De mulher para homem para mulher.

Liberar-se da tarefa de escalar uma montanha cujo pico nunca pode ser alcançado é a sua única chance de realmente ser feliz. Eu finalmente parei de procurar a validação como algo que nunca seria, e iniciei o processo de me amar.

HNEB
Hormônio não é brinquedo
8 min readFeb 27, 2018

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Traduzido por Uma Queviu

O Tumblr é um lugar legal. Escritores, artistas, ativistas. Muitas pessoas encontram conforto lá. Eu também tentei encontrar, quando eu fiz uma conta em 2013, depois no ensino médio. Na verdade, não era tão legal naquela época. Uma multidão de meninas jovens como eu, com sua plataforma recém-descoberta, criaram blogs em “preto e branco” (apenas confira alguns dos nomes de usuários), coleções impressionantes de gifs de escala cinza, uma miscelânea de imagens para-suicidas: automutilação, punhados de pílula…

Felizmente, os vícios no Tumblr rapidamente se encontram substituídos por novas modas; Adeus dias da automutilação glamourizada, olá fandom! (O meu era House, se alguém estiver curioso. Dias sombrios, sombrios) Mas, como os blogs em preto e branco antes deles, esses perfis também foram rapidamente substituídos. Desta vez? Pelos blogs dos justiceiros sociais.

Agora, admito que nem tudo sobre a nova mania de justiça social era ruim. Por um lado, foi onde a maioria dos meus pares e eu conhecemos o feminismo 101, mesmo que tenha algumas coisas bastante erradas (por exemplo, o feminismo é para os homens também, maquiagem é empoderadora, BDSM é progressivo, etc.) e a atmosfera geral de tolerância permitiu a jovens adolescentes gays como eu a liberdade de expressão e a segurança que não encontravamos no Twitter ou no Facebook naquele momento. Ainda assim, saiu muita merda louca desse tipo de tumblr.

Quando coisas como otherkin, fictionkin e aesthetigender (para efeito total, eu vou ter que pedir para você enfrentar a dor de ver toda a lista do último link), são aceitas como algo dentro do reino da realidade, não é de admirar que a palavra “Mulher” tenha sido distorcida, confundida e apropriada.

Em retrospectiva, minha própria atração pessoal com a crescente tendência trans é óbvia. Meninas adolescentes são ensinadas a odiar tudo sobre si mesmas. Nenhuma de nós pode vencer. Mesmo as garotas mais magras, mais bonitas e com a pele mais perfeita, encontram um inimigo no espelho. Imagine meu horror ao olhar meu reflexo e ver uma gorda, de cabelos curtos e lésbica olhando de volta. Em um mundo onde meu estilo, meus interesses e minhas atrações não eram adequados para uma menina, a transgeneridade ofereceu a solução perfeita: seja um menino.

Não podia funcionar, é claro. Como poderia, quando todos os meus problemas não tinham nada a ver com a forma como eu me identificava e tudo a ver com o que eu era: uma fêmea. Claro que, com uma idade de 14 anos, isso não era óbvio para mim. Minha transição para ‘’menino’’ era meu bilhete para fugir do auto-ódio, e pode acreditar que eu iria usá-lo. Para a surpresa de ninguém, o Tumblr estava em êxtase com a minha “descoberta”. Uma abundância de parabéns, encorajamento e apoio apareceu no meu caminho — algo que meu eu-menina nunca recebeu mesmo sendo exatamente como o meu eu-menino, salvo pelo nome e pronomes diferentes. Então, é claro que pareceu a coisa certa.

Eu sinto que um engano de muitos adultos sobre esse fenômeno, é achar que pessoas como eu foram intimidadas a se identificar como trans, mas não acho que essa seja a maneira mais precisa de descrevê-lo. Há um tipo muito específico de confusão mental que aconteceu no Tumblr durante esse período, que propiciou a atmosfera perfeita para que adolescentes confusos e que se odeiam (isto é, todos eles) chegassem de alguma forma à percepção de que eles são transgêneros. Primeiro veio uma espécie de revisão distorcida da história, mulheres como Joana d’Arc ou Christina, Rainha da Suécia (que uma vez escreveu que não era “nem homem nem hermafrodita, como algumas pessoas do mundo pensavam”. Interessante… talvez a sociedade sempre tenha dito às mulheres não conformes com o gênero que não eram mulheres verdadeiras…) se tornaram “homens trans que não sabiam na época, porque não era aceito”. Ao dizer que essas mulheres que não podiam “defender” sua feminilidade eram homens, é de admirar que aquelas que estavam por perto começassem a pensar que poderiam ser homens também? Outra coisa foi a constante validação de pessoas trans. Para que eu me tornasse instantaneamente “válido”, tudo o que eu tinha que fazer era ser um homem. Como eu poderia fazer isso? Me sentindo como um. Sentir como? Não sei, mas como eu não me sentia como uma mulher (o que agora eu percebo que não é possível, ser mulher não é um sentimento), o salto foi fácil para mim: eu devo ser um homem.

Naquele momento, tudo parecia muito progressivo — ao ignorar a história e a biologia poderíamos reescrever a realidade, e qualquer pessoa poderia ser qualquer coisa que quisesse (preciso lembrar dessa lista mais uma vez). O que realmente aconteceu foi o oposto completo. Em primeiro lugar, as palavras já não tinham mais significado. De acordo com a nova lógica do gênero, mesmo machos e fêmeas eram conceitos fluidos. Uma mulher trans era agora uma fêmea em virtude de se identificar como “mulher”, todas as tentativas de qualquer tipo de discussão sobre gênero e sexo são impossíveis porque 1. Qualquer desacordo qualifica você como transfóbico e TERF e você é literalmente condenado ao ostracismo, e 2. gênero não significa mais nada (salvo algum sentimento misterioso e secreto que se recusa a ser definido, aparentemente).

Quando minha mãe descobriu o que estava acontecendo comigo, eu estava completamente envolvida. Os vídeos de transição de mulher-para-homem preenchiam minhas sugestões do Youtube e eu já havia decidido que eu gostaria de uma metoidioplastia em vez de uma faloplastia (uma decisão que agora reconheço como o desejo de que minha masculinidade fosse real, não um pedaço de pele do meu braço ou perna, um desejo impossível que nunca poderia ser cumprido, eu sei agora, porque não sou homem). Eu decidi dar o meu primeiro passo de “transição” física, obtendo uma faixa para apertar meus seios, um binder. Apenas um problema — ter quatorze anos significava que eu não tinha trabalho e não tinha dinheiro. Então, eu improvisei. Sendo uma blogueira com milhares de seguidores (não, eu não vou me linkar, eu seria perseguida e/ou exposta em aproximadamente .00023 segundos), fiz uma rápida solicitação de ajuda na compra de um binder. Dentro de algumas horas, um seguidor bem-intencionado perguntou o meu tamanho e me disse que chegaria em poucos dias. Infelizmente, ou foi o que eu pensei naquela época, não consegui interceptar o pacote antes que minha mãe o fizesse. Ser acidentalmente “revelada” é uma merda. Lembro-me de receber uma mensagem da minha mãe enquanto estava na escola, que dizia mais ou menos “Temos algo importante para falar quando você chegar em casa”, o que, para quase qualquer adolescente, poderia significar uma multidão de coisas terríveis e exatamente zero boas coisas.

Ao longo desta história inteira, minha mãe abordou as coisas muito bem, mas em retrospectiva, eu a odiei profundamente naquele momento. Ela me pegou na escola e me deixou marinar no silêncio que dói na alma até que estivéssemos a meio caminho de casa. Ela foi direto ao assunto e me disse que tinha aberto meu pacote e encontrado meu binder. Eu imediatamente entrei no modo pânico, então eu não lembro exatamente como ela arrancou minha confissão de ser transgênero, mas envolveu muito choro. Ela me disse de cara que achava minha conversa fiada de “sentir-se como um menino” uma grande besteira, embora para ser justa, ela falou de maneira menos insensível, e me pediu para mostrar vídeos e literatura sobre o assunto. Eu mostrei. Ela não ficou impressionada.

Lembro-me de sentir medo de que isso significasse que ela agora iria me obrigar a deixar crescer meus cabelos curtos, ou — Deus me livre — começar a usar vestidos, na tentativa de sufocar minha “transição”, mas esse não foi o caso. Foi doloroso para mim que ela não usasse meu novo nome ou pronomes, mas permitir que eu continuasse sendo não conforme com o gênero, é algo que hoje eu sei que ajudou minha auto-aceitação como mulher. Ela deixou claro que a transição médica não aconteceria, o que eu senti como sendo o fim do mundo. Da mesma forma que você não diria a um esquizofrênico que seus delírios são reais, ela não se interessou em fingir que eu era homem, ou que eu poderia vir a ser um. Mas o mais importante, ela me disse que estava tudo certo. Que eu poderia ser masculina, que eu poderia gostar de mulheres, e que eu poderia existir como eu mesma, no meu corpo. Que injetar hormônios e cortar minha carne mudariam minha aparência, mas não a mim mesma. Se eu fosse ser feliz, não tinha nada a ver com meus pronomes ou com meus órgãos genitais, eu tinha que aceitar a fêmea, e a mulher, que eu era.

Claro que precisou de muita terapia para aquilo realmente entrar na minha cabeça dura, e até entrar, a estrada foi bastante acidentada. Eu acho que um dos maiores problemas em ser transgênero é que essa condição surge de uma infelicidade e que a impossibilidade da solução aceitável amplifica a infelicidade. Ter cabelos curtos não lhe dá um pomo de Adão, as injeções de testosterona não mudarão sua estrutura óssea, uma faloplastia não permitirá que você produza esperma. Quanto mais você se aproxima do ideal, mais o fosso entre você e ser um macho real cresce. Liberar-se da tarefa de escalar uma montanha cujo pico nunca pode ser alcançado é a sua única chance de realmente ser feliz. Eu finalmente parei de procurar a validação como algo que nunca seria, e iniciei o processo de me amar. Não existe um manual de como superar a disforia de gênero e aceitar seu sexo de nascença, mas existem algumas dicas que posso compartilhar.

Em primeiro lugar, seja paciente. Se é você ou alguém que você ama que é trans, uma conversa, experiência ou epifania não vai mudar a mente de ninguém. Em segundo lugar, e isso é específico para as fêmeas que se identificam como trans: entender a teoria crítica de gênero. O feminismo liberal nos diz que as mulheres são oprimidas por causa do seu gênero, mas isso não é verdade. Somos oprimidos por causa do nosso sexo, atravéz do gênero. Era difícil para mim desistir da solução imaginária para minha opressão antes de entender isso. Em terceiro lugar, pense longamente sobre o porquê você se sente trans.O que é esse sentimento? O que seria se sentir “cis”? Se a sua resposta for “confortável com seu sexo/corpo”, dificilmente uma única mulher se enquadra nessa categoria. Seria se sentir confortável com as expectativas, limitações e estereótipos do seu gênero? Mais uma vez, nem uma única mulher se aplica. O empurrão mais difícil e final para minha “destransição” foi perceber e aceitar que, o que quer que eu estivesse “sentindo”, não era “menino”. Era uma insatisfação com as restrições de ser mulher. Entender isso é o passo mais importante para se tornar feliz com sua feminilidade.

Por um longo tempo, hesitei em falar sobre minha experiência como trans. Por um lado, eu estava envergonhada de ter sido enganada por uma agenda que queria me convencer de que eu era algo que eu não sou, nem jamais seria. Tinha medo, também, da reação negativa. Atualmente, o clima entre os meus pares é tal, que o desentendimento de quase qualquer variação significa o ridículo público e a humilhação. Eu pensei que as pessoas poderiam tentar me dizer que eu não era realmente, verdadeiramente trans (embora ninguém pareça sugerir o que isso significa), ou que eu não conseguia aceitar minha natureza trans. Porém, eu decidi que eu tenho que descartar essas dúvidas, porque há algo mais importante em jogo: mulheres jovens aprendendo a se amar. Se eu puder convencer apenas uma garota a amar seu corpo do jeito que ele é, e a saber que nenhuma quantidade de butchness a torna menos mulher, então qualquer merda que eu receba vale a pena.

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