Sob o olhar da Idol Eterna

Das ruínas de Kyoto ao xogunato Matsuda: a implacável caravana do tempo

Danilo Zanella
Historiografia Idol

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Eram períodos violentos, aqueles antes da unificação promovida pelo xogunato Tokugawa e ínterim de “paz” e isolamento antes da abertura ao mundo ocidental, na segunda metade do século XIX. O imperador era visto como o líder oficial da nação mas o seu poder era muito mais simbólico, cerimonial e religioso. O real poder era delegado ao xogum, sendo divido na realidade entre diversos daimiô, lordes locais e chefes feudais, e que viviam lutando entre si, se aproveitando do enfraquecimento da espinha dorsal governamental. Ao mesmo tempo navios estrangeiros, portugueses e espanhóis, aportavam na sua costa, trazendo a cruz e o comércio.

Como num passe de mágica chegamos ao Japão moderno, amanhecer dos anos oitenta, os últimos do período Showa. No destaque de uma loja de discos qualquer do centro de Kyoto (antiga capital do império) reservado aos melhores lançamentos brilha, como um buda de ouro, o terceiro single de uma garota nascida em Kurume, cidade de médio porte na província de Fukuoka. Essa garota, que na época havia completado 18 anos e portanto se sagrado mulher (ao menos nos nossos âmbitos), renegava o nome do seu clã para adentrar o mundo no showbizz como uma representante moderna do que foi o kabuki cerca de 400 anos antes, já sob a bandeira de Tokugawa.

No caminho de volta da escola, um grupo de amigas nos seus 16 anos discutem sobre as celebridades enquanto caminham, vestindo seifukus e carregando ainda um pouco de inocência em seus perfumes florais. Uma argumenta o quando a graduação de Momoe Yamaguchi a deixa triste, mas ao mesmo tempo como ela sonha em um dia também “desistir de tudo por amor”. Ao passar pela loja de discos o olhar de Seiko Matsuda, ou Noriko Kamachi, na capa do seu primeiro hit fisga as meninas: o feitiço estava lançado. A admiração provém da identificação, pois a idol média da década de 1980 se parece com uma garota comum, estudante aplicada ou não, que tem lá suas ambições — mas as emoções acabam por se transformar na força motriz do adolescente. Algo de motivação também, já que uma das meninas sonha em entrar para esse mundo, ser ela também alvo de culto num palco e ter a sua face estampada, com um belo sorriso, na capa das revistas enfileiradas nas bancas de jornal.

Noriko Kamachi escolheu como seu nome artístico o pseudônimo Seiko Matsuda, muito mais sonoro e vendável. Seiko, escrito com os kanjis 聖 (sagrado) e 子 (criança). Para o mundo do entretenimento se tratava de quase um bodhisattva, o second coming da divindade idol.

O clã Kamachi já foi importante, em idos do século XIV, quando assumiam a posição de daimyo do domínio de Yanagawa (localizada mais ou menos na mesma província de Fukuoka, terra natal de Seiko), que mais tarde passou ao clã Tanaka. Também gozava de prestígio por ser da linhagem do imperador Saga (786–842), notório apreciador de chá e cultura chinesa. O clã Kamachi já teve o seu período de glórias, mas a verdade é que isso não importa e que suas ações não impactaram o suficiente os acontecimentos para ficar marcado por algo em especial nos livros de história.

Mesmo não tendo alçado vôos tão grandes quando tinham alguma força política, os Kamachi do período Sengoku olhariam para Noriko com orgulho. Talvez esteja sendo um tando anacrônico ao afirmar tamanho disparate, mas acredito que o domínio que ela (e seus produtores, não vamos nos enganar) impôs na indústria durante os seus tempos de estrela foi, se não total, muito próxima a unificação do arquipélago sob a sua bandeira. Em vez de samurais empunhando katanas, seus singles e álbuns. No seu estandarte um pôster, brinde de revista.

Ao ligar o aparelho televisor, lá estava a notável Seiko-chan entoando algo trivial e mundano, mas com o olhar de cachorrinho recém nascido e a lascívia de gado antes do abate. Ao terminar de cantar é entrevistava pelo apresentador do programa, que então traça o perfil da celebridade jovem do momento. Seu tipo sanguíneo (A) indica, segundo a crença popular japonesa, uma pessoa sensível, reservada, paciente e responsável porém também exigente, excessivamente séria, um tanto teimosa e tensa. O horóscopo dos tipos sanguíneos se confunde com o clássico num programa dedicado ao público adolescente, apesar da momentânea audiência de homens jovens e solitários. Em outro, canta a A-Side do seu segundo single vestindo um maiô bem comportado, enquanto na piscina se compete um daqueles jogos populares em programas de auditório. Nos intervalos a mesma garota parece onipresente, anunciando desde doces até relógios e cursos de inglês.

Costuma-se dizer que o fim da guerra de Onin (1467–1477) deu origem ao Sengoku. O próprio conflito foi motivado por disputas pelo título de xogum, após Ashikaga Yoshimasa, que havia adotado como herdeiro o irmão caçula por não ter filho algum, no ano anterior, resolveu passar o título ao seu filho recém nascido. A decisão não agradou o irmão, e dois clãs importantes de samurais (Hosokawa e Yamana) se dividiram em relação a quem apoiar para a sucessão. Inimizades acabaram para empurrar a discussão para o campo da guerra total. Ao término dos diversos combates que se desenrolaram a capital do império exibia um cenário desolador de destruição que nem na Segunda Guerra Mundial sofreria (visto que Kyoto foi poupada dos bombardeiros frequentes dos Aliados). Sobre a paisagem de destruição da antiga Kyoto, o famoso (e excêntrico) mestre zen Ikkyu Sojun escreveu à época, em forma de poema (tradução livre de outra tradução para o inglês):

Uma erupção de chamas e a capital — palácios dourados e quantas mansões —
Se transforma perante nossos olhos em um terreno baldio.
As ruínas, a cada dia mais desoladas, são outonais.
Brisas primaveris, flores de pêssego e ameixa, em breve escurecerá.

Enquanto aquela cidade de madeira queimava, desabava e virava cinzas para depois renascer, o povo pobre tentava levar a vida como podia. Os miseráveis, camponeses que muitas vezes tinham tudo aquilo que era produzido saqueado por bandidos ou mercenários, até mesmo os mais nobres samurais, contratados pelos senhores envolvidos na peleja. Não raro podiam ser assassinados gratuitamente, por diversão. Frequentes eram os saques de corpos nos campos de batalha, já que se amontoavam em quantidades cada vez maiores; as armas e armaduras eram valiosas. Frequentes também os castigos pelos furtos.

Quase nada daquela Kyoto de outrora pode ser visto a olho nu enquanto os Toyota, Nissan e Honda (ou aqueles de montadoras ocidentais) diversos desfilam pelas suas ruas principais, ou mesmo nos labirintos residenciais tradicionais. Do rádio de um modelo popular uma voz juvenil anuncia o ranking das idols do momento. Irritado, o motorista muda de estação até cair numa mais do seu gosto, que tocava um hit do Yellow Magic Orchestra.

A fórmula seguida pelos compositores que trabalharam nas primeiras gravações de Seiko Matsuda não indicava nada fora do normal. Não haviam extravagâncias nem experimento ou ousadia tanto no instrumental quanto nas letras. Pop chiclete bem feito. A letra do A-Side do seu primeiro single, “ Hadashi no Kisetsu”, foi escrito por Yoshiko Miura (letrista desde 1977, incluindo em seu currículo desde Mizue Takada até grupos recentes, como o Buono!), com composição de Yuichiro Oda (na época ainda não era o compositor renomado de trilhas sonoras de animes mas um músico de qualidade) e arranjo de Kazuo Nobuta (também compôs e arranjou diversas músicas de anime). Com um time tão gabaritado por trás a carreira dela tinha que dar certo.

O debut da Idol Monumento não é nada mais que uma canção sobre o primeiro amor na adolescência, num verão de céus claros e briza suave (o nome faz referência aos pés descalços da estação, nas praias). Num dos refrões declara: “Eu quero dar-lhe o segredo dentro de minhas covinhas / Um fresco céu azul / Comecei a correr em direção ao amor / Nós dois formamos uma silhueta”. Apenas um beijo.

aquela que ela cantou de maiô num game show ensolarado, “Aoi Sangosho”, outra de Yoshiko Miura e composta por Youichiro Oda, trata do amor de forma um pouco mais dramática, com o seu nome obviamente inspirado pelo romance “A Lagoa Azul” (o filme foi lançado pouco depois do lançamento dessa música). E a consagração do primeiro lugar da Oricon semanal veio com o terceiro, “Kaze wa Aki Iro/Eighteen”, também pelo mesmo grupo. Em time que está ganhando não se mexe?

“Kaze wa Aki Iro” foi o primeiro de muitos singles da cantora que atingiram a marca de mais vendido no ranking semanal da Oricon. Consecutivos, foram 24 — e manteve o recorde até os anos 2000, quando os B’z bateram a marca. Em relação a artistas femininos, só seria superada anos depois, por Ayumi Hamasaki. O feito em si foi o que lhe rendeu o título de “Idol Eterna”. Não é o suficiente para ser canonizada pelo Vaticano e ganhar em sua homenagem um belo Congado, é verdade. Uma versão adaptada desse sucesso de crítica e venda foi utilizada em propagandas de cosméticos da centenária marca Shiseido.

O B-Side, “Eighteen”, foi escrito por Masaaki Hirao, espécie de Elvis japonês que apresentou a pequena notável Agnes Chan ao público nipônico quase dez anos antes. Seiko, que já havia completado os seus 18 anos de moça em início de processo de maturação na época do lançamento, cantava mais uma vez sobre o amor e as dificuldades da idade do coração fraco, como “Non è facile avere 18 anni” de Rita Pavone. “Non è facile avere diciott’anni / Non è facile amare così”. Não é fácil, de fato.

Kokoro wa kotaete ita no totemo suki yo suki yo

Já maior de idade, continuou se apresentando como uma adolescente infantilizada, contribuindo com o distanciamento das idols com a imagem “adulta e independente” das cantoras pop usuais. Ao mesmo tempo que acordava para as responsabilidades da vida adulta, permanecia presa ao comportamento juvenil, que ajudava a vender os discos e deixava seus fãs felizes.

O termo que melhor descreve o seu act nesses primeiros anos é Burikko (ぶりっ子), palavra que não possui uma tradução literal para o inglês (que dirá o português) apesar de ser fácil entende-la em conjunto do conceito de kawaii na cultura pop japonesa em geral. Se refere a pessoas adultas, mulheres na maioria, que agem como uma criança. Isso na fala, nos modos, aparência. É largamente disseminado que tal “estilo” foi inventado por Seiko, que se aproveitou o quanto pode da sua imagem e status de Eterna Criança, e influenciou milhares de mulheres no processo.

Assim como Yukiko Okada depois dela, os seus pais eram terminantemente contra a sua ingressão ao mundo do entretenimento. Demorou para convencê-los da seriedade do seu desejo, e não partiu de primeira para a música, começando como atriz (no dorama “Odaiji ni”, de 1979), além de ser disk jockey em um programa de rádio para jovens. Sua voz e figura não eram desconhecidas do público, já que era bastante presente na televisão em programas de variedades antes do seu debut musical. Adentrou a indústria depois de ganhar uma competição, cantando uma canção de Junko Sakurada, “Kimagure Venus”. Junko, aquela que com Momoe Yamaguchi e Masako Mori formava o trio maravilha da música pop japonesa (e do programa “Star Tanjo!” em específico) na primeira metade da década de 1970.

Seiko aos poucos se libertaria da condição de marionete da indústria, tanto ao escrever e posteriormente compor e produzir suas músicas quanto na sua postura como mulher, mais ou menos o que ocorreu com Momoe Yamaguchi (com a óbvia diferença de idade). Do estrelato em 1980 até escrever o hit final de Yukiko Okada em 1986 (“Kuchibiru Network”) passou por algumas transformações. A quarta faixa (“Chiisa na Love Song”) do seu sétimo álbum, “Utopia” (1983), foi também a primeira com letra sua. A evolução “artística” passou também por uma evolução de mentalidade, e a moça mais cobiçada pela juventude masculina mas desprezada por feministas, por representar o apego à mulher-objeto, mulheres infantilizadas, acaba por ser acolhida por elas in the big picture.

“Utopia”, além de conter a sua primeira tentativa autoral (mais tarde também se arriscaria ao compor melodia e produzir seus álbuns), também é uma espécie de álbum conceitual, tendo cada lado em sua versão em LP um nome: “blue-island side” para o A e “south-wind side” para o B. “Tengoku no Kiss” foi o carro-chefe, lançado como single e vendendo 471 mil cópias. Foi usada de tema em um filme estrelado por Seiko, “Plumeria no Densetsu” (“A Lenda de Pluméria”, se fosse distribuído para países lusófonos), lançado no mesmo ano.

Oshiete koko wa doko?
Umi no soto kashira?
Nettai no hana ga maneiteiru
Futari dake no shima

O lado “ilha azul” se aproxima da temática já explorada em “Aoi Sangosho”, cheia de cenários de verão, ilhas paradisíacas e amores juvenis. A própria capa dá a dica, onde ela aparece submersa na água até a altura do pescoço, suas mãos levantadas na altura da cabeça. No dedo médio, um anel. Seiko Matsuda, no retrospecto até então, representava a garota-verão, tão jovial e kawaii e fresca como água de coco recém cortado. Mas ainda assim se apresentava um tanto comportada e distante.

A “Idol Eterna” representa muito mais do que ela mesma, no início da sua carreira como no amadurecimento dos anos pós primeiro casamento e maternidade (quando decide continuar na carreira, quebrando um pouco com a “tradição” idol até etão), incluindo aí momentos de explosão sexual, inspirados pela música pop ocidental da segunda metade da década de 1980 (notoriamente, Madonna). Mesmo adentrando a última década do século XX, momento infértil para idols (o negócio só volta a conquistar corações e ouvidos com o Morning Musume, tirando algumas exceções), Seiko continuou no topo, consagrada como uma Diva camaleão. É claro que ela teve que mudar de estilo diversas vezes para permanecer competitiva no jogo das cadeiras.

Okuni e o seu Kabuki

Quando a unificação trouxe também a paz, o povo enfim pôde parar para respirar. Não aqueles que estavam já evangelizados pelos missionários europeus, ilegais desde o fechamento do país ao ocidente. Esses foram duramente perseguidos, enquanto que alguns dos missionários acabaram por virar mártires. Mas ao povo comum o ano de 1600 marcou a abertura de um novo meio de entretenimento. Num país em guerra ininterrupta, ao pobre só restava plantar, colher e se reproduzir. Teatro era para os ricos e nobres, e Noh servia bem aos gostos aristocráticos. Faltava algo realmente popular, mas não completamente vulgar, como surge na forma de dramatização performática de dança e canto da miko Izumo no Okuni (pois era de Izumo, província de Shimane), em um leito seco do rio da antiga capital.

Para cumprir com as necessidades da nossa narrativa, voltaremos aos anos oitenta. Okuni se manifesta em um pequeno show num estacionamento de supermercado. As danças e as músicas podem não representar mais a sátira da autoridade e religião daqueles tempos, em interpretações provocantes que acabaram sendo proibidas para mulheres cerca de duas décadas da fundação, mas o objetivo ainda era divertir pobres e ricos. Seiko Matsuda canta e dança, acompanhada de um coro de fãs que em momentos gritam desordeiramente, em outros ordeiramente acompanhando momentos certos das canções, no germe do wotagei. Por algumas horas a existência parece mais suportável.

Ao término do show, paciência, a vida continua.

The More You Know…

Biografia e discografia de Seiko Matsuda: http://www.generasia.com/wiki/Matsuda_Seiko

Referência sobre a cultura em torno do kawaii: http://www.jref.com/culture-society/kawaii-cuteness/

Linha do tempo do Período Sengoku: http://www.samurai-archives.com/time2.html

Sobre a Guerra de Onin: http://jkllr.net/2015/03/25/the-onin-war/

Origens do Kabuki: http://www.theatrehistory.com/asian/kabuki001.html

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