Tarde

Mariana Costa
historietas
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2 min readNov 17, 2018

Eu me escondia no meio da tarde. Era uma forma de me reservar dos ataques sofridos nas noites anteriores. Os entorpecentes já não davam conta da pressão que se fazia sobre minha cabeça. Havia um vazio de gente dentro de mim, havia um haver que nunca coube na realidade, havia um fazer que jamais foi realizado e havia eu ali parada e nua diante de olhos vorazes e insaciáveis. Eu poderia estar coberta com todos os panos do mundo, mas a sensação de ter meu corpo devassado era permanente, como se nenhum segredo meu existisse, minha páginas foram lidas por todos e eu não tinha mais como esconder o que pensava ou sentia. Meus olhos não se fixavam em canto algum, perdidos na escuridão da tristeza inenarrável, minha fonte de energia secara com a água da chuva que lavou a cidade inteira e eu nem sabia mais quem era eu naquele lugar. Vivi mortes demais, era insuportável não conseguir chorar por elas, não sentir dor, não sofrer era de uma crueldade sem limites.

Eu aparecia no meio da tarde. Era minha forma de dizer adeus aos que eu não amava. O sono precisava ser eterno para me satisfazer naquele instante, mas ele durava segundos e tinha que me levantar para mais um dia de não-existência. Como disse, sofria de falta de sentimentos, sentia o vazio me corroer, acabar com as minhas entranhas e matar o resto do sorriso que eu ainda fingia ter. Morri vidas demais, era difícil seguir o fluxo das coisas e não fazer parte delas. Eu estava cega em meio aos homens que caminhavam pela superfície quente e úmida daquele lugar. Eu não os via, mas sentia a presença de cada um deles, meu corpo era tocado por mãos alheias sem que eu permitisse. Era um pesadelo sem começo e sem fim.

Eu sumo com o meio da tarde. Faço tudo desparecer com um piscar de olhos que mal enxergam a um palmo de distância. Mergulho na inconsciência do sonho e sinto falta do que nunca tive. Eu sabia que nunca conseguiria ser além, eu conseguir ser menos do que acho que sou, eu sou diferente do que desejei pros outros. Pereci a olhos vistos diante de minhas maiores esperanças, tinha o cadeado da liberdade em mãos. Eu estava muda e não consegui me ouvir naquela casa morna e morta. Eu sentia que toda minha história era arrancada de mim, enquanto eu a vivia.

Era eu e eu não era.

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Mariana Costa
historietas

Jornalista, fotógrafa e finjo que escrevo nas horas vagas e nas ocupadas também