocar por pedra, malditos drogados que matam gente de bem, ao invés de procurar trabalho ficam na rua usando esses tóxicos o dia inteiro, por isso que estão nessa situação, matam por nada, matam gente trabalhadora, por isso que não passo nessa rua, morro de medo, mudo de calçada rápido sempre que vejo um, mudo mesmo, não é preconceito nem nada, mas se vem um menino desses mais moreninhos com roupa esfarrapada na minha direção, fujo mesmo, não quero morrer na mão de vagabundo drogado, eu que trabalhei a vida toda e que pago meus impostos, o tanto de imposto que eu pago e esses bandidinhos querem vir roubar as coisas que eu levei a vida toda trabalhando pra comprar, é absurdo demais, morro de medo desse tipo de gente, morro de medo de câncer, morro de medo de ser aquele corpo ali. Será que é meu, gente? Mas o que que eu fiz pra ficar ali jogada no meio da rua, enquanto o povo passa e parece que nem vê, todo mundo no celular, nem pra virar o corpo pra eu ver se é meu mesmo, no celular o tempo todo e ninguém liga pro socorro, vai que o corpo tá vivo, será que tá vivo? Não deve ser meu, eu fiz tudo tão certo na vida, rezei todos os dias, todo domingo eu tava na missa, doei muito dinheiro pra igreja, dei muita esmola, mas não dá pra dar esmola pra todo mundo que pede, senão teria que trabalhar só pra isso, pra dar esmola, nunca traí meu falecido marido, fiz muita boa ação, Deus não ia me deixar morrer desse jeito na sarjeta, não deve ser meu esse corpo. Se bem que eu tô reconhecendo, deve ser meu sim, mas também pode não ser, será que é meu? Será?

--

--

Mariana Costa
historietas

Jornalista, fotógrafa e finjo que escrevo nas horas vagas e nas ocupadas também