6 Mitos sobre “organizações horizontais” / “auto gestão”

Guilherme Lito
HoneycombLAB
Published in
13 min readMar 13, 2018

Acredito que muitos, como eu, sentem que fatores “externos” e “internos” nos convidam a refletir sobre a maneira como nos organizamos para realizar trabalho que consideramos útil e valioso nas nossas vidas e organizações. Por fatores "externos", me refiro a tecnologias, concorrência, legislação, mudanças climáticas, etc. "Por internos", a custos altos de tempo, dinheiro e questões emocionais com burocracia, demora na tomada de decisão, briga por poder, etc.

Quando falamos de outros formatos de organização do trabalho além da tradicional pirâmide de comando e controle, há muitas imagens/preconceitos que, se não dissolvidos, podem nos atrapalhar na reflexão e nos movimentos que porventura tenhamos vontade de fazer.

Pelo menos foi assim pra mim. Comecei essa jornada afirmando um monte de ideais e me deparar com a realidade foi chocante, pois vi que estava cultivando no meu olhar um monte de mitos, o que tornou o caminho muito mais doloroso.

Por isso esse artigo. Nomeei abaixo o que entendo como alguns dos maiores mitos/suposições em relação ao desejo de organizar-se de uma maneira não convencional, no que historicamente foi descrito como auto-gestão ou gestão horizontal, ambos termos que eu particularmente não gosto pois não acho que descrevem bem o espírito da coisa. Propositalmente não estou dando um nome a isso, para evitar que caiamos na ideia de que eu estou falando de algo estático, de uma ideia ou ideal de organização.

Bueno, então vamos aos 6 mitos que me parecem mais relevantes de nomear:

Mito #1: Organizações “horizontais” são melhores

A busca por um ambiente mais vivo, responsivo, emergente, que favorece a autonomia e liberdade não é melhor do que um ambiente com regras bem definidas e controladas por uma liderança autoritária, assim como uma criança não é melhor ou pior do que um adulto. É importante reconhecer, porém, que uma criança e um adulto são capazes de fazer coisas diferentes.

O mais importante é saber o que se quer. Se você quer um ambiente estável, onde você decide o que vai acontecer, esse pode ser um péssimo caminho!

Por isso, falar genericamente que é melhor sair do comando-controle é cair num lugar de superficialidade e padronização que não nos ajudará no caminho que temos à frente, que é cheio dessas armadilhas da mente dualista que quer logo dar julgamento de valor.

Se você quer destravar mais do potencial motivacional e criativo da sua equipe, ser menos necessário na operação e possibilitar outros tipos de resultado para além do econômico, talvez esse seja um caminho que vai favorecer esses frutos mais do que o convencional.

Então pergunte-se: caso haja vontade de ter algo nessas linhas do que estou abordando aqui, de onde veio esse desejo?

O que você deseja ter num cenário futuro que você não tem hoje?

O que você consegue observar de tensões na sua organização que acredita que esse caminho pode reduzir/eliminar?

Se eu for bem sincero comigo mesmo, reconheço que no início eu desejava esse caminho porque achava cool e moderno, mais do que porque tinha clareza do que eu queria que esse movimento gerasse na minha vida e na vida das pessoas na organização.

Na minha experiência, quando alguns sócios/clientes sacaram o que significava abrir mão do poder dentro da operação, se ligaram que não era exatamente isso que queriam. Queriam o bônus da criatividade / motivação / adaptabilidade, mas sem o ônus de não poder mais dar ordens / ser questionado. O mesmo vale para funcionários, que frequentemente não sabem as consequências disso que desejam. É importante que você entre nisso pelo pacote todo, disposto a pagar o preço por completo. Abrir mão de coisas pode ser duro (principalmente emocionalmente).

Mito #2: É sobre implementar o modelo certo

"Ok, não é necessariamente melhor, mas é um caminho que eu quero trilhar." E agora? Eu te digo: Não acredite nos modelos. Nesse momento onde há muitos sinais de que precisamos mudar, não faltam candidatos a heróis para salvarem o dia.

Sociocracia, Holocracia, Organizações Responsivas, Organizações Teal, Management 3.0, Organizações de Centro Vazio… e a lista vai embora! Se quiser conhecer melhor alguns desses movimentos, há um artigo bacana descrevendo brevemente 7 aqui e mais 7 aqui (tudo em inglês :/)!

Talvez a melhor forma de expressar minha preocupação com essa ideia de modelo seja trazendo o caso da Holocracia, que é um dos movimentos que mais ganhou atenção da mídia. A Holocracia vê sua organização como um “hardware” e ela se propõe a ser um “sistema operacional” que carrega uma série de práticas que vai fazer com que sua organização seja “horizontal” (ou “flat”).

A metáfora de instalar na empresa uma forma de geri-la é muito rica, pois evidencia bem essa maneira de enxergar a realidade que deposita sua esperança em metodologias salvadoras.

Comparar organizações humanas com hardware e software pode ser uma tentativa de tentar descrever uma experiência complexa de maneira mais simples, mas acaba sendo simplista. Há muitas críticas bem escritas na internet em relação à Holocracia, mas o que eu quero trazer não é que a Holocracia é ou não uma boa solução para sua organização, é que QUALQUER modelo não é a solução adequada para esse momento da sua organização. Desconfie de respostas prontas para assunto tão complexo!

Parece meio óbvio, né? Seria muito louco se organizações de 5 a 500.000 pessoas, de indústrias pesadas a escolas, das culturas mais variadas do planeta, com contextos sempre únicos em relação à micro-política, história da organização, etc, todas essas pudessem ter a mesma resposta organizacional.

Tem muita gente pegando um modelo/metodologia, botando-a no pedestal e instalando-a por aí. Nessa armadilha aí eu já caí! =D

Para mim é doido que uma experiência que começa com a intenção de reduzir ou eliminar o autoritarismo seja realizada de maneira tão autoritária. Trocamos o chefe autoritário pelo método/modelo que define o que é certo…

Acho que o pessoal da Holocracia também se ligou nisso, pois a linguagem hoje no site deles é bem mais flexível do que há alguns anos, dizendo que é importante que a organização proponha mudanças na "Constituição" e nos “Apps” caso não faça sentido para sua realidade.

Um caso que acompanhei com muito interesse foi o da Zappos, que fez a transição para a Holocracia e depois de algum tempo disse que não seguiria esse modelo, mas que seria “Teal” (termo mais genérico, usado pelo Frederic Laloux, autor de Reinventando as Organizações). Não conversei com o pessoal da Zappos, mas imagino que sair da Holocracia e assumir uma definição mais ampla da experiência que eles queriam deve ter trazido mais flexibilidade para os formatos que eles estavam buscando.

O que tirar desse mito? Nessa caminhada a pergunta “qual o modelo ideal para nós” dá lugar a perguntas como “qual o melhor próximo passo que podemos dar e que pode nos levar na direção do horizonte que sonhamos?” Não é sobre prever o modelo perfeito na sua mente, mas sobre viver a transformação reunião após reunião, conversa após conversa, perrengue após perrengue, reconfigurando as restrições e a definição do que é possível num processo constante. E esse processo nunca termina. Aliás, essa adaptabilidade é justamente uma das grandes virtudes desse caminho.

Não me entenda mal, eu acredito na potência de utopias. Como diria Galeano:

Não chegaremos no horizonte, mas ele sugere um norte, um lugar a se chegar.

Até mesmo o processo de se tornar uma empresa auto-gerida pode ser um horizonte no qual nunca se chegará, o que não torna inútil o seu empreendimento.

Como sabemos, o único resultado da vida é a morte.

Só o que existe é o processo. Nas nossas vidas, cultivamos um pensar muito focado em resultados e lamento termos nos esquecido que até mesmo o que entendemos como resultado, seja o faturamento, lucro, meta de produção, etc, é só uma foto que registra determinados sinais que podemos medir que são parte de um filme maior, uma peça de teatro da qual somos, ao mesmo tempo, diretores-atores-produtores-autores.

Mito #3 É sobre eliminar a hierarquia

Me parece que com o tempo, algumas palavras perdem precisão de expressão (como "sustentável", "qualidade" e "hierarquia").

Quando dizem que a hierarquia é eliminada, eu entendo que estão falando que a hierarquia de poder, a do “eu mando e você obedece”, que está na fotinho acima, é eliminada. Essa a gente conhece bem e é essa que não está institucionalizada nas organizações que estou sugerindo. O que não quer dizer que não há liderança ou outras formas de hierarquia!

Liderança por competência técnica ou liderança por “perfil de organizar e coordenar” acontecem espontaneamente e frequentemente sem uma configuração definida passível de ser congelada no tempo.

Além da liderança que pode vir da superioridade técnica na execução de alguma tarefa, por exemplo, há também que se reconhecer uma liderança/hierarquia sistêmica. No início eu achava que era possível como sócio numa reunião só com funcionários ser como um deles ou que o fundador da empresa, se estivesse aberto a ouvir e se portar como qualquer outro, seria como qualquer outro.

Hoje percebo que não é assim. Há uma hierarquia sistêmica. Quando o fundador fala, sua palavra tem outro peso, mesmo que ele venha com a melhor das intenções de ouvir e ser "horizontal". É claro, o grau disso varia de ambiente para ambiente, mas nunca estive num lugar onde esse impacto fosse desprezível.

A questão da hierarquia não termina aí! Há ainda outra qualidade de hierarquia, que alguns autores chamam de "hierarquias naturais". Assim como células formam órgãos, que por sua vez formam indivíduos, assim também há uma possível hierarquia formada quando se enxerga o trabalho em diferentes “níveis” (indivíduo, área, empresa, grupo empresarial, etc).

Um exemplo simples pode ajudar: imagine que meu papel/função na empresa é postar no Twitter. É possível que sintamos que seja útil juntarmos outros papéis que consideremos próximos desse, como postar no Facebook, Instagram e atualizar o site, e agrupar esse coletivo de funções nomeando-o como o núcleo de Comunicação Online. A empresa pode agrupar várias funções em núcleos com diferentes nomes (Produção, Distribuição, …). Eles podem ser vistos como “órgãos” de um corpo, formados por células (indivíduos) que desempenham suas funções autonomamente.

Podemos trazer uma imagem clássica da Holocracia para visualizar essa dinâmica, onde "Role" é um papel/função, "Sub-circle" é núcleo e "Super Circle", a empresa toda:

Você pode estar pensando, “mas isso é a boa e velha hierarquia de poder que conhecemos, só que bonitinha com bolinhas e vista de cima, não?”

Não. Essa hierarquia é diferente da de poder em alguns sentidos. O que me parece mais relevante de comentar agora é que nesse exemplo dado não há um diretor do núcleo de Comunicação Online que diz o que eu devo postar no Twitter. Os indivíduos trabalham nas suas funções com autonomia e o corpo inteiro vive as consequências desse trabalho.

Se eu não postar, não haverá um chefe que vai falar algo. Haverá outros combinados/mecanismos de auto regulação, onde eu terei a oportunidade de refletir sobre o meu trabalho, e há inclusive maneiras de você iniciar um processo que pode resultar em eu sair da organização (que pode ser votação, mediação, etc). As formas de organizar são muitas, mas o ponto é que não há uma pessoa que faz essa figura de pai, de botar limites, de castigar ou premiar.

Vale destacar: esse formato (papéis locais que formam núcleos, que formam meta núcleos) é possível, é como funciona a Holocracia, mas certamente não é o único formato. Essa estrutura de "hierarquias naturais" não é necessária, apesar de ser comum.

Por fim, estou falando apenas das hierarquias dentro da estrutura operacional, sem endereçar questões de propriedade.

Uma pergunta frequente é: mas calma aí, uma organização assim pode ter 1 dono? 3 donos? SIM! E sim, esse é outro nível de poder/responsabilidade que permanece no sistema. Isso traz uma outra camada de complexidade que podemos endereçar noutro momento.

Por hora, ficamos com o resumo: não há hierarquias de poder na operação (eu mando você obedece), mas há outras qualidades de hierarquia que não podem ser ignoradas.

— — — -

Mito #4 É sobre remover tensões e paradoxos

Por estar não só vivendo isso, como também dando aulas sobre, percebo em trocas que muitos acreditam que, depois de “implementado o modelo” (Mito #2) haverá um momento mágico, onde os Seres Humanos vão se iluminar, elfos tocarão odes em nossos nomes, os funcionários de repente se tornarão altruístas iluminados, e as dinâmicas geradas por ambição pessoal, política, ganância, etc, desaparecerão. Ledo engano.

Esse caminho não é o de tornar o ambiente ainda mais estéril do que já é, onde as pessoas escondem o que sentem e fazem cara de paisagem e sorriso piano. Inclusive esse talvez seja um dos grandes problemas vividos hoje nas organizações.

Organizações acabam sendo lugares cheios de elefantes brancos nas salas, nos corredores, nas conversas, onde não se encontra espaço para entrar nas dinâmicas relacionadas a poder, inclusão/exclusão, diversidade, dinheiro e outros que são inerentes à ação humana.

Hoje, a maior parte das organizações quase que ignoram essas tensões do ponto de vista institucional, ou as varrem para debaixo do tapete, para uma caixinha anônima, uma avaliação de desempenho semestral ou deixam na mão dos líderes resolverem pelos seus liderados.

A vida é conflituosa, as perspectivas são sempre diferentes, as vontades, as necessidades, e por aí vai. Incluir essas perspectivas e vontades na vida organizacional não vai reduzir essas tensões, mas sim botá-las no “radar do que é de interesse”. E é aí mesmo, nesse cenário confuso e imprevisível, que residem as respostas que levarão a organização à frente.

Conflito, ao contrário do que aprendi ao longo da vida, é bom, muito bom! Foi por meio de conflitos com pessoas que trabalham na ponta, batendo massa de brownie e embalando, que aprendi sobre as limitações das metodologias de otimização de processos que aprendi na faculdade de engenharia. Nem eu estava certo e nem elxs. A resposta mais valiosa que encontramos veio através de uma terceira perspectiva que emergiu do nosso conflito. Se eu usasse meu poder institucional para obriga-lxs a abaixar a cabeça e seguir minhas ordens, o brownie produzido sairia mais caro.

Como estamos convidando as pessoas a se envolverem em um nível mais visceral, muitas questões "pessoais" vêm à tona.

“Minha mãe precisa de ajuda”

“Meu dinheiro está acabando”

“Quero ficar mais com meu filhx”

“Sonho em trabalhar em outros projetos”.

Essas preocupações nunca deixaram de estar lá, mas a partir do momento em que nos interessamos pelos Seres Humanos por completo e não só uma máscara profissional que eles botam, esses assuntos passam a ser de interesse, e isso favorece um processo de abertura, transformação e ação imprevisível ao melhor planejamento.

Em suma, esse movimento todo não é sobre chegar num lugar deshumano nem sobrehumano, mas sim sobre abraçar os Seres Humanos nos paradoxos inerentes à sua (co-)existência. Acolher isso na medida do possível é importante, para que possamos então caminhar para frente mais íntegros, dançando com esses fatores todos.

Mito #5 Não há regras e as decisões são consensuais

Essa reflexão (e a próxima) eu copiei escancaradamente do Frederic Laloux, autor do Reinventando as Organizações, livro já mencionado e que eu recomendo a leitura.

Quando optamos por não trabalhar com uma pirâmide de comando e controle, como tomamos decisões?

Com chefes para decidir as bolas divididas (quem deve ser demitido, quem deve ser promovido, que projeto deve ir para frente), temos uma super carta na manga que resolve tudo. E se o chefe vacilar, o chefe do chefe tem a responsabilidade de responsabilizá-lo. Então esse é um ambiente que nem precisa de combinados tão claros assim para operar. As opiniões do chefe podem ser diferentes da sua e podem gerar desapontamento, mas a regra diz que ele manda, então o sistema pode até ser pobre do ponto de vista de princípios norteadores para tomada de decisão (ou coerência com os princípios definidos).

Quando não há chefe para as bolas divididas, são necessários princípios claros e regras que apoiem as pessoas a decidirem (com processos para as regras serem alteradas caso deixem de fazer sentido).

Quando falo “apoiem as pessoas a decidirem”, não estou falando de consenso, ou "cansenso", como ouvi outro dia. Para alguns contextos, consenso pode até fazer sentido, mas imagine se todos tivessem que concordar com todas as decisões? Há muitas outras maneiras de se decidir algo, tópico abrangente demais para cá.

O que vale ficar como resumo do mito é: não é sobre um ambiente daquela anarquia caricaturada de caos completo e ausência total de regras, e nem sobre um ambiente de comunidade caricaturado onde todos sentam em rodas por horas para decidir se a parede será verde ou azul. Esses são todos preconceitos que eu tinha, e que aos poucos se dissolveram / estão se dissolvendo.

Mito #6 É sobre empoderamento

As organizações que atuam nesse espírito que estamos falando não empoderam as pessoas no sentido de que "eu que sou dono do microfone te entrego-o e se você usá-lo de uma maneira diferente da que eu gostaria, eu posso pegá-lo de volta." Não é sobre tratar meu funcionário como um filho que eu cuido e que tem autonomia dentro do que me sinto confortável a dar.

Nesses ambientes o microfone já não é mais meu. O funcionário não é meu filho, mas um adulto, que vive com as consequências de suas decisões. É um poder que é distribuído e que eu não posso pegar de volta. Não há nada errado com organizações que empoderam as pessoas, só é importante ressaltar que, ao empoderar, mantemos a dinâmica de poder convencional, onde eu tenho poder de te dar poder e estou deixando você usufruir dele enquanto for da minha vontade.

— — —

Seguindo a conversa

Torço para que essas palavras tenham esclarecido algumas das questões que lhe interessam. Vale ressaltar que nenhum desses mitos está separado do outro e a vida não é tão organizada quanto um post.

Por fim, convido você a fazer uma leitura crítica do que escrevi, de me desafiar, de gerar atrito para que eu possa aprender e saber o que não ressoou com a sua experiência. Também fico curioso de saber quais mitos você consegue identificar que estão/estavam presentes na sua jornada, de maneira que eu possa também ter sinais de que isso ressoou em você.

Bora seguir essa troca?

--

--