Transgenderismo e a Construção Social do Diagnóstico

Por Lisa Marchiano

HNEB
Hormônio não é brinquedo
10 min readMar 5, 2018

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Publicado originalmente em 1 de março de 2018.

Na semana passada houve mais uma tentativa de silenciar o debate e a pesquisa cujas conclusões divergem da ortodoxia estabelecida. O ativista transgênero Brynn Tannehill criticou a publicação de um resumo de 2017 no Journal of Adolescent Health (Jornal da Saúde Adolescente), afirmando que a pesquisa sobre a Disforia de Gênero de Surgimento Repentino (DGSR), era “porcaria científica tendenciosa”. A pesquisa a qual Tannehill se opôs tão fortemente foi realizada por Lisa Littman, MD, MPH. Littman entrevistou os pais de crianças e jovens adultos que se tornaram disfóricos de gênero e passaram a se identificar como trans no contexto de pertencer a um grupo de amizade onde um, muitos, ou mesmo todos os amigos do grupo passaram a se identificar como trans em um período de tempo similar, ou em um contexto de aumento do uso de mídias sociais, ou ambos. As descobertas da pesquisa sustentam a plausibilidade das influências sociais sobre o desenvolvimento da disforia de gênero. A pesquisa completa ainda não foi publicada.

Tannehill posteriormente publicou o artigo na página do facebook da World Professional Association for Transgender Health (WPATH). Seguiu-se uma discussão em que alguns comentaristas pediram à liderança do WPATH que exigissem que a revista se retratasse sobre o resumo. “Então, algo está sendo feito?”, escreveu um comentarista. “O Jornal está sendo convidado a fazer uma declaração para se retratar ou se desculpar pela inclusão do resumo?” O psiquiatra e membro do conselho da WPATH, Dan Karasic, respondeu simplesmente “Sim”. (Estes comentários foram excluídos do tópico original, mas cópias das imagens e uma descrição mais completa do que aconteceu podem ser encontradas aqui.)

Como terapeuta, conversei com centenas de pais de adolescentes que assumiram uma identidade trans “do nada”, e posso corroborar com as descobertas iniciais de Littman. A maioria desses pais tem filhos com idade entre 14 ou 15 anos — uma idade em que os adolescentes são particularmente suscetíveis à influência dos colegas. Esses adolescentes muitas vezes têm um ou mais dos seguintes fatores que contribuem para suas dificuldades sociais: eles são academicamente talentosos; estão no espectro do autismo; são atraídos por pessoas do mesmo sexo; sofrem de trauma ou processo de ruptuta; possuem outros diagnósticos de saúde mental, como ansiedade ou depressão; têm alguma deficiência de aprendizagem. Os pais geralmente relatam que seus filhos anunciaram subitamente ser transgênero depois de passar bastante tempo em sites e redes sociais focados em questões trans e/ou ter um ou mais colegas se assumindo como trans. Alguns adolescentes até admitiram a seus pais que se assumiram transgênero “para se encaixarem”.

Além da crença de que eles são trans, esses adolescentes também parecem ter adquirido rapidamente a firme convicção de que a transição social e médica (agora etiquetada como “confirmação de gênero”) deve ser realizada imediatamente. Os pais informaram que o anúncio de uma identidade trans feita pelos adolescente, geralmente é acompanhado por um pedido de imediato tratamento hormonal. As discussões sobre cirurgia geralmente vem em seguida. Alguns adolescentes chegam a indicar a clínica de gênero mais próxima onde podem receber os hormônios no momento em que fazem o anúncio aos pais. Às vezes os jovens dizem que vão tentar o suicídio caso os pais não atendam seus pedidos de intervenção médica.

A crença de que a transição médica deve ser realizada com urgência é quase certamente sugerida pela internet, pela mídia convencional e talvez também por colegas. Isso ocorre apesar da maioria dos adultos transgênero terem feito a transição numa fase mais avançada da vida, sobrevivendo à adolescência sem transição. Além disso, a alegação empírica de que as transições precoces são eficazes, se baseia em um pequeno subconjunto de estudos, cujo resultados não podem ser aplicados aos casos de DGSR em adolescentes ou casos que envolvam outros problemas psiquiátricos. Ademais, a taxa de suicídio amplamente citada, que é frequentemente mencionada como justificativa para a intervenção urgente, é baseada em um estudo que não prova a existência de uma ligação causal entre a transição de gênero e a melhoria da saúde mental. Ainda não se sabe se a transição altera as taxas de suicídio de indivíduos com disforia de gênero. Nenhum estudo até a presente data analisou se o apoio dos pais durante a inconformidade de gênero sem transição médica resulta em uma redução do sofrimento, embora evidências anedóticas indiquem que isso pode acontecer. Apesar de haver evidências de que a intervenção médica beneficia adultos com disforia de gênero, atualmente ainda faltam evidências que indiquem que a intervenção médica é o melhor e único tratamento de primeira linha para crianças e adolescentes que sofrem com a condição. Enquanto isso, o empurrão para uma intervenção imediata está se tornando arraigado como uma ortodoxia nos principais meios de comunicação e nas organizações profissionais — possivelmente nos orientando por um caminho que potencialmente poderia resultar na esterilização desnecessária de adolescentes nos EUA e em todo o mundo.

Ativistas e certos clínicos que simpatizam com o movimento transativista parecem se sentir ameaçados pela ideia da disforia de gênero de surgimento repentino, porque a sugestão de que a disforia pode ser influenciada por fatores sociais ou culturais mina as noções de que ela é inata. Se a disforia não é inata, se torna mais complicado justificar a intervenção médica.

De fato, deve ser verdade que existem fatores culturais e sociais que influenciam a disforia de gênero. Se um ato social, como vestir um determinado artigo ou ser chamado por um nome diferente, pode aliviar a angústia de uma criança, então como o problema que causou essa angústia pode ser inteiramente biológico? O diagnóstico de disforia de gênero em crianças baseia-se principalmente em comportamentos vinculados à cultura. Por exemplo, um dos critérios listados na descrição diagnóstica oficial é que a criança tenha “uma forte preferência por brinquedos, jogos ou atividades estereotipicamente envolvidos ou utilizados pelo outro gênero”. Não há teste de laboratório para isso, nenhuma manifestação física. Aqueles que sofrem intervenção médica por disforia de gênero geralmente são fisicamente saudáveis ​​e fenotipicamente normais.

Em 1851, um médico dos EUA publicou um artigo no diário médico e cirúrgico escolar de Nova Orleans, no qual ele descreveu um novo transtorno. “Ao notar uma doença que, até agora não está classificada na longa lista de doenças as quais o homem está sujeito, era necessário, portanto, um novo termo para expressá-la”, escreveu Cartwright, e nomeou a nova síndrome como Drapetomania. A Drapetomania era uma doença de escravos, que os fazia fugir. Os sintomas iniciais incluíam tornar-se “mal-humorado e insatisfeito sem causa”. O tratamento para evitar o desenvolvimento da doença neste momento exigia “chicotear o escravo até o demônio sair” como uma “medida preventiva”. O eminente psiquiatra e psicanalista Thomas Szasz comparou a análise de Cartwright da “doença” que faria um escravo querer fugir com a nossa tendência moderna de diagnosticar e medicar a depressão naqueles que trabalham longos dias fazendo tarefas domésticas em um compartimento sem janelas.

Isso não quer dizer que não exista um transtorno depressivo maior, ou insinua que a medicação é uma resposta ineficaz ou inadequada aos sentimentos de descontentamento ou falta de sentido. Isso serve para apontar que nossa angústia ocorre em um contexto social e cultural, e é em parte interpretada e até construída por esse contexto. O que o filósofo Ian Hacking descreveu como “efeito looping”, aquilo que nossos médicos esperam que nós manifestemos nos é oferecido como a linguagem de sintoma através da qual nossa angústia encontra expressão. E, quando o expressamos, a instituições psiquiátricas se convencem ainda mais de que estão lidando com uma entidade discreta, que a doença é, de fato, de tipo natural, ocorrendo fora das categorias humanas. Na verdade, os sintomas da saúde mental sempre têm algum tipo de contribuição social ou cultural, como ilustrada uma mirada transcultural da psiquiatria.

Os vários problemas da psique que chamamos de distúrbios têm suas raízes no corpo e sua biologia. Foi demonstrado que fatores genéticos desempenham algum papel em praticamente todos os diagnósticos do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, ou DSM (sigla em inglês). No entanto, eles não são meros produtos da nossa biologia. Sua manifestação particular é dependente de nossa biografia individual, das ideias e crenças do nosso meio cultural atual, e do momento e lugar em particular, onde nos encontramos. A cultura fornece a linguagem dos sintomas, os envoltórios metafóricos em que a nossa angústia está vestida.

Um distúrbio mental que se demonstrou ser causado principalmente por fatores biológicos é a esquizofrenia. Algo como a esquizofrenia existe em todo o mundo, parece ser bastante hereditário, e há evidências de que a exposição a certos vírus no útero pode predispor alguém a desenvolver a doença mais tarde. No entanto, a esquizofrenia manifesta-se de formas marcadamente diferentes em diferentes culturas. Surpreendentemente, o contexto social em que ocorre a doença parece ter um efeito significativo no prognóstico. Enquanto um diagnóstico de esquizofrenia nas culturas ocidentais geralmente vem acompanhado da expectativa de que a pessoa estará sobrecarregada com uma doença debilitante por toda a vida, os esquizofrênicos em outras culturas são mais propensos a sofrer uma remissão completa. Portanto, mesmo uma doença de origem significativamente biológica, tem um componente importante que é socialmente construído, e o componente social pode ter um efeito substancial sobre se as pessoas que sofrem da doença se sentirão melhor ou pior.

Assinalar que o diagnóstico tem um componente socialmente construído não significa afirmar que ele não é real, que seus sofredores são “loucos”, ou que não merecem compaixão e tratamento. Reconhecer a realidade da construção social do diagnóstico psiquiátrico nos permite uma gama mais ampla de opções para escolher na hora de decidir como resolver o sofrimento do paciente.

Em terapia, prestamos atenção às cognições porque nossos pensamentos influenciam a forma como respondemos às coisas. Os terapeutas cognitivos muitas vezes apontam que primeiro há algo que acontece, e logo a história que contamos a nós mesmos sobre esse algo. Um diagnóstico psiquiátrico pode ser uma história que contamos a nós mesmos sobre os sentimentos que temos. Os critérios de diagnóstico para a disforia de gênero na infância no DSM atual incluem itens como o que segue:

  • Em meninos (gênero atribuído), uma forte rejeição à brinquedos, jogos e atividades tipicamente masculinos e uma forte rejeição à jogos grosseiros; ou em meninas (gênero atribuído), uma forte rejeição à brinquedos, jogos e atividades tipicamente femininos.

Então, de acordo com o DSM, não ter gostado de coisas femininas quando criança poderia significar que eu tinha disforia de gênero. Mas para qualquer indivíduo, explicações alternativas devem ser descartadas antes que intervenções que alteram a vida sejam prescritas. Por exemplo, os pesquisadores observaram que as preferências por brinquedos e roupas do “outro gênero” na infância estão associadas à orientação homossexual na fase adulta. Os sintomas que alguns vêem como evidência de que a criança é transgênero também podem ser uma expressão precoce de que ela será lésbica ou gay. Dado que a pesquisa indica que a maioria das crianças identificadas com disforia de gênero vai superar essa condição se for deixada quieta e que a maioria delas será gay, lésbica ou bissexual, parece prudente, em muitos casos, esperar.

Consideremos outra explicação que foi menos discutida ou nem mesmo reconhecida: dado que a maioria dos adolescentes que se apresentam nas clínicas de gênero é do sexo feminino, também podemos levar em conta que muitas garotas se sentem desconfortáveis com os papéis de gênero e que o desconforto com o corpo é uma experiência compartilhada por 90% das adolescentes. As garotas adolescentes muitas vezes estão muito preocupadas com a adaptação social, e geralmente são mais propensas do que os garotos adolescentes a manifestar problemas emocionais. Será possível que as garotas adolescentes estejam se encaixando na narrativa fornecida pela internet e pela mídia para construir uma história sobre si mesmas que sirva para explicar seus sentimentos de diferença, ao mesmo tempo que oferece um caminho para a transformação?

O psiquiatra e psicanalista australiano Roberto D’Angelo trabalha em sua prática com jovens disfóricos de gênero. Ele notou uma tendência dos jovens de adotar a linguagem de sintomas da disforia de gênero como forma de explicar sofrimentos para os quais podem não haver palavras:

“A disforia é frequentemente apresentada como uma “condição” pelos pacientes que atendo, uma vez que são incapazes de descrever com clareza. Muitas vezes, eles não têm a sensação de que esse sentimento possa ter se desenvolvido em resposta a fatores contextuais sociais ou interpessoais, incluindo disfunção familiar e trauma. Creio que em alguns casos de DGSR, o indivíduo já está lutando e infeliz (disfórico) devido a outras questões e a transgeneridade é entendida como uma solução para suas dificuldades. As pessoas que eu atendo, muitas vezes têm a fantasia de que a transição as transformará em uma “nova pessoa”, livre de todas as velhas dificuldades. Penso que o aspecto do contágio social pode estar relacionado com a disponibilidade da narrativa trans como uma solução convincente para a dor e a angústia.”

É importante qual história ou explicação escolhemos — como decidimos construir nossa angústia — porque isso determinará em grande parte os tipos de respostas que se abrirão para nós. Alguns clínicos estão construindo os sentimentos de desconforto de gênero de adolescentes como indicativos da necessidade de intervenção médica, que inclui hormônios esterilizantes e amputação de seios. Dada a natureza drástica e permanente dessas intervenções e a relativa escassez de dados sobre os resultados a longo prazo para aqueles que realizam a transição ainda crianças ou jovens, não faria sentido explorar outras histórias possíveis que possam sugerir diferentes caminhos de tratamento?

O compromisso com o diálogo, o inquérito e a investigação rigorosa nos ajudou a acabar com os diagnósticos politizados, como a drapetomania. Isso ajudou a ampliar nossa compreensão sobre a esquizofrenia, compreendendo seus componentes culturais, incluindo as formas como o diagnóstico foi mal utilizado como controle social. E nos ajudou a descobrir maneiras menos invasivas e mais humanas de tratar esta condição. A pesquisa inicial de Littman realmente parece confirmar que existem importantes elementos sociais e culturais envolvidos na tendência atual entre adolescentes e jovens para que eles se assumam como trans. Pesquisas como a dela podem nos ajudar a aprender mais sobre quem poderia se beneficiar melhor de cada tratamento. E, não é isso que todos queremos?

Lisa Marchiano é assistente social clínica e analista junguiana com prática privada na Filadélfia, PA. Sua escrita sobre problemas de pais pode ser encontrada em motherhoodtransformation.com. Siga-a no Twitter @lisamarchiano.

Texto original: http://quillette.com/2018/03/01/transgenderism-social-construction-diagnosis/

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