A maioria das crianças e adolescentes com disforia de gênero apresentam vários outros problemas psicológicos

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Hormônio não é brinquedo
6 min readMar 3, 2018

Por Alex Fradera

Publicado originalmente em 17 de janeiro de 2018.

Uma nova pesquisa sobre transtorno de identidade de gênero (também conhecida como disforia de gênero, na qual uma pessoa não se identifica com seu sexo biológico) questiona a melhor forma de lidar com a condição quando ela surge em crianças e adolescentes. Os tratamentos biológicos devem ser utilizados o mais cedo possível para ajudar um jovem cliente em sua transição, ou é necessário cautela para não complicar problemas psicológicos?

Melanie Bechard, da Universidade de Toronto, e seus colegas examinaram a prevalência de “vulnerabilidades psicossociais e psicológicas” em 50 casos de crianças e adolescentes com disforia de gênero e, em uma edição recente do Journal of Sex and Marital Therapy, eles argumentam que suas descobertas mostram que os médicos devem considerar esses fatores mais seriamente na hora de decidir um plano de tratamento. Um dos co-autores do artigo é Kenneth Zucker, um especialista em disforia de gênero que no ano passado foi considerado demasiado controverso pela televisão estatal canadense.

Em 2013, Zucker liderou o grupo da Associação Americana de Psiquiatria para decidir os critérios diagnósticos para a disforia de gênero, mas perdeu o posto em 2015 quando foi demitido de sua clínica no Toronto Centre for Addiction and Mental Health por não seguir a agora prominente abordagem “afirmativa de gênero”, que coloca a ênfase clínica para crianças e adolescentes que dizem não mais se identificar com seu sexo biológico, no processo de transição de gênero.

A abordagem de Zucker, em contraste, foi mais hesitante, ele questionou a facilidade com que os jovens podem tirar conclusões sobre sua identidade de gênero durante uma etapa universalmente tumultuosa da vida. Ele também deu mais ênfase nos custos que a transição pode trazer para o indivíduo. Dizer que ele considera a transição como o último recurso seria tão caricaturado quanto dizer que a abordagem afirmativa de gênero a considera como o primeiro recurso, mas claramente ambas visões representam diferentes pontos nesse espectro.

Para os críticos de Zucker, ele era um transfóbico e sua abordagem, análoga à terapia de conversão gay (o agora amplamente condenado uso de terapia psicológica para tentar alterar a orientação sexual de um cliente) — eles alegaram, por exemplo, que Zucker aconselhou alguns pais a desencorajar seus filhos menores a se comportar de forma contraditória com seu gênero atribuído.

No ano passado, a hostilidade em relação aos pontos de vista de Zucker foi substantiva o suficiente para levar a emissora canadense CBC tirar do ar um documentário da BBC que relata sua perspectiva. Por sua parte, Zucker continua a sustentar que a sua prioridade sempre foi o bem-estar de seus pacientes clínicos. O artigo recente que ele escreveu em parceria com Bechard e outros, coloca no registro científico uma das preocupações de sua clínica, que os jovens disfóricos de gênero são uma população psicologicamente vulnerável.

O documento examina os arquivos de 17 casos de pacientes do sexo masculino e 33 pacientes do sexo feminino. Analisando suas experiências de disforia de gênero, se observa que os clientes foram encaminhados para um serviço especializado de identidade de gênero para jovens, quando tinham entre 13 e 20 anos. Desses, 64% eram homossexuais.

Os pesquisadores buscaram evidências de 15 fatores que podem significar ou contribuir para problemas psicológicos, desde autoflagelação até atendimento de terapia ambulatorial, e descobriram que mais da metade da amostra apresentava seis ou mais desses fatores. A maioria tinha dois ou mais diagnósticos prévios de algum distúrbio psicológico, sendo o mais comum o transtorno do humor, como a depressão. Mais da metade relatou ter pensado em suicídio, 1/3 havia abandonado o ensino médio, 1/4 provocava feridas em si mesmos. Relatos de de abuso sexual foram mais raros, observados em “apenas” 10% dos casos.

É provável que todos esses números sejam subestimados porque dependeram das descrições dos próprios clientes durante a entrevista inicial na clínica de identidade de gênero. Sem um grupo de controle, é difícil dizer se essas taxas de sofrimento psicológico são maiores do que as de outros grupos de cliente. Contudo, certamente, os resultados são consistentes com a noção de que esses indivíduos já estavam em estado de vulnerabilidade psicológica quando foram encaminhados para avaliação de disforia de gênero.

A equipe da Bechard apresenta exemplos detalhados de dois clientes, ambos do sexo feminino, que trazem essas complexidades psicológicas à vida, demonstrando os tipos de situações que esses casos geralmente envolvem.

O primeiro indivíduo era muito inteligente, e tentava duramente se socializar, especialmente com as garotas. Estava obcecado por enfatizar sua feminilidade em selfies, levando os pais a suspeitar de transtorno dismórfico corporal (uma preocupante crença de que há algo errado com seu corpo). Então, o namorado desse indivíduo se assumiu gay. E algum tempo depois disso, o cliente revelou que se identificava como um garoto. Essa mudança de identidade aconteceu “da noite pro dia” sem antecedentes de identificação com o gênero oposto.

A história do segundo cliente é mais complicada: em torno dos 14 -15 anos, esse indivíduo revelou que era transgênero (se identificando como homem), e havia se sentido assim por algum tempo. Este indivíduo também tinha histórico de ansiedade, problemas sociais ao interagir com meninas e extrema ansiedade sobre sexualidade. A partir do momento em revelou sua disforia de gênero, ele também revelou que era homossexual (com atração por homens), mas que não tinha interesse em relações românticas / sexuais.

Em ambos os casos, após uma avaliação inicial com um médico, foi prescrito o uso de testosterona contra a vontade dos pais — no primeiro caso, o médico chegou a se recusar a conhecer os pais de seu paciente e, no segundo caso, o médico registrou que as questões levantadas pelos pais em relação à ansiedade, os problemas sexuais e sociais não eram relevantes para a ação em curso. Infelizmente, no caso do segundo indivíduo, alguns meses após o início do tratamento hormonal, ele tentou suicídio e precisou ficar hospitalizado; os motivos não foram relatados.

Os indicadores de vulnerabilidade psicológica identificados nestes casos são consequência, causa ou simplesmente coincidem com a disforia de identidade de gênero? Se em todos os casos se trata apenas de uma consequência da disforia de gênero, a abordagem decisiva dos médicos descritas acima tem um certo sentido. Mas se algumas das complicações psicológicas eram anteriores a disforia de gênero, ou estavam separadas dela, então, isso ao menos sugere que os médicos consultados deveriam ter considerado um plano de tratamento mais amplo, e levado em conta as complicações psicológicas de seus clientes antes de julgar que eles estavam preparados para começar com os tratamentos biomédicos.

A possibilidade de que o despertar da disforia de gênero, em alguns casos, possa ser impulsionado por vulnerabilidades psicológicas e problemas sociais anteriores, provavelmente é não nula. Esta é uma idéia controversa para muitos transativistas online, mas não para os profissionais da saúde. Mesmo aqueles que defendem a filosofia da afirmação de gênero, reconhecem que alguns jovens encaminhados à clínicas por questões de identidade de gênero podem ser indivíduos transitoriamente confusos.

A questão das vulnerabilidades psicológicas pré-existentes ou concorrentes também dizem algo sobre o fato de que uma porção substancial, talvez até a maioria, de crianças que experimentam algum tipo de desconforto com questões de identidade de gênero, mais tarde vão aceitar seu sexo biológico (leia os comentários adicionais e discussão); as novas descobertas também podem ter relevância para indivíduos que chegam a conclusões semelhantes mas, na maioria das vezes, só depois de já terem feito um grande investimento no processo de transição, aqueles que experimentam a chamada destransição — um fenômeno que está lutando para obter atenção científica.

No entanto, quando uma criança com disforia de gênero é “insistente, persistente e consistente” durante um período prolongado (de acordo com a abordagem afirmativa de gênero), isso geralmente é considerado um bom indicador de que é apropriado começar a facilitar o processo de transição. O problema é que as vulnerabilidades psicológicas também podem ser persistentes, e se uma pessoa jovem sente que encontrou a solução, é compreensível que ela não queira abandoná-la.

Às vezes a vida pode parecer tão complicada como o nó górdio, do lendário desafio, que aparentemente era impossível de desatar. É compreensível ponderar uma solução radical, como a de Alexandre o Grande, cortando o nó com um único golpe de espada: abandonar seu ambiente externo por um novo lar, sair dos confins de uma identidade que pode ser a fonte da miríade de problemas que causa sofrimento.

A pesquisa de Bechard, Zucker e companhia fornece evidências preliminares sobre as vulnerabilidades psicológicas de crianças e adolescentes com disforia de gênero, estendendo seu trabalho anterior, que revela altas taxas de autoflagelação e ideação suicida neste grupo, mas é necessário mais pesquisa para fornecer um quadro clínico completo. Assim, este novo artigo representa apenas a última saída para uma difícil e complicada discussão que está longe de terminar: uma discussão sobre como podemos tratar com compaixão aqueles que se sentem em desacordo com o lugar onde se encontram no mundo social.

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